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Modelos concorrentes no sistema internacional emergente

Viriato Soromenho Marques *

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Longe vão os dias em que a política externa e de segurança de um país podia ser definida a partir de um conjunto de axiomas simples. Por exemplo, em 1952, o tenente-coronel Pereira da Conceição podia escrever, sem hesitação ou receio de errar: "Portugal só pode continuar a desempenhar a sua missão histórica e universalista como potência do mar, se se puder apoiar na potência do mar que tenha o domínio do mesmo [...] A aliança única que lhe convém é a da potência que domina os mares, quer ela ontem se chamasse Inglaterra, hoje se chame Estados Unidos, ou amanhã se chame Japão." (Pereira da Conceição, A., A estratégia nunca foi uma ciência puramente militar, Separata da Revista Militar, Lisboa, 1952, p.14).

No final do século XX, depois do colapso da organização da comunidade internacional ditada pela dura disciplina da guerra fria, a certeza de uma tese desse tipo enfraquece substancialmente quando confrontada com a complexidade dos factores de mudança estrutural e conjuntural que marcam a célere e incerta mudança do sistema internacional contemporâneo. A proposta deste breve texto consiste em destacar quatro tendências estruturantes na evolução do sistema internacional, condicionando, por isso, de forma duradoura as decisões nacionais em matéria de política externa e de segurança.

 

O significado plural da globalização

A reconfiguração do sistema internacional não vai depender somente das relações de força de tipo militar. Muitos outros aspectos vão influenciá-la e deixar nela o seu timbre. Com efeito, a supremacia militar não é hoje acompanhada necessariamente pela supremacia económica, nem se harmoniza isomorficamente com os fenómenos de adesão cultural a figuras e atitudes culturais que tendem a tornar-se dominantes.

Em abono do que acima afirmámos estão, por um lado, as assimetrias entre poder militar e económico nas complexas relações entre os Estados Unidos e os dois grandes vencidos da II Guerra Mundial, Alemanha e Japão, e a advertência de Samuel Huntington, na sua última obra, sobre a necessidade de não confundir como sinónimos modernização e expansão universal dos valores do modo de vida ocidental, desprezando assim os fenómenos de ressurreição e reivindicação de diferenças culturais específicas, toscamente integradas no inflacionado conceito de 'fundamentalismo'.

Uma faceta incontornável da globalização — de entre as imensas de que este conceito demasiado abrangente se reveste — é, sem dúvida, o incremento ímpar da integração orgânica das economias, convergindo na plena realização de um mercado e de uma economia mundiais. Essa integração movimenta-se de acordo com uma lógica e forças próprias, criando novas oportunidades em simultâneo com novas ameaças, estruturando ao mesmo tempo que desorganiza, aglutinando no mesmo movimento em que exclui e marginaliza. Uma faceta crucial do processo de globalização na sua vertente económico-social reside na redução da capacidade de manobra do Estado e de outros actores no forjar de soluções políticas para os problemas decorrentes da própria globalização, alguns dos quais põem em causa a cultura e a tradição política dos países desenvolvidos em matéria de direitos sociais.

 

A urgência de um novo papel para o Estado

O Estado encontra-se, por um lado, diminuído no leque dos seus instrumentos de intervenção e, por outro, acompanhado pela concorrência de outros actores na cena internacional. Os analistas dividem-se entre os cenários de futuro. Todavia, só por manifesto erro de análise se poderia prescindir do Estado como entidade central na reconstrução do sistema internacional. Vejamos três vectores que permitem sintetizar alguns desses cenários:

- Transferência de soberania para organizações internacionais: constituiria a realização dos projectos internacionalistas e federalistas, que apontariam para o fortalecimento do sistema das Nações Unidas e para a voluntária, e mais do que improvável, diluição da reivindicação do interesse próprio por parte das grandes potências.

- Fragmentação e diluição: o enfraquecimento das cadeias de comando vertical e hierárquico do Estado moderno, dentro e fora das fronteiras nacionais, através da horizontalização de interesses e grupos de pressão, regionais e transnacionais, apoiados nas novíssimas tecnologias da informação.

- Lógica transgovernamental: a desagregação do Estado seria, neste caso, a condição da sua sobrevivência e da sua capacidade de resposta aos novos desafios. A multiplicação de centros de decisão e estratégia concertada entre deputados, juízes e membros dos executivos num plano de internacionalização em função de áreas temáticas permitiria articular soberania e globalização.

 

O papel decisivo dos EUA

Aos EUA cabe um papel decisivo na evolução do sistema internacional, não tão tanto pela sua capacidade de exercício unilateral de qualquer forma de poder, como era o caso na década de 1945-1955, mas por ser a única potência mundial com autêntica capacidade de iniciativa e mobilização das 'forças livres' no palco internacional.

Os estrategistas norte-americanos multiplicam as categorias prospectivas para o futuro papel dos EUA: globalismo, isolacionismo, multilateralismo, unilateralismo, atlantismo... No entanto, o essencial para um pequeno país como Portugal, ou para essa entidade policromática que é a União Europeia, é não deixar de ter uma atitude activa na promoção dos seus interesses e das suas escolhas estratégicas no quadro das relações com os EUA.

O papel positivo que os EUA poderão desempenhar na reconstrução de uma ordem internacional, mais propícia à resolução pacífica e à cooperação afirmativa entre Estados e outros actores, passa pelo exercício de auto-contenção, nomeadamente, pelo uso comedido do seu poder militar convencional em conflitos de baixa intensidade. Sobretudo, os EUA, se quiserem manter a sua influência, terão de renunciar ao uso unilateral da força bélica, sem suporte nas instituições e no direito internacionais.

