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A política monetária e os tortuosos caminhos do euro

Henrique Morais *

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Os bancos centrais foram progressivamente adoptando a estabilidade dos preços como objectivo de acção prioritário, em especial ao longo dos anos 90, o qual deveria ser atingido através da implementação de uma política monetária adequada. Em manifesta sintonia com a longa tradição, a esse respeito, do Bundesbank, também o Banco Central Europeu (BCE) estabeleceu como meta de referência o controlo da inflação, definindo objectivos claros para essa variável. No entanto, contrariamente ao que aconteceu em países como o Reino Unido, Canadá e Nova Zelândia (entre outros), em que os agregados monetários foram simplesmente abandonados, ou nos Estados Unidos em que os relegaram para plano secundário, o BCE baseia a sua estratégia de política monetária numa complexa conjugação de objectivos a nível da inflação e da moeda. Independente de outros aspectos que irão ser desenvolvidos posteriormente, nomeadamente o confronto entre um BCE tendencialmente focalizado na inflação e uma Reserva Federal Americana que centra a sua acção no trinómio crescimento/emprego/inflação, é deveras interessante tentar equacionar a forma como a política monetária pode afectar a estabilidade de preços e o crescimento.

A teoria económica considera normalmente a existência de desfasamentos temporais (os chamados lags) no processo de transmissão das medidas de política monetária dos bancos centrais para a actividade económica e os preços. Deste modo, estima-se que uma alteração das taxas de juro directoras possa ter impacte no produto decorridos 12 meses e na inflação após 2 anos. Assim sendo, no que ao BCE e à respectiva política monetária diz respeito, verifica-se que todas as intervenções efectuadas, por exemplo, no 1° semestre de 1999 [1]) apenas terão tido repercussões no produto no 1° semestre do corrente ano e nos preços só se sentirão a partir do 1° semestre de 2001. De igual forma, as muito discutidas subidas recentes de taxas de juro do BCE deverão ter reflexos no produto e nos preços, respectivamente, em 2001 e 2002.

Compreende-se, no imediato, que a simples existência destes lags coloca algumas questões importantes: em primeiro lugar, qualquer decisão de política monetária deverá ter em conta não só o enquadramento macroeconómico actual, mas também as expectativas dos agentes económicos em relação à evolução do produto e dos preços num horizonte temporal mais alargado (até aos referidos 2 anos); em segundo lugar, torna claro para os agentes económicos as limitações dos bancos centrais e o carácter precário das suas decisões no âmbito da política monetária e, deste modo, exige um perfeito "entendimento" entre os bancos centrais e o mercado. Se a primeira questão é uma exigência de credibilidade do próprio sistema, a segunda é uma condição de sucesso da política monetária. O Banco Central Europeu baseia a estratégia de política monetária na área do euro em dois pilares: a análise do crescimento monetário face a um valor de referência, que desde o início foi estabelecido em função de um crescimento máximo de 4,5% do M3 [2]) e a evolução dos preços e riscos para a respectiva estabilidade, que constitui o segundo pilar. Neste último caso, é definido um objectivo explícito para a inflação, a qual, medida pelo indicador harmonizado, terá de se situar abaixo de 2%.

Ora, foi precisamente esta definição, no mínimo inovadora, de dois referenciais para a política monetária que suscitou as críticas mais abertas e violentas à estratégia escolhida pelo BCE. Na verdade, a solução encontrada pareceu indiciar um compromisso político susceptível de agradar a uma Alemanha desejosa de manter a reputação do Bundesbank (cuja orientação sempre se pautou pelo controlo dos agregados monetários) (3) e, simultaneamente, à generalidade dos restantes Estados-membros que adoptavam um objectivo explícito para a inflação. Além disso, não parece ter sido ainda demonstrada a existência de uma relação sólida e duradoura entre os instrumentos de política monetária (em especial, as taxas de juro de curto prazo) e os objectivos dessa política, em particular, quando definidos em termos dos agregados monetários. A partir da avaliação destes dois pilares, o BCE concluiu pela inexistência de riscos para a estabilidade de preços, durante 1998 e no 1° trimestre de 1999, o que lhe permitiu descer a sua principal taxa de referência para um mínimo de 2,5%, em Abril de 1999. Todavia, a partir dessa altura, a conjugação de um cenário de taxas de juro baixas com a ampla liquidez do sistema provocou uma deterioração dos pilares, induzindo um acréscimo significativo da taxa de juro das operações principais de refinanciamento, que atinge agora 4,25%". (4).

