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O fundamentalismo islâmico em mutação

José Goulão *

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Estará o fundamentalismo islâmico a perder capacidade de intervenção? As suas expressões mais conhecidas, a nível de regimes políticos e de grupos, acusam desgaste; alguns dos seus importantes apoios, que tentaram tirar proveito do fenómeno por razões oportunistas e pontuais, parecem ter identificado parcialmente os riscos de tal política; as respostas graduais de alguns sistemas de poder, inicialmente surpreendidos com a amplitude e a profundidade destes movimentos atípicos, contribuíram para lhes travar o ímpeto. Olhado segundo estes ângulos, o fundamentalismo islâmico está em refluxo.

Mas há outras realidades. As condições económicas, sociais e políticas de onde emerge a capacidade de mobilização do radicalismo islâmico continuam-lhe favoráveis; a sua intervenção amplia-se geograficamente, beneficiando da descentralização doutrinária da mais populosa religião do mundo e da ampla coincidência da sua implantação com as regiões mais desfavorecidas, quando não exangues; a arrogância da cultura minoritária, mas dominante, da globalização suscita contracorrentes que encontram eco em fusões de expressões nacionais, religiosas e étnicas. Olhando por estes ângulos, o fundamentalismo islâmico tem um potencial de desenvolvimento tão imprevisível como imprevisíveis eram os seus movimentos originais. O fundamentalismo islâmico parece estar em mutação, mais do que em refluxo.

É inegável que regimes como o do Irão ou do Sudão dão sinais de desgaste. O primeiro, pela incapacidade de sustentar um rigor e um fervor revolucionários que, uma vez cumpridos objectivos políticos inevitáveis, entraram em choque com uma sociedade onde sectores influentes e abertos ao mundo deixaram de se rever numa ortodoxia anacrónica. O regime sudanês, por seu turno, está a ser vítima de uma guerra interminável e consequente ameaça de cisão territorial, da sua artificialidade intrínseca e das contradições de poder geradas pelo facto de assentar numa feroz repressão.

Contrariando estas tendências de recuo, dos escombros de um país e de uma efémera, conturbada e fracassada gestão islâmica, surgiu entretanto o mais "purista" dos regimes islâmicos, o dos Talibans no Afeganistão, que está na ofensiva e se protege a si próprio interferindo em regiões adjacentes carentes de identidade política (ver informação complementar sobre a Ásia Central). Um regime radical religioso que se impôs não só à revelia mas contra o próprio Irão, sustentado em boa parte pela cinicamente discreta Arábia Saudita, onde vigora um fundamentalismo de raízes tão profundas e tradicionais que abafa em si próprio as investidas de correntes associadas ao "novo fundamentalismo". "Novo fundamentalisno" este que terá buscado antes as suas referências na Irmandade Muçulmana egípcia, agora ultrapassada em manifestações de radicalismo agudo pelo Gamaat-I-Islami, terror da indústria turística do país do Nilo.

A mutação existe também, ainda que parcialmente, no sistema de apoios. Para a dinâmica de movimentos islâmicos pós-revolução iraniana contribuíram potências não-islâmicas. Israel apoiou o Hamas palestiniano para tentar dividir a OLP e minar a Intifada, a revolta das pedras. Os Estados Unidos da América apoiaram o recrutamento e o armamento dos "mujahidines" afegãos, grupos que combateram a presença soviética no Afeganistão, abriram depois as portas ao regime dos Talibans e exportaram a militância fanática islâmica para a Argélia, o Egipto, a Bósnia e o Kosovo em forma de corpos voluntários de milícia. Entre os organizadores destas estruturas terroristas estiveram o movimento egípcio Gamaat-I-Islami, de onde partiram os autores do atentado contra o World Trade Center de Nova Iorque — segundo os investigadores norte-americanos — e o famoso Ussama Bin Laden, depois transformado em inimigo público número um de Washington. Entre os apoiados pela militância islâmica transfronteiriça estiveram o presidente dos muçulmanos da Bósnia, Alija Izetbegovic — "âncora" ocidental na região —, e o próprio Exército de Libertação do Kosovo, interlocutor de peso dos dirigentes norte-americanos, com audiência na própria capital federal.

A ideia de refluxo de movimentos radicais islâmicos está também associada aos efeitos de políticas de repressão adoptadas por regimes que, inicialmente surpreendidos, iniciaram um combate sistemático às consequências (o aparecimento do radicalismo islâmico) quase sempre sem atenderem às causas (a estagnação política e a degradação económica e social). O Egipto, a Tunísia, a Jordânia, a Líbia e a Turquia, por exemplo, têm revelado êxitos na contenção do fenómeno, através da conjugação de meios políticos e militares autoritários e quantas vezes discricionários; a martirizada Argélia passou da fase da repressão pura e dura, instaurada a seguir ao golpe que impediu a chegada do radicalismo islâmico ao poder através de eleições, a um misto de assimilação e dissuasão desde a entrada em funções do presidente Bouteflika.

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No Líbano, o Hezbollah poderá estar em mutação, reflectindo as alterações da relação de forças no regime iraniano, a expectativa da Síria e o seu próprio êxito no desgastante combate que provocou a saída das tropas israelitas de ocupação. O reforço da actividade política parlamentar do Hezbollah, conjugado com o apoio social às populações mais carecidas — uma tradição do grupo — poderá diluir o peso da ala militar, embora os dados ainda não sejam claros quanto a essa presumível evolução.

