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Onde estou: | Janus 1998 > Índice de artigos > Olhares sobre Portugal > [Portugal visto de Casablanca: E o período árabo-muçulmano?] | |||
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Eu tinha uma representação estereotipada dos europeus, feita de olhos azuis e cabelos claros. Mas em Portimão, onde fizemos a nossa primeira paragem, tomei muitos portugueses por concidadãos. Lembro-me de ter abordado um rapaz na esplanada de um café e de lhe ter perguntado se era marroquino. Lembro-me também de que isso o chocou, e de que atribuiu a uma exposição sazonal ao Sol a cor da sua pele. Voltei a Lisboa em finais de 1979 para aí permanecer por dois anos, porque tinha em mãos uma investigação que conduziria no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Confirmei então a beleza da cidade e continuo a considerar esses dois anos como dos melhores de toda a minha vida. A primeira coisa que fixa a atenção do visitante estrangeiro em Lisboa, mas também no resto do país, é, penso, o comportamento da população na rua. A começar pela propensão para ajudar os outros: se alguém surge com um bebé nos braços, não lhe é difícil encontrar lugar para se sentar no autocarro ou no metro. São várias as pessoas que se erguem para lhe oferecer o seu lugar. Um estrangeiro não tem dificuldade em encontrar o seu caminho, e pode suceder que uma pergunta fortuita dê origem a uma longa amizade. Em Agosto de 1977 perguntei a um jovem que esperava um autocarro como chegar ao centro da cidade. Propôs-se acompanhar-me pessoalmente à embaixada de Marrocos e à Torre do Tombo. Ficámos amigos. Conheço vários marroquinos que confirmam a minha impressão e contam ter beneficiado dessa disponibilidade e gentileza dos portugueses. O fenómeno da "bicha" em Lisboa é outra manifestação do civismo local. Por todo o lado se vêem longas filas de pessoas à espera de transportes públicos e, por vezes, até nos restaurantes populares e nas "tascas", à espera de lugar. Mas nunca vi empurrões ou acotovelamentos à chegada do autocarro ou do metro. Achei que as pessoas tomavam os seus lugares com uma espantosa disciplina. Também admirei nos portugueses o seu espírito tolerante e a ausência de comportamentos racistas. Nunca me senti estrangeiro em Portugal e ninguém, em Portugal, me recordou que eu o era. No entanto, o facto de eu ser marroquino evocava inevitavelmente, em todas as ocasiões, a desastrosa expedição de D. Sebastião no meu país e as consequências dessa expedição no que veio a ser o futuro de Portugal. Portugal surgiu-me como um país orgulhoso da sua história e muito ligado ao seu património. Tal foi-me evidente pela abundância, variedade e riqueza da documentação que a Torre do Tombo guarda, agora no novo edifício que faz jus à sua importância. Tive a sorte de investigar, durante anos, as relações luso-marroquinas, e pude dar-me conta do número impressionante de documentos cuidadosamente arquivados, entre os quais pergaminhos perfeitamente conservados e de valor inestimável. E o país conta com numerosas outras bibliotecas e reservas documentais. O rico património, acrescentado à beleza das paisagens e das praias, sobretudo as algarvias, colocam o país entre os mais belos do mundo, o que lhe permite tirar bom partido dos fluxos turísticos. Acho admirável que Lisboa tenha sabido, a um tempo, modernizar-se e manter o seu "cachet" antigo. A "Baixa" continua a ser um coração vivo. Mas também é verdade que fiquei por vezes chocado com a degradação de alguns bairros antigos de Lisboa ou de Coimbra, por exemplo. Os portugueses, orgulhosos da sua história e das realizações dos seus antepassados, não têm o mesmo sentimento em relação à herança da ditadura. E também constatei que os portugueses, contrariamente ao que se passa com os espanhóis, não se reconhecem no património árabe-muçulmano do seu país, e isto apesar de ele estar tão presente na língua, no folclore, na arquitectura e na toponímia. Sente-se, junto de alguns, um mal-estar ao evocarem esse período pouco estudado da sua história, e que é esquecido por certos intelectuais. O período árabe-muçulmano não foi posto em evidência por nenhum dos grandes historiadores portugueses, que preferem focalizar os seus trabalhos, desde finais do século XIX, na expansão e nas grandes descobertas. Os "arabizantes" são ainda muito raros em Portugal. É verdade que há historiadores que começam a interessar-se por este período, sobretudo em Mértola, onde Cláudio Torres e a sua equipa demonstraram que, apesar dos meios limitados, e graças à perseverança e à abnegação, é possível realizar muitas coisas. Manifestações científicas sobre o mesmo período começam igualmente a atrair investigadores e intelectuais, como sucedeu [em 1997] com as jornadas organizadas pela Câmara de Comércio e Indústria Luso-Árabe, em Lisboa. Mas creio que está na altura de Portugal recuperar a parte árabe-muçulmana da sua identidade, e espero que saiba tirar partido dela, abrindo-se mais ao mundo árabe, sobretudo no domínio do turismo. Vivi, depois de 1979, durante a minha estada em Lisboa, o seguimento da revolução dos Cravos e a consolidação do Estado de Direito no país. Impressionou-me o respeito pelas regras do jogo democrático por parte de todos os partidos políticos, mesmo em situação de maioria parlamentar estreita e de instabilidade governamental. Vi sucederem-se escrutínios com calma e no respeito pelos votos alcançados. Assisti à estabilização de uma alternância "doce" e ao estabelecimento do pólo PS/PSD. Por outro lado, vivi as campanhas governamentais dos anos 80 pela adesão à então C.E.E. e pela integração numa Europa de que Portugal se manteve, por um tempo, isolado. Julgo que o país extraiu importantes vantagens desta adesão, tanto no tocante ao nível de vida dos seus habitantes, quanto no plano das infra-estruturas e da presença activa nos cenários internacionais. Portugal é um país amigo de Marrocos, mantendo-se as relações entre ambos ao nível da excelência. As cimeiras organizadas nas duas capitais e presididas pêlos respectivos chefes de Governo disso dão testemunho. Dada a complementaridade das suas economias e as numerosas oportunidades de parceria, as trocas comerciais entre Marrocos e Portugal têm vindo a crescer. Mas as trocas culturais entre os dois países ainda não estão ao nível desejado por ambos, e é certo que o conhecimento mútuo dos dois povos passa obrigatoriamente pelo enriquecimento deste tipo de relação. A língua e a cultura portuguesas continuam muito pouco conhecidas no meu país, tanto quanto a cultura árabe-muçulmana o é em Portugal. Um esforço especial tem de ser desenvolvido neste domínio.* Achmed Boucharb Director da Faculdade de Letras da Universidade Assan II, Aïn Chok, Casablanca
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