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Participação portuguesa nas correntes humanísticas europeias

Justino Mendes de Almeida *

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Não parecerá estranho se começarmos por dizer que a cultura humanística, proveniente de Itália, entrada em Portugal por 1485, em tempos de D. João II, é uma sequência e uma exigência dos Descobrimentos Marítimos. Os progressos da ciência náutica, a existência de uma literatura de índole ultramarina, a experiência adquirida, com todas as consequências, as viagens miríficas dos navegadores, o achamento de novas terras e novos povos não poderiam deixar de interessar a Europa culta, de tal maneira que era geral a curiosidade despertada por esses acontecimentos, considerados extraordinários, cujos relatos desejava conhecer. Alguns eruditos lhe tinham consagrado já páginas de redacção admirativa, de epistolografia laudatória e de oratória exaltante.

A língua de comunicação era, porém, o latim. Textos em português só a poucos eram acessíveis, e não se pode dizer que abundassem em Portugal os pedagogos na língua do Lácio. Tornando-se imperioso que os responsáveis pelo governo do Estado dominassem esta língua, de que, afinal, a portuguesa derivava "com pouca corrupção", ou tivessem junto de si quem a entendesse, para poderem entender os discursos dos embaixadores estrangeiros e, por sua vez, dar a conhecer, lá fora, as suas mensagens, justifica-se que, da parte dos monarcas portugueses, houvesse a preocupação de preparar os súbditos, transmitindo-lhes o gosto por esses estudos que passam a interessar vastas camadas sociais, e não apenas os nobres que ao princípio tinham esse privilégio. Nestes termos se coloca a vinda para Portugal do humanista Cataldo Parísio Sículo, proveniente de um país que, alicerçado na velha cultura greco-latina, alcançou facilmente a dianteira entre os países cultos do mundo, e a primazia nos estudos humanísticos.

Cataldo chega a Portugal para o desempenho das funções de "orador oficial", que exerce em cúmulo com as de "mestre" de D. Jorge de Lencastre, filho bastardo de D. João II. O desejo de aprender invade naturalmente outras classes, dando origem a um movimento cultural português, no qual se salientam nomes como o de Estêvão Cavaleiro, Francisco Cardoso, Pedro Rombo, Henrique Caiado, os Teixeiras, João Rodrigues de Sá de Meneses, Salvador Fernandes, Martinho Figueiredo, Lourenço de Cáceres. Desejosos de frequentar as universidades e os demais centros culturais estrangeiros, mas sem preparação para tal, não podiam os portugueses alcançá-los sem prévio domínio da língua latina, não com uma preparação qualquer, mas apetrechados com os instrumentos necessários ao domínio do latim ciceroniano. Alguns dos discípulos de Cataldo foram depois professores na Universidade. E o caso de Pedro Rombo, mestre de Gramática e comentador da Gramática dePastrana. Entre os discípulos de Cataldo, ou seus correspondentes – conhecem-se as suas cartas, recentemente reimpressas por Américo da Costa Ramalho –, conta-se também D. Pedro de Meneses, bolseiro em Paris desde 1509.

Se Cataldo ocupa primazia cronológica na introdução do Humanismo em Portugal, outros estrangeiros se lhe seguiram, e que não foram menos notáveis. Entre eles sobressai o brabantino Nicolau Clenardo, vindo também para perceptor de príncipes. Mas o mais importante é, como já observou Costa Pimpão, que, entre Cataldo e Clenardo, começam a aparecer os humanistas portugueses, já formados nas escolas estrangeiras, como é o caso do jurista Luís Teixeira, amigo de Erasmo em Itália, a quem André Resende louva "o profundo conhecimento do Direito, a elegância da frase latina ou grega e a sublimidade da inspiração poética". Deve fazer-se aqui uma referência ao português Aires Barbosa, o maior helenista da Península, autor do poema Antimoria, contra o Elogio da Loucura, de Erasmo, que ensinava em Salamanca e seguira em Florença as lições de Policiano. Abandonando as cátedras de Grego, Latim e Retórica na universidade salmantina, vem participar no movimento cultural que se desenvolvia no seu país e que, tendo atingido um nível tão alto, levou Clenardo a escrever, em carta a mestre João Vaseu, então em Salamanca: "Confesso-te que me agrada sobremaneira esta corte. Há nela muitos varões doutos na língua grega como na latina, a ponto que nem na própria Salamanca se encontrará quem as fale tão correctamente."

