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- JANUS 1997 -

Janus 1997



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“Moeda Única”: Francesa ou Alemã

Francisco Corrêa Guedes *

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Toda a gente sabe que só haverá «moeda única» se a Alemanha o quiser! Mais ainda: só a Alemanha reteve a liberdade de «abandonar» o navio, se lhe convier. O Tribunal Constitucional, o «Bundesverfassungsgericht», determinou, por Acórdão de 1993, que o governo federal abandonará a UEM, se a inflação for alta demais, significando que não se terá cumprido a prometida «Stabilitatsgemainschaft», a Comunidade de estabilidade.

É como reconhecer ao «capitão» o direito de ser o primeiro a fugir logo que haja risco de naufrágio! A finalidade deste dispositivo é a de convencer o povo alemão de que o EURO é o DM com pó de arroz e de que o BCE, o futuro Banco Central Europeu, é mais uma sucursal que o Bundesbank vai manter em Frankfurt.

Até à débacle do verão de 1993 a França sonhou ter descoberto a estrada de Damasco para a moeda única. Decerto, recebera para isso muitos encorajamentos. O Comité Delors contou com a presença de um agnóstico com o peso de Karl Otto Pohl, a assinatura de Maastricht sancionou o plano francês e o empenho dos políticos da direita alemã foi precioso, ao obrigar o BUBA, sempre recalcitrante, a não inviabilizar a ideia. Ela baseava-se no «franco forte» amarrado ao marco, e a constituir uma âncora que, suavemente, seguindo um «gliding path», acabaria por confundir-se com a «moeda única».

Para os alemães, a «MU» já há muito existia, na prática. Era o Deutsch Mark, com vários satélites, como o florim, o franco belga, o xelim austríaco que o seguiam, como sombras. Se os franceses desejavam, como lhes é peculiar, o protagonismo, também daí não vinha mal ao mundo! O pior era que a «moeda única» que os franceses queriam era um «artefacto», no mesmo sentido em que, na biologia o é a «Chimera», um animal experimental, combinação de vários outros e frequentemente de sobrevivência curta e improvável. Por isso, à cautela, os alemães impuseram «os seus» «critérios de Maastricht», deixando em aberto que, se necessário, ainda os tornariam mais severos para só deixarem entrar quem eles quisessem. Os franceses tiveram que aceitar, vagamente tranquilizados pelos anos recentes de boa vontade do BUBA. Sabe-se o que aconteceu: a reunificação alemã desintegrou o plano francês e deu lugar à «moeda única» alemã, o EURO, ordenada por Kohl, já em 1996.

Os «critérios de Maastricht» haveriam de conduzir à presente situação da economia europeia, que a OCDE no seu mais recente Economic Outlook caracteriza como algo de inédito na história dos últimos vinte anos. Trata-se de facto da tentativa simultânea de todos os países de reduzirem os seus défices. Normalmente isso deveria conduzir a uma monumental Depressão e a OCDE interroga-se sobre os estranhos tempos em que vivemos.

Paris vê-se pois, numa conjuntura fortemente recessiva, obrigada a praticar uma política fiscal contraccionária e a viver os sobressaltos trimestrais das reuniões do Conselho do Bundesbank que decidem ou não decidem baixar uns «pózinhos» nas taxas de juro que permitam aos franceses tentar por via monetária aquilo que lhes está proibido por via fiscal. Afinal, tudo para manter viva a ficção de que o franco não se afastará do marco mais do que 2.25%, agora que já nem o SME o exige! E o governo garante que cumprirá Maastricht, com uma segurança que autoriza a temer ver nos «boulevards» os canhões da tropa disparar sobre o povo revoltado em mais um Outono de barricadas.

 

A aventura em Portugal

Fora do enredo entre franceses e alemães e seus satélites, os outros países membros da CE, seduzidos pelo «canto da sereia» de maior fartura de fundos de Bruxelas, declararam-se prontos a dar a vida por uma dama a quem nunca viram o rosto. Foi o que aconteceu com Portugal! A construção europeia respeita às liberdades do mercado e às da circulação dos factores de produção. A Moeda única não deveria contribuir, na prática, para a negação dessas liberdades que, em teoria, afirma querer reforçar. Ora quando um profissional português comparar os 1000 EURO do seu salário com os 2000 EURO do seu homólogo espanhol, não emigra para Espanha onde ninguém lhe dará emprego, mas decidir-se-á de imediato em activar-se para as lutas que os sindicatos vão desencadear por salários nominais em Portugal que acelerem a convergência com os europeus. Mas também se dará conta dos riscos que corre!

