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- JANUS 1997 -

Janus 1997



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Soberania de Serviço

Adriano Moreira *

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1. A condição exógena de Portugal significa que está condicionado, no exercício do poder político, por variáveis limitadoras da sua liberdade de decisão, porque as não controla, e inscrito num sistema internacional do qual mais de um elemento escapa inteiramente à sua capacidade de gestão. Não se trata de uma novidade na longa história nacional, mas o facto é menos visível nos períodos de estabilidade internacional, porque a habitualidade minimiza a percepção das dependências, e a regularidade dos procedimentos tende para fazer da ordem vigente uma expressão da ordem natural.

Antes da II Guerra Mundial a aliança com a Inglaterra era um elemento essencial do sistema imperial português, o que fazia esbater a memória de conflitos passados, mas a soberania portuguesa não regia o comportamento desse elemento indispensável à livre circulação marítima, sendo certo que a funcionalidade do todo seria afectada irremediavelmente por qualquer alteração do comportamento britânico.

Ao longo de séculos de estrutura multicontinental, mais de uma vez a alteração desses elementos e variáveis arrastou revoluções, mudanças de regime, e acomodamentos com a comunidade internacional em mudança: para terminar com a dinastia Filipina foi necessário viabilizar a revolução nacionalista com a entrega do Império das índias, para repor em vigor a aliança inglesa; da agressão napoleónica saiu-se com um novo regime viabilizado internacionalmente pela independência do Brasil a contribuir para um novo equilíbrio geral; da corrida das democracias europeias da frente marítima para África, no século passado, resultou a necessidade de renunciar aos direitos históricos; para entrar na Nova Ordem, posterior à Paz de 1945, foi necessário regressar às fronteiras europeias que existiam antes do início da expansão marítima.

Admitindo que o facto da hierarquia das potências é um dado permanente, a condição exógena implica que, seja qual for a definição vigente de soberania, esses países tendem para possuírem uma capacidade insuficiente de gestão, no contexto geral. Durante o meio século em que esteve em vigor a Ordem dos Pactos Militares (NATO e Varsóvia) foi reconhecida a posição cimeira das superpotências (Autonomia Estratégica), seguidas das grandes e médias potências (Autonomia das Forças Convencionais), e dos pequenos países (Sem Autonomia Militar), estes indispensáveis ao sistema mas dependentes.

A longa duração dessa Ordem racionalizou o funcionamento em termos de, na área ocidental, não aparecerem comportamentos atentatórios da imagem da igual dignidade, mas a exiguidade era um facto. A multiplicação das interdependências e dependências mundiais que exigem, neste fim de século, a adopção da perspectiva da globalização, produziu efeitos semelhantes, para além da área militar, na ciência e tecnologia, na economia, na cultura, nos padrões gerais da sociedade civil. Por isso se diz que o Estado soberano está em crise, um efeito cuja intensidade varia na escala da hierarquia das potências, que afecta certamente menos os E.U.A., a China e a Rússia, mas que atinge todos em termos de os próprios Estados exíguos se multiplicarem em espécies mais frágeis, como os Micro-Estados e os Pretending-States do Pacífico. Em termos conceptuais tudo significa que diminui a capacidade de o Estado realizar os objectivos para que foi inventado, e que crescem em número os elementos do sistema em que se integra mas cuja regência lhe escapa. Portugal, como muitos outros Estados, na Europa e fora dela, tende para exíguo, pelo que a soberania, mantendo o nome, está em causa no que respeita às capacidades efectivas que a integram, e também no que respeita à definição das áreas que lhe são reservadas.

2. Este fenómeno geral tem uma réplica na tendência para a globalização, que envolve todos os Estados numa teia de complexidade crescente, organizando a estrutura geral em grandes espaços intermédios formais e não formais, que não são todos da mesma natureza. Parecem sempre mais evidentes os espaços militares, mas os espaços económicos, os espaços culturais, os espaços geopolíticos, obedecem a conceitos estratégicos específicos e nem sempre coerentes. Tal situação tem expressão directa no facto de que a soberania, em crise como dissemos, não pode hoje ser considerada como um poder monolítico, mas sim como um conjunto de capacidades específicas, que nem todos possuem, e que são exercitadas, cada uma, em circunstâncias diversas. Assim, o Japão não tem capacidade militar, mas tem uma capacidade financeira e tecnológica que lhe dá proeminência na competição económica com o seu vencedor na Guerra de 1939-1945.

Por isso já não é sempre útil o tradicional conceito integrado de balança de poderes, porque a realidade exige uma organização plural das balanças de poderes, militar, económica, científica, cultural. Uma tão radical alteração do sistema euromundista que se desagregou em consequência das guerras civis, chamadas mundiais, de 1914-1918 e 1939-1945, implica talvez a exigência operacional de elaborar um conceito integrado de fronteira política, caracterizado por uma multiplicidade de traçados em função dos objectivos do Estado, das capacidades disponíveis, e dos vários grandes espaços que se cruzam sem coincidências dos limites respectivos.

