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Onde estou: | Janus 1999-2000 > Índice de artigos > Um olhar para o passado > [Portugal e a cultura política europeia no século XVIII] | |||
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ESTE ARTIGO CONTÉM DADOS ADICIONAIS CLIQUE AQUI! Por muitos matizes que esta ideia tenha tido, comuns eram um espírito antitradicionalista e laicista, uma crença no poder da razão, uma atitude política pedagógica, uma fé na capacidade da lei para reformar a sociedade. Daí que a obra modernizadora de Pombal, no fundamental seguida pelos ministros de D. Maria I, tenha momentos emblemáticos na sua política do direito e da justiça. Nestes domínios, as linhas de força do pombalismo são: a crítica do direito e do saber jurídico tradicionais, o reforço da certeza jurídica e a limitação do arbítrio dos juízes, a libertação do direito laico da influência do direito canónico, a reinterpretação do direito romano, ainda em vigor, no sentido que lhe era dado nos países do centro da Europa, a recepção do direito dos países mais progressivos da Europa como direito interno português e, finalmente, a instauração da filosofia política racionalista como espinha dorsal da formação intelectual dos juristas. As reformas institucionais então empreendidas (Moncada, 1948; Oliveira, 1982; Subtil, 1993) são facilmente integráveis neste espírito. Em Portugal, a reforma da prática jurídica começa com a Lei de Boa Razão, complementada com a reforma do ensino jurídico na Universidade. A Lei da Boa Razão, de 18.08.1769 (Silva, 1991, 360 ss.), ao rever todo o sistema de fontes de direito num sentido contrário ao da prática estabelecida, força esta a uma profunda mudança. O seu sentido geral é o da proscrição do direito doutrinal e jurisprudencial que constituía a espinha dorsal do sistema do ius commune. De facto, bane-se a autoridade dos grandes juristas medievais (como Acúrsio e Bártolo) e da opinio communis doctorum, o mesmo acontecendo com a invocação do direito canónico nos tribunais comuns. Mantém-se a autoridade subsidiária do direito romano, mas apenas quando este fosse conforme à Boa Razão, ou seja – como se esclarecerá depois nos Estatutos da Universidade – aos princípios jurídico-políticos recebidos nas nações "polidas e civilizadas". Em contrapartida, restringe-se a faculdade judicial de fixar a jurisprudência aos assentos da Casa da Suplicação, ao mesmo tempo que se nega força vinculativa aos "estilos de julgar" dos tribunais e se estabelecem condições muito rigorosas de validade para os costumes. Numa palavra, institui-se o monopólio da edição do direito a favor da lei do soberano, monopólio apenas temperado pela possibilidade de invocação dos princípios de direito natural, nomeadamente daqueles que tinham sido incorporados na legislação dos novos Estados iluministas. Os Estatutos da Universidade, de 1772, reformam o ensino do direito no mesmo sentido, restringindo o estudo do direito romano àquele que tinha tido um "uso moderno" nas nações cristãs e civilizadas da Europa (liv. 2, tit. 5, c. 3, § 6); introduzindo o estudo do direito pátrio; e, sobretudo, envolvendo todo o ensino jurídico no ideário jusracionalista, bem como numa orientação pedagógica "textualista" (ou seja, mais voltada para o estudo directo das fontes do que para o das opiniões e comentários) (Silva, 1991, 365 ss.; Hespanha, 1972). A influência deste complexo de tendências racionalizadoras e renovadoras, que é costume designar por "direito iluminista", prolonga-se por toda a primeira metade do século XIX, graças ao impacte da reforma pombalina dos estudos jurídicos e dos compêndios (de Pascoal de Melo [Instituliones iuris civilis lusitani, 1789]) a que ela deu lugar. O advento do liberalismo (cujo património teórico e ideológico é, no domínio do direito, subsidiário do iluminismo) potencia ainda o movimento de renovação da ordem jurídica, cujo leitmotiv é, então, a "codificação" (J. M. Scholz, 1982). No domínio da política da justiça, procede-se a uma tentativa de modernização dos tribunais e da jurisprudência. Na Europa do séc. XVII, a vida forense conhecia uma grande desorganização e insegurança. Primeiro, pelo excesso de dissenções doutrinais favorecidas pelo proliferar de opiniões; depois, pela complexidade e morosidade dos trâmites processuais. Por fim, pela complicada organização dos tribunais – inerente à pluralidade jurisdicional do Antigo Regime –, que dava origem a intermináveis conflitos de competência. Daí que a actividade dos tribunais fosse olhada, em todos estes países, com imensa desconfiança. É nos países latinos da Europa ocidental que mais se sente a crítica ao estado da prática judicial, dando origem a projectos de reforma judiciária e processual ainda antes da Revolução. Pelo vigor do seu depoimento e da influência exercida em Portugal, por intermédio de Luís António Verney (Moncada, 1950, III, 193 ss.), é de destacar o italiano Luigi António Muratori, (1672-1750), e a sua obra Dei Difeti dellaGiurisprudenza (1742). Em França, onde o problema também se punha