Pesquisar

  Janus OnLine - Página inicial
  Pesquisa Avançada | Regras de Pesquisa 
 
 
Onde estou: Janus 1998 > Índice de artigos > Conjuntura Internacional > [O mundo está mais americano?]  
- JANUS 2004 -

Janus 2004



Descarregar textoDescarregar (download) texto Imprimir versão amigável Imprimir versão amigável

ESTE ARTIGO CONTÉM DADOS ADICIONAIS seta CLIQUE AQUI! seta

O mundo está mais americano?

José Manuel Durão Barroso *

separador

Os Estados Unidos da América são hoje a primeira potência militar, económica, científica e tecnológica, e cultural (em sentido amplo) do mundo. Sem qualquer poder capaz de desafiar a sua supremacia, os EUA beneficiam com o fim da confrontação Leste-Oeste, que exprime a sua vitória estratégica e o correlativo triunfo do sistema político-económico por eles sustentado. Para além da apoteose do capitalismo, presenciamos também a disseminação da democracia pluralista que os EUA defendiam na sua oposição ao modelo comunista, não hesitando, contudo, em apoiar regimes autocráticos sempre que a alternativa democrática não lhes parecia disponível.

A hegemonia norte-americana baseia-se, antes de mais, na sua superioridade militar e na enorme desproporção da sua capacidade neste domínio relativamente a qualquer outra potência. Mas, para além deste hard power, o domínio mais efectivo dos norte-americanos assenta no seu soft power. Com certeza que os EUA detêm a ultima ratio da força militar, mas a sua influência estrutural reside, não no Pentágono, mas sim em Harvard, Hollywood, na Microsoft ou na CNN. Em larga medida graças a esse poder, os EUA não só controlam a agenda política internacional, mas também condicionam a evolução dos próprios movimentos intelectuais e culturais no plano global.

As elites mundiais (na política, nos negócios, na diplomacia, etc.), quando decidem, baseiam-se extensamente em informação criada ou veiculada pelos norte-americanos. Da CNN ao International Herald Tribune passando pelo Wall Street Journal ou até por esse revolucionário sistema da Internet, se hoje há um princípio de estruturação da sociedade global, ele é sem dúvida norte-americano. A globalização emergente vai-se consolidando através da utilização do inglês, verdadeira "língua franca" universal. Sem dúvida que essa informação traduz uma visão pluralista do mundo, mas seria ingenuidade pensar que toda ela é inocente e que não existe em pontos estratégicos desse sistema de comunicação uma mobilização das preferências culturais e intelectuais (e até de gosto) em sentido favorável aos interesses norte-americanos.

Não deixa de ser curioso, por exemplo, o facto de no domínio da moda — o qual, apesar da aparente futilidade, exprime tendências extremamente reveladoras no que diz respeito à dominância de estilos de vida ou sistemas de valores — os EUA aparecerem hoje à frente de países como a França e a Itália. E, significativamente, são algumas marcas nova-iorquinas e californianas de roupas e de cosméticos que hoje apresentam como imagem a própria bandeira nacional, assim cativando em todo o mundo consumidores que cada vez mais aderem ao modo de vida, hábitos e costumes norte-americanos.

Aliás, no domínio cultural a América tornou-se foco de irradiação a partir da sua constituição como centro receptor e distribuidor de informação. Dir-se-ia que, sistemicamente, as trocas culturais no plano global carecem de um centro relativamente ao qual se exerça uma certa reflexividade. Hoje em dia a América fornece ao mundo esse espaço crítico de contacto e reflexão sobre si mesmo. A Europa, por não ter um centro indiscutível de retransmissão dessas trocas culturais (talvez felizmente, do ponto de vista do equilíbrio entre as diferentes potências europeias), vai buscar aos EUA esse efeito que lhe faz falta para a comunicação cultural. Um aspecto extremamente relevante deste soft power resulta de se apoiar quase exclusivamente no sector privado. Quer as principais universidades, quer as empresas de tecnologia de informação, quer os grandes órgãos de comunicação social são privados.