3. Estas questões da pluralidade das fronteiras e da pluralidade das balanças de poderes afecta certamente todos os Estados, mas seguramente tem maior incidência naqueles que tendem para exíguos, abrangidos pelos traçados de mais de um grande espaço, que vêem limitadas ou eliminadas algumas das capacidades tradicionais, e acentuada a condição exógena.

Aconteceu com Portugal que, na vida da mesma geração, e entre 1939 e 1974, mudou pelo menos três vezes de fronteiras geográficas: até ao fim da II Guerra Mundial teve uma fronteira geográfica multicontinental, mas como vizinhas tinhas apenas soberanias euromundistas, responsáveis por impérios coloniais, que entre si tinham equilibrado os interesses e ambições, não tendo significado a excepção da China na balança mundial de poderes de então (Macau); o processo descolonizador, na sequência da Carta da ONU, manteve até 1974, com excepção do Estado da índia, o traçado físico, mas a fronteira mudou de natureza porque as soberanias vizinhas deixaram de ser euromundistas, passaram a invocar outros valores, e animaram uma conflituosidade geral; finalmente, quando em 1974 o país alinhou com a desmobilização colonial que tinha sido adoptada pelas democracias estabilizadas da frente marítima europeia, regressou à fronteira originária dos 92.000 Km2 europeus, a linha histórica da separação da Espanha politicamente unificadora das outras nacionalidades peninsulares. De então em diante, a questão da pluralidade das fronteiras, que antes já estava apontada nos compromissos internacionais, tornou-se aguda e evoluiu em tempo social acelerado.

O primeiro grande facto político foi a adesão às Comunidades Europeias em 1985, muito como defesa contra a assumida ameaça da sovietização do Estado, mas tendo como efeito principal que a fronteira económica ganhou um especial relevo, sem coincidência com a fronteira geográfica. Pelo contrário, a livre circulação de pessoas, mercadorias e capitais, implicou um processo europeu de transparência das fronteiras físicas, tendendo estas para simples apontamentos administrativos, tudo em obediência a uma teologia de mercado que conduz a substituir progressivamente "a mão invisível" dos teóricos pela autoridade crescente dos órgãos privativos da actual União Europeia.

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A terminologia corrente no discurso político, que descreveu a conduta do país como a de um bom aluno, o que por vezes apoia europessimismos de contestação, diz respeito a uma condição de dependência, que não é apenas portuguesa, visível nas políticas dos fundos estruturais, da pesca e da agricultura, que por vezes anuncia as duas velocidades europeias, e que lavrou para Portugal a qualificação de país periférico.

Um conceito que, dentro da fronteira económica em que foi elaborado, é coerente com a categoria de Estado exíguo para a qual o país tende. Por isso, e na área da sociedade civil que se transnacionaliza ela própria com alguma independência da quadrícula política vigente, a transferência de sectores do mercado e dos comandos económicos para o domínio de capitais estrangeiros, irá progressivamente chamando a atenção dos observadores e analistas, dentro de um grande espaço europeu cujo final modelo político é de configuração incerta, e de marcha imprevisível, mas onde, segundo a regra da hierarquia das potências, a presença directora de algumas parece um facto e talvez um projecto.

4. É por isso que a questão da pluralidade das fronteiras cresce de importância, porque a exiguidade tendencial pode encontrar uma viscosidade favorável derivada da função porventura adquirida e desempenhada em espaços diferentes. Desde a fundação NATO, e portanto durante metade desse século XX a findar, a fronteira de segurança dos aliados não coincidiu com as suas fronteiras geográficas, nem com as suas fronteiras económicas, nem exactamente com as suas fronteiras culturais específicas dentro da grande caracterização ocidental.

Porque 15 anos desse meio século foram preenchidos pela resistência armada portuguesa ao movimento descolonizador geral, também aconteceu que os valores relacionados historicamente com o carácter sagrado das fronteiras geográficas dominaram o discurso governamental, retardando a percepção de que as fronteiras da segurança mais vasta e duradoira seriam as da NATO. Depois de 1974, todos os problemas relacionados com a desconstitucionalização do serviço militar obrigatório, com a profissionalização das Forças Armadas, e até com a proposta que esporadicamente aflora de as extinguir, parecem envolvidos pela falta de uma clara percepção cívica de que as fronteiras de segurança não são as históricas, que os valores em causa são outros.

E pelo que respeita às exiguidade e periferia, a presença portuguesa nos centros de decisão da segurança atlântica, a defesa da manutenção da NATO com conceito estratégico reformulado, o comprometimento americano na Europa, parecem políticas em curso que tendem para contrariar o acentuar da dependência em relação ao dinamizador europeu, cuja vocação directora será reforçada sempre que as fronteiras económicas, as fronteiras de segurança, e necessariamente a fronteira política da União Europeia, tenderem para se aproximarem e para se autonomizarem em face do grande espaço atlântico vigente. É talvez nesta área que se processa o confronto de projectos que mais pode afectar a função portuguesa neste crescer de grandes espaços a caminho da mundialização, cuja alternativa pode ser o desastre geral.