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Para além da coluna vertebral da hegemonia

Desde a fundação do sistema internacional moderno, no final da Guerra dos Trinta Anos (1648), que a pergunta acerca do conceito reitor desse sistema coincide com a pesquisa pela potência, ou bloco de potências, que usufrui ou busca a hegemonia. A relativização do poderio militar e a complexificação nas relações de força entre os Estados e os restantes actores da constelação da comunidade internacional obriga-nos a pensar num novo rearranjo da tríade conceptual que preside à formação de regimes nas relações internacionais. Ao primado do poder hegemónico poderá suceder-se uma idade em que se combinam e articulam as categorias dos interesses comuns sustentados no conhecimento e nos valores consensuais partilhados.

A necessidade desse reordenamento encontra-se patente na discussão sobre o direito de intervenção na vida interna dos Estados por razões humanitárias, e na urgência de estruturar modelos de cooperação internacional, mesmo que compulsiva, para fazer face às questões globais de ambiente. Em ambos as promessas de uma concepção tradicional de soberania encontram-se esgotadas.

 

Informação Complementar

Desafios da globalização (um ponto de vista europeu)

• Impotência crescente das políticas reguladoras dos Estados perante o poderio das empresas transnacionais e as operações especulativas do capital financeiro
• A crescente perda de competitividade das economias da União Europeia perante as economias do Japão e dos Estados Unidos
• A emergência de novas economias, disputando uma importante quota-parte do comércio mundial
• Crescimento económico assente em capital e tecnologia intensivos
• Aceitação de uma elevada taxa de desemprego estrutural em virtude do consenso conjuntural em torno de um modelo de jobless growth
• Deslocalização empresarial (exploração das vantagens comparativas oferecidas por outras regiões)
• A deterioração económica, política e social nas regiões envolventes da Europa
• Subversão dos fundamentos da política social e do Welfare State

 

Modelos da ordem internacional

• O Estado Mundial (De Monarchia, Dante, 1310): o mito da unidade cristã: uma religião, uma Igreja, um Imperador
• O 'Estado de Natureza' entre Estados (Thomas Hobbes): sem um direito internacional perfeito, cada Estado pode legitimamente optar pelos meios que julgue convenientes para sua segurança. O resultado é um estado de guerra permanente
• A Realpolitik de Richelieu: o primado do 'interesse nacional' sobre as afinidades ideológicas
• O balance of power britânico: o inimigo é a potência continental virtualmente hegemónica
• O realismo utópico de Saint-Pierre: acreditava ser possível construir a paz na Europa a partir da eternizacão do 'statu quo'
• O modelo liberal da paz mundial pelo comércio: os interesses comerciais comuns atenuariam a agressividade bélica
• O modelo combinado: equilíbrio do poder+comércio livre (Adam Smith): a expressão de uma Grã-Bretanha expandindo-se no mundo, sem esquecer a sua retaguarda europeia
• A ordem internacional insular de Fichte (Der geschlossene Handelstaat, 1800): a aposta num mercado interno auto-suficiente como garantia da segurança dos Estados
• A ordem internacional republicana de Kant: uma organização internacional para a paz implicaria que todos os Estados membros tivessem sistemas políticos representativos
• A ordem internacional das Nações avançadas (Saint-Simon, Comte): as grandes potências materiais e científicas do Ocidente levariam o mundo ao progresso generalizado
• A hegemonia por um sistema de alianças múltiplas de Bismarck, que procurava evitar a formação de uma grande coligação anti-germânica
• A ordem internacional das Nações livres (Wilson), que conduziu à fragmentação dos Estados-nação na Europa pós-1918
• Os Estados provisórios (os socialismos): o mito de que o internacionalismo proletário aboliria os Estados e os preconceitos nacionais
• O mundo bipolar da dissuasão pelo terror da guerra fria

 

Sobre o conceito de modelo nas relações internacionais

A ideia de que os Estados e as Nações formam uma comunidade internacional é praticamente tão antiga quanto a história militar e diplomática. O essencial na noção de que as relações entre actores na cena internacional se estruturam em modelos consiste na determinação, para cada época histórica que se considere especificamente, de um quadro conceptual que permita a previsibilidade e procure garantir a inteligibilidade dos processos, e sobretudo, das relações que roçam a zona tensa dos conflitos.

A noção de modelo permite identificar os valores dominantes numa determinada estrutura histórica das relações internacionais. O modelo não se limita a inscrever a matéria de direito positivo afecta ao 'direito das gentes', ou ao direito internacional público, mas inclui também os aspectos normativos e reguladores implícitos ou latentes, sejam os relativos à esfera diplomática, sejam os que à gestão bélica dos conflitos dizem respeito.

No Quadro "Modelos de ordem internacional" propõem-se à consideração do leitor catorze modelos de ordem internacional, experimentados efectivamente, ou introduzidos como horizonte de referência mais ou menos utópica, desde o final da Idade Média até ao século XX. Cada um destes modelos integra uma densa teia cultural de valores, crenças e cosmovisões. Cada um deles prescreve/prescrevia metodologias específicas para a gestão e resolução de conflitos.

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* Viriato Soromenho Marques

Professor Associado do Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Autor de numerosos trabalhos na área da Filosofia Política, Ambiente e Relações Internacionais.

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