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Apesar da bem sucedida introdução do euro, de que alguns duvidavam, e de alguma acalmia nos mercados que se verificou nos primeiros meses após o seu aparecimento, o passado mais recente veio demonstrar claramente a fragilidade da moeda única, em especial face ao dólar norte-americano e ao iene japonês (em relação aos quais o euro se depreciou, entre Janeiro de 1999 e Agosto de 2000, cerca de 25% e 29%, respectivamente). Vários motivos têm sido apontados para este comportamento menos favorável do euro: em primeiro lugar, conforme foi anteriormente referido, a estratégia dos pilares suscitou algumas dúvidas aos operadores de mercado, na medida em que parece apontar para a existência de dois objectivos em termos de política monetária, a moeda e a inflação, o que manifestamente confundiu um mercado mais habituado a ver na primeira um instrumento e na segunda um objectivo.

Por outro lado, e ainda a nível dos factores internos, nem sempre os responsáveis do BCE e os ministros das finanças dos países da área do euro mantiveram um discurso uniforme e, entre si, coerente. Estas discrepâncias, nomeadamente numa determinada fase em que a França pareceu aparentemente mais preocupada com o (baixo) valor do euro enquanto a Alemanha denotava interesse em manter a moeda mais fraca para daí poder retirar proveitos para o sector exportador, foram igualmente penalizadoras para o euro. Alguns apontam ainda a falta de confiança na divisa europeia, por exemplo por parte dos investidores asiáticos, ainda pouco convencidos do sucesso do empreendimento e desejosos de proceder a estratégias de investimento em dólares, aparentemente mais seguras. Essa falta de confiança pode aliás estar associada a um importante factor psicológico associado à inexistência física do euro, o que justificaria plenamente a ideia de que o chamado "período de transição" para o euro deveria ser muito encurtado.

Os mais cépticos avançam com um argumento de carácter estrutural, e portanto mais devastador, socorrendo-se para isso dos trabalhos de Robert Mundell em que se demonstra serem condições necessárias ao sucesso de uma moeda única a existência de flexibilidade nos mercados do trabalho e dos produtos, a mobilidade do factor trabalho e a harmonização fiscal. Ora, em rigor, algumas destas condições estão longe de se verificarem actualmente na área do euro (nomeadamente a harmonização fiscal), enquanto outras se confrontam com obstáculos de diversa ordem - por exemplo, a perfeita mobilidade do trabalho esbarra em problemas de diferenciação linguística e cultural dificilmente ultrapassáveis em determinados sectores. Sendo ainda demasiado cedo para se proceder a balanços profundos sobre o euro, é todavia importante referir que o verdadeiro "teste" à moeda única deverá ocorrer quando a fase do ciclo "empurrar" a Europa para períodos de estagnação ou recessão económica. Nessa altura, será possível que alguns países da área do euro, sobretudo os mais fracos economicamente, se sintam tentados a combater o desemprego recorrendo à descida das taxas de juro, decisão para a qual já não dispõem de autonomia.

Terão os Estados-membros, nesse cenário, a responsabilidade política necessária para evitarem soluções populistas que passem por reivindicações intoleráveis no seio da União Europeia? Terá esta a consciência de Estado suficiente para evitar retomar, nomeadamente face aos Estados Unidos e ao Japão, proteccionismos que, no passado, tão maus resultados configuraram? Estas são, seguramente, algumas das nuvens escuras que se prefiguram no horizonte europeu. Independentemente do que possa vir a acontecer, e acreditando embora na natural capacidade dos vários países e organismos envolvidos no processo para tomarem as decisões mais adequadas, parece-nos indiscutível que a credibilidade do euro será, em muito, influenciada pelo comportamento que este vier a revelar num cenário como o descrito.

__________
1 Recorde-se que o BCE foi instituído em Janeiro de 1999, assumindo, em coordenação com os bancos centrais nacionais dos 11 Estados que aderiram à União Económica e Monetária, a responsabilidade pela implementação da política monetária na área do euro.
2 O M3 é um agregado monetário mais alargado eque inclui a circulação monetária, os depósitos à ordem, depósitos de curto prazoe os instrumentos negociáveis e acordos de recompra.
3 É, aliás, curioso verificar que a Alemanha estabeleceu em meados dos anos 80 precisamente o limite de 2% para a inflação que o BCE haveria de assumir quinze anos mais tarde...
4 Essataxa subiu inicialmente para 3%, em Novembro de 1999 e, já em 2000, ocorreramtrês subidas sucessivas de 25 p.b. em Fevereiro, Março e Abril. No dia 9 de Junho,o BCE subiu a taxa de referência em mais 50 p.b., colocando-a nos actuais 4,5%,em 31 de Agosto.

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* Henrique Morais

Licenciado em Economia pelo ISEG. Mestre em Economia Internacional pelo ISEG. Docente na UAL

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