Por um lado, sempre que se acentua a fórmula da europeização da defesa dentro da Aliança Atlântica, em termos de se poder falar de um novo acordo entre dois intervenientes, EUA e Pilar Europeu, Portugal fica na fronteira de articulação interna, com o seu histórico triângulo estratégico, em que avultam a Regiões Autónomas, a fornecer-lhe um poder funcional, que por isso mesmo também é um risco. Depois, sempre que os ocidentais concordam em que o Mediterrâneo cresceu em importância estratégica, e que o corredor do Norte de África é uma zona de inquietação duradoira, Portugal tende para ser conduzido a reconhecer Marrocos como uma segunda fronteira ao lado da Espanha e a assumir que se encontra uma vez mais na necessidade, por razões exógenas, de reformular os seus conceitos de segurança.

Finalmente, é evidência crescente a necessidade de organizar a segurança do Atlântico Sul que resulta da modificação do quadro das ameaças, da alteração dos meios da agressão ao alcance de organizações menores, da multiplicação de soberanias que se verificou na costa africana depois de 1945. Para responder a essa exigência, todo e qualquer projecto previsível implicará mais uma vez que Portugal e o seu triângulo estratégico, o poder funcional que daí resulta com os riscos inerentes, estão envolvidos pelas exigências da articulação e das fronteiras dos sistemas em contacto. Temos pois um país de fronteira e de articulação, e não apenas periférico como lhe aconteceu dentro do espaço económico, mas condicionado pelos factores exógenos em exercício, obrigado por isso a reformular o conceito de soberania: esta terá de ser uma soberania de serviço reconhecido indispensável pela ordem global que finalmente resultar do incerto processo em curso.

5. A fronteira cultural, que recebeu expressão formal com a assinatura em Lisboa, no dia 17 de Julho de 1996, do tratado que instituiu a Comunidade dos Estados de Língua Portuguesa, tem a especificidade de cortar horizontalmente outros grandes espaços, de matriz diferente. E assim que inclui o Brasil que pertence ao Mercosul, inclui Moçambique que aderiu à Comunidade Britânica, inclui S. Tomé que ingressou no espaço da Francofonia, e Portugal pertence a vários grandes espaços antes referenciados. O interrogatório feito pela comunicação social aos representantes dos Estados no acto da assinatura do Tratado, mostra que as grandes inquietações e curiosidades dizem respeito ao economicismo e não ao valores culturais comuns.

Parece todavia errado não valorizar autonomamente as áreas culturais, ao contrário do que faz a Alemanha usando o Goethe Institut para superar a não existência fora da Europa de países de fala alemã, e ao contrário de que faz a França que, na Conferência de Chefes de Estado e de Governo, realizada em 4 de Dezembro de 1995 em Cotonou, anunciou a decisão de criar em 1997, na reunião convocada para a Hanoi, um Secretário Geral do espaço cultural de matriz francesa, reforçando assim a intervenção do Conselho Permanente da Francofonia criado em 1991.

Mais de um país de língua oficial portuguesa não poderá deixar de aderir a espaços diferenciados, mas o espaço cultural ajudará a defender e fazer progredir a identidade própria. De tal modo que até as dependências inevitáveis poderão ser moderadas pela acção colectiva em organismos internacionais, por exemplo na ONU e suas agências especializadas, um facto da maior importância para Estados pequenos ou exíguos. E também para o equilíbrio mundial neste fim de século em que, pela primeira vez na história da humanidade, todas as áreas culturais chegaram ao diálogo internacional com voz própria. Neste caso, usando a língua portuguesa para defender valores comuns que sofreram, em cada latitude e países, sincretismos diferenciadores, mas que nessas paragens asseguram à língua uma capacidade de intervenção que Portugal verá diminuída na União Europeia alargada, e no Oriente quando, em 1999, arrear a bandeira em Macau. Tornar-se-á clara a necessidade, na vasta área do Pacífico, de a defesa da cultura portuguesa ser frequentemente feita noutra língua.

6. A natureza de Estado exógeno, e a tendência para se incluir na categoria dos Estados exíguos que se multiplicaram na Europa e no mundo, tem uma oportunidade de equilíbrio na pertença inevitável a vários espaços, facto este que contrapõe à condição de País periférico a condição de País de fronteira. Existe uma relação entre tal situação e o poder de a gerir, mas não faltam exemplos de êxito nas várias ordens internacional que se sucederam. Talvez neste fim de século em que o Estado soberano está em crise, mas não está em crise o Estado nacional, o conceito renascentista de soberania como poder supremo tenha de ser substituído pelo conceito de soberania de serviço, mais de acordo esta com a transformação da sociedade internacional em comunidade mundial, com a evolução da sociedade civil estadual para transfronteiriça e global, com a ambicionada paz pelo direito que suceda à ordem pela imposição.

Assim como é pelo exercício que o poder político interno é julgado, ganhando e perdendo legitimidade, também pelo exercício se afirma o direito ao lugar independente na comunidade das nações.

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* Adriano Moreira

Doutorado pela Universidade Técnica de Lisboa e pela Universidade Complutense de Madrid. Presidente Honorário da Sociedade de Geografia de Lisboa. Curador da Fundação Oriente. Professor Catedrático do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da UTL.

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