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ESTE ARTIGO CONTÉM DADOS ADICIONAIS CLIQUE AQUI! Pouco a pouco, vamo-nos habituando a atravessar vilas e aldeias que nada têm a ver com as admiráveis povoações francesas da mesma ambição e dimensão; aqui, o gosto das moradias é quase sempre deplorável, a desordem dos traçados assustadora e o desleixo na conservação das coisas é tristemente manifesto. Compramos um semanário português, e que encontramos? A imagem de um país em que o confronto de ideias ou de projectos parece ter sido substituído por um clima de quezília permanente, e onde a Imprensa, na mira do escândalo que assegure a sobrevivência económica, espreita com volúpia os mais ténues sinais de conflitos entre pessoas (de que o paradigma máximo é a tentativa de encontrar a todo o custo pontos de atrito entre o Presidente e o primeiro-ministro). A chegada a Lisboa também não nos traz apenas alegrias. Se entrarmos pelo lado de Loures e Odivelas, e subirmos pelo que foi em tempos a calçada de Carriche, rumo ao Lumiar, confrontamo-nos com uma espécie de apocalipse urbanístico de tais proporções que se torna difícil perceber se é obra dos homens ou de uma qualquer força demoníaca. Quando, exaustos, depois de uma luta tenaz para ultrapassar as agruras de uma circulação automóvel exasperante, conseguimos um momento de repouso e abrimos a televisão, é-nos lançada à cara, em programas de que nos sentimos envergonhados só de os estarmos a ver, a imagem de um país deprimente e reduzido à sua expressão mais alarve. Felizmente, numa das poucas ocasiões em que vale a pena olharmos para o ecrã, podemos ouvir o Ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho, numa emissão intitulada "Figuras de Estilo", traçar este diagnóstico de grande lucidez: "O problema português não é o de atingir ou não atingir a pós-modernidade, mas, sim, o de desenvolver os valores da modernidade". 2. Eis o problema: saltámos uma etapa, baralhámos os tempos, ficámos no vertiginoso e insalubre enredo de uma imensa confusão. A pertinência conjuntural do chamado "cavaquismo" veio, como inúmeras vezes sublinhei, de uma espécie de curto-circuito entre os valores arcaicos e as instituições da pós-modernidade. Daí a permanente oscilação entre um pragmatismo que incentivava uma modernização quantitativa e mecânica, alheia aos valores da modernidade, e um retorno, por necessidade arfante de um suplemento de alma, às doutrinas mais fossilizadas do conservadorismo. Mas, ao mesmo tempo, a capacidade de sintonizar com o Portugal "profundo" e a desenvoltura de quem se apercebe que as referências políticas tradicionais estão em erosão. No entanto, a partir de certa altura, os mecanismos de oscilação entraram em roda livre, e propagou-se uma desordem improdutiva e fatigante: foi a morte entrópica de um sistema que não soube teorizar a tempo a sua especificidade, e que acabou por tropeçar nos limites estruturais da crise económica. Hoje, quando, no PS ou no PSD, tanto se discute a necessidade de ajustar o funcionamento dos partidos aos dados reais do mundo contemporâneo, sentimos bem que o problema do PS é o de acompanhar e contornar os sinais de crise da modernidade sem deixar de considerar que Portugal precisa urgentemente de se apropriar dos principais valores dessa modernidade em crise. Só assim, e se ainda formos a tempo, o que não é certo, estaremos em condições de contrariar esta espécie de modernização bárbara e lorpa, precipitada, rasca e acéfala, a que parecemos condenados. 3. Talvez uma das melhores maneiras de colocarmos os verdadeiros problemas seja lermos uma troca algo fictícia de correspondência entre "o português europeu" a que Curt Meyer-Clason dá voz na segunda edição dos seus "Diários Portugueses", e João Barrento, publicada no excelente número de "A Phala", com data de Abril/Maio, da responsabilidade da editora Assírio & Alvim. O texto de Meyer-Clason (a quem a cultura portuguesa na Alemanha tanto deve) é de 87, a resposta de Barrento vem nove anos depois, e o desajustamento temporal também explica alguma divergência de sensibilidades, entusiasmos e pontos de vista. A questão que Meyer-Clason põe é a seguinte: "O que é que Portugal pode fazer no mundo, na Europa?" E depois de uma pergunta ("por que é que vocês são tão pouco capazes de tirar partido da vossa identidade?") e de uma verificação sempre actual ("a falta de uma promoção própria planificada a nível internacional"), Meyer-Clason alinha algumas sugestões bem intencionadas: Portugal é mais europeu do que a Espanha, porque é um país mais aberto (embora diga também: "Os espanhóis publicitaram a sua adesão à CE com um programa interno e externo em que investiram milhões"), Portugal tem uma forma específica de viver a Europa e é dessa Europa portuguesa que a Europa de hoje precisa, devemos valorizar o nosso papel de sociedade intermediária entre o espaço afro-brasileiro e o espaço europeu, devemos promover "um humanismo luso-europeu" baseado na sobriedade, na solidariedade e na pobreza redignificada. A reacção de João Barrento é extremamente significativa. Partindo do princípio de que "a cegueira conserva e a vista consome", Barrento fala-nos do que vê e do modo como uma tal visão o impede de qualquer forma de optimismo. Tudo está em marcha acelerada, e num andamento que parece irreversível, a Europa não precisa de nós e não quer nenhuns bons ofícios mediadores, a ideia de um humanismo luso-europeu apoiado em algumas virtudes austeras foi já cilindrada por um modelo de sociedade capitalistamente calculista e culturalmente americanizado. 