O desemprego no seu país é tão elevado e ameaçador que, se ousa reivindicar, ainda acaba por perder o (mau) emprego que (ainda) tem! Conclusão: a «MU» impor-se-á a Portugal pelo terror... de perder o emprego. Haverá no entanto quem tenha a coragem, animada afinal pela cólera dos logrados na sua boa fé, de avançar com a «justa luta». O povo foi enganado! Enquanto a plena liberdade de circulação do capital, funcionou a preceito, permitindo aos «yuppies» os lucros especulativos e aos empresários estrangeiros explorar a barateza do trabalho português, as profissões portuguesas ficaram manietadas na clausula de genuíno «Catch 22» que Maastricht apurou com perversidade florentina. Quem manda é o Banco Central Europeu que não tolerará que o Orçamento português comporte uma rubrica para fazer justiça aos trabalhadores portugueses. Que saída?

 

Sofistas e Sacerdotes!

Génese e consequências da «MU» são, senão exclusiva, essencialmente políticas. Mitterrand fez-se, com Kohl, co-autor de Maastricht, por pensar ser a única alternativa para atrasar o caminho inevitável da hegemonia alemã. E o potencial das consequências geopolíticas daria para obras compactas de profecias, capazes, se escritas com talento, de inspirar horror pelo futuro. Ora a «MU» é, no essencial, obra de economistas que se têm mostrado mais hábeis a prever mosquitos do que a prever elefantes. E certo também que as catástrofes que eles são capazes de desencadear não têm, em regra, comparação com as façanhas dos políticos. Mas desta vez é tão grande a desproporção entre as vantagens que são prometidas pela «MU» e a formidável empreitada que vai afectar centenas de milhões de vidas, que a gente pasma, não sabe se do atrevimento da coragem, se da coragem do atrevimento!

É por isso ainda muito mais surpreendente que a «MU» seja, afinal, obra de um pequeno número de apóstolos muito influentes e cujas convicções foram dando lugar a um fanatismo em crescendo proporcional às resistências opostas pelos não convertidos. É da «natureza humana»... quando se adora o Sol, como os aztecas, o que mais interessa é proibir o estudo da Termodinâmica.

Em toda a literatura respeitante à Comunidade Europeia e anterior a 1988/89 (incluindo Acto Único e Relatório Ceccini!) nem uma única vez se regista a designação de «Moeda Única» nem a de Banco Central Europeu! Nem um dentre os mais acrisolados combatentes da moeda única pronunciou essas palavras, hoje quase mágicas, antes de 1988! Mas depois!...

Se me fosse sugerido escolher um desses autores como paradigma do combatente e das suas armas, sugeriria Daniel Gros, um professor alemão que trabalha em Londres para o Centre for European Policy Studies, que se tem comportado nos últimos tempos como uma espécie de «Companhia de Jesus» da religião da «moeda única»! Regular adjudicatário das encomendas dos Bancos Centrais e em especial do Bundesbank, vem escrevendo aquilo que eles mais gostam de ouvir.

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(Para um...)... tratado da Federação Europeia!

Daniel Gros foi um dos autores do Manifesto (Panfleto?) «Um Mercado, uma Moeda» por encomenda da Comissão. O título da obra depressa se tornou um estribilho mediático para consumo de todos os que não têm tempo nem possibilidades de reflectir sobre o assunto pela sua própria cabeça. Escrevendo em Março de 1992 num livro de co-autoria com Nyls Thygesen, outro apóstolo, a um par de meses, apenas, de distância da grande crise do verão, afirmava peremptoriamente sobre o SME, que não haveria nos anos 90 quaisquer «solavancos cambiais!».

Em 1995, o Livro Verde da Comissão (verde de «esperança, embora o tom peremptório do documento não admita a mais leve dúvida!...e, sem dúvidas, a esperança torna-se uma pura ociosidade!) produzido para explicar minuciosamente como a «MU» surgirá, como uma fada, nas nossas vidas, dava, na sua Introdução, um exemplo magnífico do pensamento circular que caracteriza o sofisma, a que largamente a defesa da causa recorre, já que, como em muitas outras experimentações de engenharia social, «o fim justifica amplamente os meios».