agudamente – tendo sido denunciado por Montesquieu –, a restrição do poder dos juizes foi levada a cabo no período revolucionário, em que foram tomadas várias medidas nesse sentido: introdução do júri nos julgamentos penais (medida de reacção contra a "artificial reason" [Coke] dos juristas); obrigatoriedade de motivar a sentença (lei de 16/24 de Agosto de 1790); criação do Tribunal de Cassação, para verificar a "legalidade" das decisões judiciais (lei de 27 de Novembro/1 de Dezembro de 1790); instituição do sistema do référe legislatif, pelo qual os tribunais eram obrigados a enviar à Assembleia Legislativa as questões jurídicas de duvidosa interpretação (lei citada e Constituições de 1791 e do ano 111). Todas estas medidas terão os seus símiles no resto da Europa, e também em Portugal. Assim, o júri é instituído pela Constituição de 1822 ainda com maior amplitude do que em França (causas criminais e civis), a "revista" (ou seja, o recurso invocando ilegalidade da sentença já estava previsto nas Ordenações, I.,4,1) e é reafirmado pela Lei de Boa Razão (§§ 1 a 3) que institui, também, uma espécie de référe legislatif (§ 11), também com tradições anteriores. D. Maria I, por sua vez, ataca directamente o problema da organização judiciária, extinguindo, em 1790-1792, as jurisdições dos donatários (Hespanha, 1995,4.4.). Mas nem com isso ficou "perfeita" a justiça portuguesa, pelo que o tema dos seus "defeitos" continua presente nas primeiras décadas do século seguinte. Só as reformas judiciárias do liberalismo (Reforma Judiciária, de 16 de Maio de 1832) irão atenuar estas queixas (v. Gilissen, 1988,504 s. [A. M. Hespanha, "Nota do tradutor"]).
Informação Complementar Um projecto pioneiro de Código Penal Em 26.11.1768 – quatro dias antes da promulgação daquele que é considerado como o primeiro código penal moderno, o código de Pedro Leopoldo, da Toscana (Leopoldina) –, Pascoal de Melo apresentava à Junta do Novo Código a primeira parte do seu projecto de código criminal. Na "Introdução" ao Código, Pascoal de Melo insiste no facto de que a reforma do direito penal se deve fundar em bases novas, naquilo e, que ele chama uma "nova philosophia politica", cujos autores enumera: antes de todos, o Marquês de Beccaria, mas também Grócio, Locke e Montesquíeu, além de uma série de publicistas e juristas franceses e italianos do séc. XVIII, interessados nas questões penais. Tanto do ponto de vista formal como substancial, o projecto de Pascoal de Melo é profundamente inovador. No plano formal, rompe com a tradição de tratar as questões penais como subsidiárias das questões processuais. A tipificação dos crimes e o estabelecimento das penas constituem a abertura e a parte substancial do projecto. Também no tratamento das questões penais, há inovações substanciais. Os crimes religiosos são encarados, antes de mais, como atentados contra a ordem pública temporal. Os crimes de adultério são punidos como violações do compromisso tomado e atentados ao valor político da boa ordem familiar, aplicando-se assim tanto à mulher como ao marido. O crime de leja-magestade é autonomizado em relação à pessoa física do rei e relacionado com os atentados à entidade abstracta do Estado. Os crimes contra a honra, tão típicos da sociedade formalista e ritualista de Antigo Regime, são agora desvalorizados. Os crimes de ofensas corporais são directamente relacionados com os prejuízos físicos (inabilidades, desfeiamento) causados. No domínio processual, a tortura é proscrita, o arbítrio do juiz é limitado. No plano das penas, são proscritas as penas cruéis, bem como as penas infamantes e transmissíveis de pais a filhos. A conjuntura política não permitiu que este projecto vingasse. Mas ele não deixa de ser uma pioneira e notável realização do novo espírito político do iluminismo. Gilissen, John, Introdução histórica ao direito, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1988. Hespanha, António Manuel, "Recomeçar a Reforma Pombalina", Revista de direito e estudos sociais, Coimbra, 1972, 5-34. Hespanha, António Manuel. Manual de história institucional moderna, Lisboa, Universidade Aberta, 1995. Moncada, Luís Cabral de, "O 'século XVIII' na legislação de Pombal", em Estudos de história e direito, I, Coimbra 1948, 82 ss. Oliveira, António Resende de, "Poder e sociedade. A legislação pombalina e a antiga sociedade portuguesa", em O Marquês de Pombal e o seu tempo, Coimbra 1982, I, 5189. Pascoal de Melo, Ensaio de Código Criminal a que mandou proceder a Rainha D. Maria I, Lisboa, 1823 Scholz, Johannes-Michael, "Portugal", em Coing (1973), Helmut (dir.), Handbuch der Quellen und Literatur der neueren europäischen Privatrechtsgeschichte, München, Beck's, 1982, Band I-III, 1982. Silva, Nuno Espinosa Gomes da, História do direito português, Fontes de direito, Lisboa, Gulbenkian, 1991. Subtil, José Manuel, "Governo e administração", em A. M. Hespanha, O Antigo Regime (= J. Mattoso, História de Portugal, vol. IV), 157-193. Retrato de Sebastião de Carvalho e Mello
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