Mais tarde, diria de forma também expressiva, ao referir-se ao ensino do Grego no Mosteiro de Santa Cruz, que mestre Vicente Fabrício comentava Homero na língua grega, no que era acompanhado pelos discípulos. Passava-se isto em 1537. Quer dizer que, desde 1485, com a vinda de Cataldo e a introdução do Humanismo em Portugal, no espaço de 52 anos, o panorama cultural português transformara-se inteiramente, e os nossos humanistas mostravam-se em condições de acompanhar, e até suplantar, os humanistas europeus.

Seria caso para nos interrogarmos que tipo de humanismo chegara a Portugal e aqui fora incrementado: unicamente o culto das línguas clássicas, grego e latim, e o estudo dos textos da antiguidade greco-latina? Nisto só consistia o Humanismo, para Benedetto Croce ou para Ernst-Robert Curtius. Tais atitudes não resistiram, porém, à análise da crítica moderna: de Lucien Febvre a Mareei Bataillon ficou demonstrado que deve antes falar-se de "Humanismo Cristão", fenómeno histórico que aparece na Itália do Quattrocento e se propaga ao resto da Europa, incluindo Portugal, no séc. XVI. Fundamental para o estudo da introdução das correntes humanísticas em Portugal é a consideração da existência de bolseiros portugueses no estrangeiro: uns à custa própria, outros a expensas do tesouro régio, e outros ainda por conta das Ordens a que pertenciam. Não se sabe exactamente quando começou esta movimentação cultural que atinge o auge no século XVI.

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Os Portugueses, sedentos de saber, não se contentavam com os ensinamentos colhidos na Universidade, ora em Lisboa, ora em Coimbra, e demandavam, por isso, os centros culturais de maior renome. Bolonha e Siena, para o Direito; Florença, com Polidano, para o cultivo das Musas e das litterae humaniores; Alcalá de Henares, para os estudos gramaticais ou filológicos, Salamanca, Lovaina, Paris, Bordéus. Em Paris, os estudantes portugueses chegaram a formar o mais vasto grupo de estrangeiros. Entre 1500 e 1550 contam-se trezentos bolseiros na capital francesa. Luís de Matos, o mais acrisolado estudioso destas matérias, afirma que se eleva a cerca de uma centena o número de bolsas pagas por D. João III entre 1527 e 1539, acentuando que as bolsas eram concedidas por um prazo mínimo de dez anos. Em Florença, entre os anos de 1473 a 1503, estiveram cinquenta e quatro portugueses.

Da presença de escolares portugueses em Salamanca e em Toulouse ocupou-se, com a habitual probidade, Veríssimo Serrão. De registar a aceitação que tinham no estrangeiro muitos destes antigos bolseiros: Aires Barbosa, professor em Salamanca, Amato Lusitano ensinou e praticou em Itália, Diogo de Gouveia, teólogo da Sorbonne, chegou a reitor da Universidade parisiense e subdirector da Faculdade de Teologia. Foi por sua intercessão que D. João III resolveu fazer do Colégio de Santa Bárbara, em Paris, um colégio português. André de Gouveia, director do Colégio de Guiana, em Bordéus. Enfim: os estudiosos destas matérias puderam concluir que "Portugal foi o país que enviou para França maior número de estudantes".

Exemplo maior de relações culturais portuguesas na Europa, em signo de Humanismo, é, sem dúvida, Damião de Góis, de quem se pode dizer que teve uma carreira humanística esplendorosa, como diplomata, como escritor e como defensor dos direitos humanos, tendo dedicado obras singulares a favor de povos menos protegidos pela Fortuna, como foi o caso dos Lapões e, em certa medida, dos Etíopes. Por outro lado, há que reconhecer que a actividade de Góis, que foi intensa em vários domínios, contribuiu de forma decisiva para a divulgação do Nome português na Europa e para o prestígio de que então gozava a corte de Portugal. Escrivão da feitoria de Flandres aos 21 anos viajou, em missões diplomáticas e comerciais, ao serviço de D. João III, pelo Norte da Europa, o que lhe dá ocasião de conhecer os promotores da Reforma religiosa. Visitou a Alemanha e a Polónia, a Dinamarca, e em Lubeque conviveu com João Pomerano.