Referindo-se à recessão europeia e às excessivas flutuações cambiais (consequentes ao projecto de MU) o Livro Verde declara que se já existisse a «MU» a União teria suportado melhor estas crises! Voltando a Gros, em 1996 vem de novo explicar como tudo aconteceu e como foi bom que tivesse acontecido assim. O seu «paper», mantendo o vigor apologético de sempre, é, contudo, de leitura preciosa para os críticos do projecto, devido a três afirmações que o autor repete, enfaticamente. Primeira, que a «MU» não vai contribuir, rigorosamente nada para suavizar o desemprego na Europa. Segunda, citando as suas próprias palavras, «...que se surgirem exigências (nacionais) para a igualização dos salários nominais, será melhor desfazer a UEM a tentar combater as consequências por outros meios», (ver acima).

Finalmente terceira, a mais carregada de grandes implicações contem-se numa simples frase da página 85. Traduzo... «O conflito potencial entre a proibição de défices excessivos e o princípio de que a soberania fiscal permanece no nível nacional não pode ser resolvido de outra maneira que não através duma revisão do Tratado que torne a continuação dos deficites excessivos incompatível com a pertença à UEM». Eis a prefiguração do Tratado da Federação Europeia.

 

Credos e Sofismas

Limito-me a breves referências sobre quatro dos preceitos mais circulados na opinião favorável à «MU», procurando pôr em evidência o enviezamento da argumentação que os sustenta.

Primeiro, que a unificação do mercado americano se deveu à existência de uma moeda única. A «MU» na América foi resultado duma história irrepetível na Europa, assenta numa forma de «federalismo fiscal» -aliás não muito diferente do alemão! - e é sustentada por um grau de liberdade no movimento dos factores de produção, em especial do «trabalho», pouco menos do que inexistente na Europa. Tudo junto determina a rigorosa ilegitimidade da analogia.

Segundo, que um mercado único exige uma moeda única. É um apriorismo indemonstrável e a sua pertinência argumentativa compara-se à da alternativa de que um mercado único exija uma língua única. Terceiro, a arbitrariedade e a «contradição interna» dos critérios de convergência que sobreviveram à catástrofe cambial de 1993 é largamente reconhecida por todos que se não colocam relativamente à «MU» na posição marxista de a considerar uma «inevitabilidade da História».

E Quarto, quando se entrega a um Banco Central único o monopólio da oferta da «base monetária», a falácia da UEM torna-se então monumental: pretende-se que a submissão de 15 moedas diferentes numa única é melhor para todos. Nem sequer se guarda a modéstia de sugerir que, não sendo, obviamente, um óptimo de 1ª espécie, talvez pudesse sê-lo de «2ª espécie», se fosse possível demonstrar (que não é!) que os países que «ganham» estariam em condições de compensar os que «perdem» e mesmo assim conservar um saldo final positivo. Fica então consagrada uma admirável ficção – mais pelo descaramento do que pelo conteúdo – de que se maximizará a «função de Bem Estar» do ente único e supremo (governo federal? Comissão Executiva do BCE?) na qual se teriam fundido «as partes» ao renunciarem às suas próprias «funções de bem estar».

 

Lei e Corolário de Murphy !

A lei de Murphy diz que «se alguma coisa pode correr mal, correrá mal» e um dos seus corolários afirma que «qualquer solução cria novos problemas». O presente período de transição que se estende até 1 de Janeiro de 1999, dia do início da «terceira fase da MU», poderá ser boa ilustração dessa lei e desse corolário. Longe de ser exaustiva aqui fica uma lista das «dificuldades».

1. Critérios de qualificação das moedas – aplicação estrita ou «flexibilizada» de modo a fazer entrar quem «interessa» (mas, neste caso, como deixar alguém de fora?)

2. Poderá um SME 2, cuja necessidade foi sentida à última hora, funcionar a preceito?

3. Como se evitará a especulação que poderá rodear o «minuto final» das moedas antes da «amarração definitiva» das paridades?

4. ...e a especulação sobre as moedas que ficam de fora?

5. Como e quando resolverão os países os problemas da informação estatística monetária e financeira, completamente diferente de país para país e como vem sendo vivamente reclamado pelo EMI?

6. Quais e quantos países estarão preparados a tempo, exemplo, a alteração massiva dos softwares dos sistemas informáticos que se complicará ainda com o inicio do século XXI cujos anos se numeram 20 — e não mais 19 —?

7. Como e se resolverá a querela acerca do TARGET, a ligação electrónica entre Bancos Centrais e por onde fluirão, em tempo real, as instruções da política monetária do BCE? Poderão os países que «entram» excluir do TARGET os que ficam de fora?

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* Francisco Corrêa Guedes

Engenheiro. Economista. Docente de Economia Internacional na UAL.

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