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- JANUS 1997 -

Janus 1997



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Tempo Português

Eduardo Lourenço *

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O nosso mundo, na aurora de um novo milénio, parece-se a um desses grandes aeroportos onde a humanidade se cruza sem se ver. Esta imagem, simbolizando a tão falada mundialização, sugere ao mesmo tempo a dissolução, num gigantesco "maëlstrom", colorido como um carnaval, das identidades históricas e culturais que durante séculos caracterizaram povos e nações. Mas a esta primeira visão de proximidade e quase fusão num banho identitário unido por música de fundo, estilo karaoke e "flashes" em inglês, sobrepõe-se o sentimento não menos forte de que essa festa de unanimismo planetário é também exibição, exaltante ou melancólica, de irredutíveis identidades. A perspectiva de nos dissolver num magma universal de imagens e de vozes, onde a nossa, familiar, está já submersa ou é inaudível, devolve-nos para a espécie de solitude que cada um de nós descobre no seio da multidão.

Como, segundo Pascal, existe uma boa maneira de tirar proveito da doença também para esta, que podia chamar-se a de solidão cultural em tempos de plenitude cosmopolita, deve existir maneira de nos confrontarmos positivamente com o desafio que ela representa, com aquilo que somos ou imaginamos ser como diferentes dos outros, senão únicos. Com a condição de não fazer da "identidade" uma ideia paranóica, autista, fonte das piores aberrações que o século XX ainda não acabou de ilustrar. A única identidade não aberrante é a da nossa comum humanidade. E essa não separa, une. O que separa é a confiscação do que nos é comum em nome de particularismos — religiosos, ideológicos, culturais, civilizacionais — que se instituíram, por contingências históricas, em paradigma da Humanidade.

No registo da violência pura essa tentação parece ter entrado numa fase de acalmia. Numa outra, mais subtil e acaso inesgotável, a tentação não só persiste, mas tornou-se no único centro de interesse da humanidade em luta pela sua própria definição. A Cultura sempre foi isso mas, agora, todo o sentido da aventura humana é em termos de cultura e na arena da cultura que se joga. Com refinamento e em tempo real, soma de todos os tempos, tendo o futuro-presente como seu objecto e sua presa.

Em nome do passado, Portugal há muito se outorgou uma percepção mundialista da História e integrou esse dado na sua particular imagem de povo com vocação universalista. Não está errado, mas mesmo que estivesse, esta mitologia do nosso providencial universalismo cria uma exigência que, sem ela, reduziria a nossa cultura a mera irradiação empírica de povo não-hegemónico numa Europa também já não hegemónica. Graças a essa mitologia, sentimo-nos menos desarmados nesta batalha dizível e indizível de que as identidades e as culturas particulares — mesmo as de maior espessura histórica — são o verdadeiro objecto. Mas este excesso de passado, vendo bem, não nos garante nada. Pode ser mesmo, no seu papel reconfortante, um paradoxal inimigo de nós mesmos. E a duplo título. Por um lado, fazendo-nos crer que em pleno triunfo da mundialização cultural nós já a tínhamos antecipado e que não há nela nada que nos possa surpreender quando somos, ao mesmo tempo, o país de Camões e de Pessoa. Sobretudo, deste último, que já dissolvera o universalismo particularista de Camões no universalismo das puras diferenças — onde todos somos tudo e ninguém. Por outro lado, esta mesma situação pode suscitar um reflexo de pânico, a observarmos que esta mundialização do imaginário do nosso século não se cumpre nem se fala em termos onde ainda seja possível distinguir aquela voz que é só nossa e que mais ninguém ouve, se nós a não ouvimos e a não fazemos ouvir.

Em nome destes dois reflexos, o Portugal dos últimos dez anos — refiro-me àquele que é "cultura" e em termos culturais se manifesta — tem encarado o desafio sem sujeito aparente da mundialização. Por vezes, os dois conjugam-se para nos dar a ilusão de escapar à ameaça de um género novo, a que toca realmente na raiz da nossa identidade, como na de todos os povos em situação não hegemónica: a da passividade ou mimetismo sem precedentes diante de um fluxo cultural de aparência universal no seu anonimato. Na realidade, esse fluxo é o veículo de uma cultura e de mitos historicamente bem definidos, expressão de uma vontade de poderio nunca igualada.