De caminho para Posen, na Polónia, decide passar por Vitemberga onde ensinavam Lutero e Melanchthon. Em Bruxelas, participa nas cerimónias comemorativas do nascimento do príncipe D. Manuel, filho de D. João III. Tendo-se dedicado ao estudo do latim (língua de comunicação entre os eruditos) em 1529, resolve ampliar os seus conhecimentos em Lovaina e aí se instala em casa de Rutgero Réscio, onde trava conhecimento com Conrado Goclénio. Réscio põe-no em contacto com Erasmo que ensinava em Friburgo de Brisgóvia. Góis, segundo as suas próprias palavras "praticou com ele em cousas de humanidade". Em Basileia contactou com Sebastião Münster, Simão Grineu, reformistas, e Bonifácio Amerbach. Volta a Lovaina, para prosseguir estudos de latim.

Em 1533, vem a Portugal, chamado por D. João III, que desejava nomeá-lo tesoureiro da Casa da índia, e de passagem por Paris conhece Frei Roque de Almeida, personagem que mais tarde, no processo inquisitorial de Gois, é motivo de agravo para o humanista. Góis não aceita o convite régio, desculpando-se com o desejo que tinha de avançar no estudo.

Durante a breve estada em Lisboa encontra-se com o embaixador etíope Zaga Zaabo. Parte de novo para Friburgo, ao encontro de Erasmo, e é então que conhece Glareano. Regressa à Flandres, encontra-se em Estrasburgo com Martino Butzer, Wolfrang Fabrício Köpel e Gaspar Heid, todos reformistas. A caminho de Pádua, onde continua a estudar, encontra em Genebra o reformista Guilherme Farel; permanece em Pádua até 1538, recomendado a Bembo por Erasmo, e em Itália conhecerá Sadoleto, Buonamici, Celio Calcagnini, reencontrar-se-á com Frei Roque de Almeida – agora Jerónimo de Pavia –, que lhe traz cartas de Lutero e de Melanchthon. É na Itália que conhece também o Padre Simão Rodrigues que, em 1545, o denuncia à Inquisição.

Terminados os estudos em Pádua, regressa à Flandres e, em 1545, volta a Portugal, onde permanece até à morte, ocorrida em 30 de Janeiro de 1574. Dados recolhidos e utilizados pelos investigadores, com base nos processos inquisitoriais, permitem concluir que Damião de Góis beneficiou, nos seus contactos intelectuais e centros culturais europeus, da condição de representante de uma corte brilhante e altamente prestigiada. Pôde não só enriquecer-se culturalmente, mas ainda informar-se, ou melhor, reformar-se, no seu pensamento religioso que, animado embora de puras intenções, não foi compreendido em Portugal, e haveria de provocar-lhe um fim de vida trágico.

Que os contactos europeus de Damião de Góis e de outros humanistas portugueses contribuíram decisivamente para a imagem que Portugal tinha lá fora – para além do enriquecimento cultural que, por sua vez, trouxeram ao país – testemunham-no muitos exemplos conhecidos, como seja a correspondência trocada entre Ângelo Policiano e D. João III. E é caso para recordar o comentário admirativo de Pompónio Leto, ao ouvir o discurso que D. Garcia de Meneses, bispo de Évora, dirigiu ao papa Xisto IV: "Santo Padre, quem é este bárbaro que fala com tanta elegância?"

Poggio Bracciolini, Flávio Biondo, Mateus Pisano, o florentino Francesco Albertini, pouco conhecido, mas que ofereceu ao rei de Portugal, D. Manuel, os Septem mirabilia orbis et urbis Romae et Florentinae civitatis, são nomes a juntar aos que já citámos antes, que ilustram a participação e recepção portuguesa nas correntes humanísticas que no séc. XVI circulavam pela Europa culta, reconhecendo embora que o Humanismo em Portugal é tributário sobretudo do Humanismo italiano.

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* Justino Mendes de Almeida

Professor e Reitor da UAL.

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