Para além de assim se demonstrar a vitalidade e sofisticação da sociedade norte-americana (que alguns meios europeus descrevem com traços simplistas como uma sociedade mais "primária" do que as suas), o que isto quer dizer é que o poder cultural lato sensu dos EUA é mais dinâmico e muito menos vulnerável do que o de qualquer potencial rival. Precisamente por assentar no sector privado, ainda que com pensamento estratégico subjacente ao nível do sistema político, a influência cultural americana está menos dependente das flutuações macro-económicas do que os comparativamente frágeis poderes europeus, sempre com a tenaz dos orçamentos de Estado a comprimir as iniciativas — aliás, relativamente inconsequentes — de projecção cultural externa.

A força política da sociedade americana não resulta apenas da extraordinária vitalidade do seu mercado nem tem a ver essencialmente com a sua riqueza económica. Ela assenta antes no "credo americano", um conjunto de valores extremamente poderosos do ponto de vista da mobilização de recursos. Existe na América a convicção profunda da superioridade do seu sistema. Os mitos fundadores estão constantemente presentes ao nível político e, embora o registo oficial seja laico, a verdade é que se percebe uma estranha penetração de valores religiosos na configuração sócio-política dos EUA.

O contraste com a Europa chega a ser brutal. Nesta, nota-se o peso do cepticismo e até de um certo niilismo. Nos EUA, apesar do espírito crítico presente em todos os níveis da sociedade, verifica-se que aquele tende a desaparecer quando algo põe em causa a hegemonia norte-americana no plano externo. Dir-se-ia que existe nos EUA a certeza de lhes caber um papel insubstituível e que a sua liderança é quase um dever. Embora isso cause surpresa e incómodo à sensibilidade dos seus interlocutores, a verdade é que quando o Presidente dos EUA ou o seu Secretário de Estado vão às Nações Unidas "tranquilizar" o mundo comunicando à Assembleia Geral que o seu país continuará a assegurar a liderança, isto é dito com imensa convicção e aparentemente com o sentimento de se estar a prestar um serviço.

Topo Seta de topo

Esta convicção e este sentido de responsabilidade constituem a força psicológica dos EUA. Aqui reside uma clara vantagem relativamente à generalidade das outras potências e, seguramente, face a uma Europa sem sentido estratégico. Com efeito, para projectar o poder no plano internacional, não basta ter os recursos. É preciso sobretudo querer utilizá-los. No plano político internacional propriamente dito é o paradigma imperial o mais apropriado para descrever a relação de Washington com o resto do mundo. Ainda que, pelo menos do ponto de vista ocidental, se trate de um império benevolente ou consentido, a verdade é que estamos perante uma relação de poder que não deixa de se definir como hegemónico. Apesar de aqui e além se ouvirem ainda vozes isolacionistas, tudo indica que os EUA querem manter-se como única superpotência. Daí o recurso a uma política de afirmação à escala global. Conscientes da sua superioridade, mostram-se dispostos a exercê-la, como o ilustra a experiência da ex-Jugoslávia. Multilateralismo sempre que possível, unilateralismo quando necessário, parece ser o lema da orientação diplomática norte-americana a qual não deixa dúvidas quanto à sua determinação no recurso à força quando considera estarem em causa os seus interesses vitais.

Assiste-se, contudo, mesmo entre os que defendem uma visão mais internacionalista, a um posicionamento diferente daquele que vigorou durante a primeira fase do poder imperial norte-americano. Então, como atesta a genial criação do Plano Marshall, os EUA estavam prontos a exercer a sua responsabilidade global pagando por isso um preço elevado não só em matéria de defesa colectiva mas também em termos económicos. Hoje a América considera que já fez suficientes ou até excessivos sacrifícios e que a Europa ou o resto do mundo terão que partilhar os encargos se quiserem beneficiar das garantias norte-americanas. Por isso os EUA estão hoje naquela posição típica dos impérios que querem que os outros paguem para que eles exerçam o papel hegemónico. Veja-se o que se passou relativamente à coligação contra o Iraque após a invasão do Kuwait.