4. A verdade é que foram feitos alguns esforços para inserir Portugal no espaço cultural europeu: depois do trabalho regular e admirável da Fundação Calouste Gulbenkian, hoje retomado e actualizado pelas potencialidades do Centro Cultural de Belém e pela magnífica programação da Culturgest, depois de iniciativas especiais como a Europália (cujos efeitos positivos ainda hoje são visíveis), da Lisboa 94 e da Expo 98, a imagem portuguesa no mundo começa a ter alguns contornos em meios receptivos (é o caso do cinema, é o caso da dança, é o caso da literatura). Mas também é verdade que essa imagem é ainda insuficiente e avulsa, e que as grandes cidades portuguesas não estão ainda integradas nas redes culturais europeias (basta folhearmos uma revista internacional de artes plásticas ou de música para nos darmos conta disso). E devemos reconhecer que os valores culturais africanos ou brasileiros não precisam de nós para se tornarem internacionalmente conhecidos: é a França que revela Cesária Évora aos portugueses, e não os portugueses que a fazem conhecer aos franceses; e Mia Couto vai-se impondo pela sua qualidade intrínseca. E, se existem hoje valores incontestáveis na produção cultural portuguesa, há muitas vezes entre eles e um exíguo, sufocante, esganado meio português uma espécie de conflito insanável: os casos de Oliveira, Maria de Medeiros ou Saramago são bem sintomáticos. Barrento sublinha o que Meyer-Clason diagnosticou: que Portugal não tem qualquer visibilidade internacional do ponto de vista económico, militar ou político. E daí a frase que repete com alguma irónica insistência: "Resta-nos a cultura, claro". Mas para que este resto tivesse sentido talvez fosse preciso que esta Europa fosse um pouco outra e que Portugal e os seus governantes se reconhecessem melhor na outra do que nesta. Tal como as coisas estão, as esperanças são escassas. O Governo tomou recentemente uma decisão importante: a de dar prioridade a uma política cultural voltada para os espaços de língua portuguesa. E disso foi sinal inequívoco a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Ela baseia-se num elemento comum por todos cantado e celebrado: a língua portuguesa. Amplamente se tem repetido que o português é a terceira língua europeia mais falada no mundo. Contudo, este enunciado pode ser transformado em canção de embalo se não tivermos em consideração que uma coisa é o peso demográfico e outra o peso simbólico de uma língua: é por isso que os "bateaux-mouches" do Sena continuam a falar em espanhol, alemão ou italiano, mas não em português. O peso do português pode vir de factores económicos, turísticos ou políticos. No caso do português, contam mais as culturas, seja a brasileira ou a nossa, a angolana ou a cabo-verdiana, do que outra coisa. Donde, poderemos tirar três conclusões provisórias: a) Não devemos separar uma política da língua de uma política da cultura; as duas têm o destino ligado; Em tempos, foi criada uma Comissão Nacional da Língua Portuguesa, superiormente dirigida pelo Prof. Vítor Manuel Aguiar e Silva, mas depois ela foi morrendo à míngua de recursos, e hoje parece inteiramente esquecida ou recalcada. Estamos assim na estranha situação de haver, e muito bem, um Instituto Internacional da Língua Portuguesa, sem que exista uma política nacional para a língua portuguesa. Quanto ao plano cultural, precisaríamos de passar das grandes ou pequenas iniciativas mais ou menos desgarradas para uma política cultural externa portuguesa que fosse não apenas de todo o Governo, mas também de todo o País. O que implica coordenação de esforços, distribuição equilibrada de recursos, escuta atenta e democrática de actores e agentes culturais, sensibilidade às diferenças regionais no espaço português, empenhamento económico efectivo e múltiplo, definição de prioridades de um modo não casuístico, construção de estratégias por domínios culturais e por áreas geográficas. Só assim podemos conservar a esperança de um dia nos orgulharmos de um Portugal plena e descomplexadamente europeu, plena e dinamicamente lusófono e plena e reconciliadamente moderno e português. Trabalho não falta — esperemos que o resto também não.
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