Se há grupos fundamentalistas que perdem capacidade de intervenção ou se transformam, as condições políticas, económicas e sociais em regiões de influência islâmica dominante continuam favoráveis à expansão de uma militância religiosa radical. Vítimas da crise aberta pela desagregação da Jugoslávia Federal encontraram resposta no recurso ao "militarismo islâmico" na Bósnia e no Kosovo, por vezes com ajudas chegadas do Afeganistão (o mesmo aconteceu na guerra civil argelina). A crise de consistência e de identidade e o caos governativo da Rússia criaram um terreno fértil para a expansão do fundamentalismo islâmico — eventualmente encorajado por interesses económicos não desvendados —, como acontece na Tchetchénia, no Daguestão e outras regiões não apenas caucasianas. A troca de um decrépito regime civil por um sistema militar no Paquistão não se reflectiu na perda de capacidade dos Talibans do Afeganistão — antes pelo contrário — demonstrando que o apoio paquistanês aos vizinhos fundamentalistas é uma questão nacional, além de inspirada financeiramente pela Arábia Saudita. O Paquistão não se coíbe igualmente de continuar a apoiar os separatistas de Caxemira, cada vez mais identificados com o radicalismo de índole religiosa. Não será difícil concluir, portanto, que no inquietante frente-a-frente entre a índia e o Paquistão, com ameaça nuclear, existe uma forte componente radical islâmica, fraca conselheira em assuntos de moderação.

O fundamentalismo islâmico actual é muito mais um fenómeno com tendência generalizadora do que uma questão de grupos. E embora possa assentar em situações comuns e financiamentos afins na passagem à expressão radical, a sua expansão beneficia — e não paradoxalmente — de uma "descentralização" doutrinária do islamismo. Sem uma "autoridade central" forte, o islamismo reflecte condições regionais específicas, particularidades carismáticas de dignitários religiosos e costumes históricos susceptíveis de fraccionar ainda mais o mosaico das suas principais tendências doutrinárias. De Marrocos ao lémen, da Bósnia à Indonésia e ao Bangladesh, o aparecimento de dignitários religiosos com forte capacidade de intervenção sobre o desespero e a degradação económica e social é suficiente para criar bolsas fundamentalistas de revolta, tanto mais fáceis de gerar quanto é certo ser o islamismo religião de forte implantação, muitas vezes dominante, nas regiões mais pobres do mundo. Dos desertos do Norte de África e da Arábia às vegetações luxuriantes da Indonésia, passando pelas savanas de África subsariana.

A cultura minoritária e maniqueísta do liberalismo económico como motor da globalização é míope no reconhecimento das diferenças e da identidade dos outros — os maioritários — e arrogante na forma como impõe a sua verdade (algo que, no limite, George Bush sentenciou como duelo entre "a civilização e a barbárie"). Assim se atenuando diferenças, unindo desesperos, fomentando afinidades e fazendo convergir correntes com um potencial de energia muito difícil de avaliar. Foi esse permanente e asfixiante exercício de egoísmo económico e político da "civilização" que contribuiu para que da serena fé islâmica surgissem as manifestações de revolta em nome de Deus, um fenómeno que adquiriu dimensão muito mais ampla quando o desmoronamento do Muro de Berlim deixou a descoberto a incapacidade dos "socialismos" e outros regimes laicos terceiro-mundistas. O islamismo irrompeu então como política quando a política falhou sem encontrar alternativas em si própria. Uma nova política de desespero, radical, entregue à inspiração de entes divinos depois de a falta de perspectivas ter minado a confiança nos humanos.

O fundamentalismo islâmico é uma expressão aguda de desigualdades e de dependências, tal como outras manifestações de desespero como o tribalismo e alguns separatismos. Há regimes e grupos islâmicos em retrocesso. Mas sendo a desigualdade e a dependência realidades firmes de hoje, esses retrocessos serão ainda pontuais. O fundamentalismo islâmico está em mutação, adquire outras expressões, conquista novos territórios porque as condições objectivas para o seu aparecimento não só permanecem como tendem a agravar-se.

 

Informação complementar

Paiol na Ásia Central

A desastrada intervenção soviética no Afeganistão e a não menos trágica resposta dos Estados Unidos deixaram marcas no país e na região envolvente com uma extensão ainda por avaliar.

A derrota das tropas soviéticas acelerou a desagregação da União, deixando com uma crise de identidade as nações emergentes situadas na Ásia Central. Uma região onde Moscovo nunca conseguiu entender as profundas e ricas particularidades históricas, culturais e religiosas, fracassando nas sucessivas políticas de russificação adoptadas por diferentes regimes.

A aposta norte-americana em grupos terroristas islâmicos ajudou a derrotar os soviéticos no Afeganistão, mas deixou o país entregue a facções irresponsáveis e violentas que aceleraram o processo de desagregação. Daí emergiram, com apoio paquistanês e saudita — e discreta retaguarda norte-americana — os Talibans. Beneficiando de uma organização e de uma estrutura de comando diametralmente opostas dos grupos "mujahidines", os Talibans estão a ganhar a guerra e controlam quase todo o Afeganistão. As bolsas de resistência têm retaguarda no Tajiquistão e no Uzbequistão.

Estas duas antigas repúblicas soviéticas, tal como a Quirguízia e o Cazaquistão, sofrem cada vez mais a pressão fundamentalista islâmica como resposta às políticas governativas que oscilam entre sucedâneos dos piores exemplos soviéticos, nacionalismos ferozes e subserviências à caça externa às riquezas naturais. E ao exportarem o fundamentalismo islâmico para estes países, os Talibans e respectivos apoiantes neutralizam adversários e reforçam o seu cordão de segurança. Com a agravante de não ser ainda hoje bem clara a evolução do Casaquistão, importante trunfo nuclear da antiga União Soviética. Conjugada com a tensão indo-paquistanesa, a instabilidade na Ásia Central ex-soviética é um grande factor de inquietação. Agravado com a conquista de posições pelo fundamentalismo islâmico.

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* José Goulão

Jornalista. Analista de Assuntos Internacionais.

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