É tal a supremacia norte-americana que aquele país se vê muitas vezes numa posição de autêntico "notário" à escala global, ou seja, o responsável por conferir autenticidade ou credibilidade a uma qualquer entidade ou actuação no campo internacional. Acontece ainda ser também o mediador mais requisitado apesar de, em muitas situações, como o Médio Oriente, não se apresentar de modo algum como imparcial.

Por todas estas e outras razões, a posição norte-americana tende a ser vista como arrogante e provoca mesmo entre os seus aliados um ressentimento cada vez menos disfarçado. O modo brusco como os EUA substituíram o Secretário-Geral da ONU, o atraso no pagamento das suas quotas a esta organização, a forma como decidiram quais os países que deveriam para já entrar na NATO, e muitos outros exemplos que poderiam ser dados, alimentam uma situação tendente a criar alguma competição diplomática nomeadamente por parte da União Europeia. Mas a ambiguidade dessa relação está bem expressa no facto de os próprios europeus continuarem a pedir aos norte-americanos que mantenham a sua responsabilidade liderante no sistema colectivo de defesa, o que tem vindo a acontecer no âmbito da NATO.

É que o poder norte-americano baseia-se também na sua capacidade para a criação de instituições que souberam consolidar-se em diferentes conjunturas. Para além da NATO, a OCDE, o GATT e as instituições de Bretton-Woods aí estão a testemunhar um génio institucional que traduz uma das formas mais inteligentes da influência no plano internacional. Uma questão que se pode colocar é a de saber se esta supremacia poderá no curto ou médio prazo vir a ser contrariada. Existem também alguns relevantes argumentos neste sentido. Por um lado, nota-se já a tendência para se formarem certos equilíbrios por contraposição ao poder norte-americano. Veja-se o recente entendimento entre Moscovo e Pequim. Por outro, alguns autores falam também na "erosão" do interesse nacional norte-americano sustentando que a influência externa bem visível nos financiamentos da última campanha eleitoral traduz o facto de os EUA estarem, também eles, a ser penetrados por importantes interesses estrangeiros. E um aspecto não despiciendo neste contexto é o de esses interesses se encontrarem normalmente associados a "Constituencies" internas.

Embora tais argumentos mereçam atento exame, parece-nos que só reflectem uma parte da realidade. No plano global a tímida tendência para um reequilíbrio de poderes não põe de modo algum em causa a hegemonia norte-americana. As próprias potências que mostram algum incómodo relativamente a esta, procuram, contudo, ter na relação directa com os EUA um dos aspectos decisivos do seu posicionamento externo (veja-se o caso da Rússia). Por outro lado, a alegada influência de interesses externos, se bem que real, é também um modo de os EUA se "internacionalizarem". Pela sua acrescida capacidade de abertura e de integração, este país coloca-se numa posição única para fazer face a um mundo cada vez mais globalizado.

Respondendo pois à questão de saber se o mundo está mais americano só se pode dizer que sim. Mas o mundo também está diferente e os EUA acompanham talvez como nenhuma outra potência essa capacidade de se adaptar e de integrar esses crescentes níveis de diferença, de variedade e de complexidade.

separador

* José Manuel Durão Barroso

Professor Convidado da Universidade de Georgetown (EUA). Director do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Lusíada.

separador

Dados adicionais
Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas
(clique nos links disponíveis)

Link em nova janela O mundo está mais americano?

Topo Seta de topo

 

- Arquivo -
Clique na edição que quer consultar
(anos 1997 a 2003)
_____________

2003

2002

2001

1999-2000

1998

1998 Supl. Forças Armadas

1997
 
  Programa Operacional Sociedade de Informação Público Universidade Autónoma de Lisboa União Europeia/FEDER Portugal Digital Patrocionadores