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Num primeiro momento, e muito à portuguesa, assimilámos as ondas dessa cultura mundialista — ou assim apresentada — como se a tivéssemos inventado. De qualquer modo, habituámo-nos a ter a domicílio os ícones de ídolos dessa cultura e, em seguida, a gerir por conta própria os "Woodstocks" do nosso divertimento. Mas, num segundo momento, e sem contradição aparente, reciclámos nos termos mais folclóricos, a referência e os valores da nossa mitologia nacional, na sua versão mais narcisista. É de trás dessa muralha da China do que fomos, ou antes, de um passado voluntária e nada inocentemente mitificado, que nos encerrámos, para que um futuro onde não nos vemos como nos sonhamos se esqueça de nós e nos deixe à glosa interminável da nossa felicidade onírica.

Na ordem quotidiana, Portugal e os portugueses adaptam-se às chamadas necessidades do real com um pragmatismo que espanta numa cultura tão lírica. Na ordem do imaginário esse famoso lirismo, contrariamente ao que se diz, não desmente esse pragmatismo. Mas os seus efeitos são inversos porque o seu escopo não é o de transfigurar ou superar os obstáculos mas de os evaporar. Vamos para o século XXI em carruagem-cama, indiferentes às tragédias do Mundo e às nossas próprias. Os problemas caem-nos em casa já resolvidos. É o Mundo que tem problemas. Não nós. Os portugueses que não pensam assim não são bons portugueses. Nunca o foram. Só a protecção e a glosa da nossa identidade mística lhes interessa.

No tempo de Salazar, imaginou-se que essa maneira nossa de não estar no presente, e diferir simbolicamente o futuro, era o vezo de uma ideologia particularmente conservadora. Não era. Apenas uma expressão coerente dela. Vinte anos após o fim de tão longo reino, — e vivendo-se agora como normalidade democrática envolvidos pelo tempo europeu e pelo mais vasto de uma cultura planetária de estilo americano —, Portugal e os portugueses, ou antes, o tempo português, não mudou de configuração. Nenhum desafio do presente, e no presente, abala esta sublime fidelidade a nós mesmos. Do futuro, que neste fim de século se desfaz mesmo das esperanças que só por ser futuro representa, nenhuma angústia filtra. Mas também nenhum incitamento para querer deixar nele a nossa marca.

A que se deve tão extraordinária capacidade de estar fora do tempo como presente, numa época que se vive apenas como futuro e pura imprevisibilidade? Reflexo de velho povo e velha cultura, conscientes de que o seu embate sério com um mundo tão incontrolável como o que a cada segundo atravessa os ecrãs planetários nos destruiria? Ou íntima convicção de que, mesmo ganha, a nossa aposta num futuro incontornável nunca trará de volta aquela imagem que nós veneramos sob as várias metamorfoses de um Quinto Império? Isso explicaria não só o sucesso de todo o revivalismo que inunda hoje o horizonte da criação portuguesa mas a sua consciente ou inconsciente deriva para lugares e tempos onde essa imagem se conserve ao abrigo da história, até da já transfigurada em mito.

Praticamente, deixámos de ter uma ficção que se ocupe do presente — deste, onde não sabemos quem somos nem o que devemos fazer — salvo sob o véu da alegoria. Consumimos em ficção, a ficção em que voluntariamente nos tornámos. Reciclamos os restos imperiais que é o melhor que temos e único sinal de mútuo reconhecimento. Ao menos, para uso caseiro. Navegando num mar de uma memória, convertida em conto de fadas, sairemos sem nos ferir de um século implacável para os que julgam contornar a realidade sonhando-se por conta do passado os seus senhores. Enquanto o tempo da realidade se nos impõe e nos arrasta sem contemplações, o nosso tempo simbólico converte-o — e não só na ficção — em fantasmagoria virtual.

Como heróis de cavalaria em segundo grau, sujeitos numa história virtual entraremos no século XXI. E com ele, queiramo-lo ou não, na história real, a nossa, de pequeno povo de grandes sonhos compensatórios para que não nos demos conta disso. Será o fim do "tempo português" e o começo do tempo de Portugal, um país como os outros, a contas nunca certas com o Tempo. Quer dizer, com a rugosa essência da Realidade.

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* Eduardo Lourenço

Ensaísta. Professor universitário em França.

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