Pesquisar

  Janus OnLine - Página inicial
  Pesquisa Avançada | Regras de Pesquisa 
 
 
Onde estou: Janus 2002 > Índice de artigos > Portugal e o mundo > Aspectos da conjuntura internacional > [11 de Setembro de 2001: salto qualitativo na guerra assimétrica]  
- JANUS 2002 -

Janus 2002



Descarregar textoDescarregar (download) texto Imprimir versão amigável Imprimir versão amigável

ESTE ARTIGO CONTÉM DADOS ADICIONAIS seta CLIQUE AQUI! seta

11 de Setembro de 2001: salto qualitativo na guerra assimétrica

João Maria Mendes *

separador

“A América não está preparada, nem defensiva nem ofensivamente, para os conflitos do séc. XXI. Somos a potência militar mais forte do mundo, mas no século errado. Os conflitos opõem agora civis contra civis. Os perpetradores não pertencem a um Estado, não usam farda e a guerra, para eles, não tem regras (...). Outros ataques se seguirão, provavelmente em breve” (Gary Hart, Time, 08.10.2001) .

David contra Golias, liliputianos contra Gulliver: os atentados de 11 de Setembro de 2001 contra as Twin Towers de Nova Iorque e o Pentágono, em Washington, são actualizações metafóricas destes combates, actualizações reais do know how do adversário mais mal armado na guerra do Vietname, depois metamorfoseado e especializado, em décadas de clandestinidade terrorista, por grupos tão distintos como o de Abu Nidal e a Fatah, a ETA e o IRA, a Jihad egípcia, o Hezbollah e o Hamas. Eles confirmam o que dizem os manuais — que é possível fazer a guerra com tesouras, brinquedos e talheres: os terroristas suicidas que desviaram os quatro jactos só levavam consigo facas e x-actos; um avião comercial com os seus passageiros a bordo, carregado de combustível, não é suposto tornar-se num míssil guiado à mão. Tornar instrumentos da vida quotidiana, novo campo de batalha, em armas mortíferas, usadas contra objectivos não necessariamente militares, depende sobretudo da mudança de ponto de vista sobre a utilidade desses instrumentos — e da capacidade técnica para levar à prática essa mudança. Expõe a vulnerabilidade da sociedade civil propriamente dita, e é um enorme salto qualitativo na conceptualização da guerra.

Por essa razão, estes atentados foram imediatamente percepcionados como acontecimentos que marcam uma ruptura epocal, fracturando o tempo entre um “antes” e um “depois” da sua ocorrência: os poderes e as opiniões públicas têm a imediata percepção da extensão dos efeitos presentes e futuros desses acontecimentos, sabem que eles ferem os equilíbrios anteriores e vão alterá-los, e que o contrato social e a vida colectiva sofrerão as suas consequências.

A resposta militar, iniciada a 7 de Outubro com os ataques aéreos americano-britânicos contra objectivos militares dos taliban e da al-Qaida no Afeganistão, confirmou essa percepção: mais de 40 países, incluindo a UE e Estados árabes, acompanharam a subida de patamar que o 11 de Setembro representou. O primeiro objectivo da retaliação era a destruição das defesas aéreas taliban, mas também a “remoção” do regime, num novo exercício da “guerra zero mortes”, apoiada na “overwhelming force” (força esmagadora) aérea, em que os EUA se especializaram.

Vale a pena manter a atenção focada nos ataques de 11 de Setembro, porque eles revelaram a nova dimensão da guerra assimétrica que o terrorismo pode lançar contra as sociedades desenvolvidas, neste início do século XXI. “Guerra assimétrica” é um conceito nascido na força aérea dos EUA, a partir da Guerra do Golfo e dos raids NATO na Sérvia e Kosovo, filho da “overwhelming force” e da “guerra indirecta” (a que evita confrontos frontais): trata-se de, beneficiando da superioridade dos equipamentos e da tecnologia militares, concentrar acções num só alvo, ou num número muito limitado de alvos, particularmente vulneráveis, das forças adversas, usando o efeito surpresa, para alterar decisivamente as relações de forças num conflito preciso. O conceito permite discutir a justeza da retaliação iniciada a 7 de Outubro: classificando de inapropriada (no Afeganistão) a estratégia da “overwhelming force” baseada em bombardeamentos aéreos à distância, o general francês Christian Delanghe, investigador no US CREST de Washington, defendeu (Le Monde 13/10/2001) que, em vez desta, seria mais eficaz, contra os taliban e a al-Qaida, uma ofensiva “concentrada em poucos alvos identificados e seleccionados pelo seu impacte político, mais que militar”.

Os atentados de 11 de Setembro mostram como a al-Qaida adaptou aos seus próprios meios esta ideia recém-entrada nos manuais de estratégia dos EUA.

Apesar da sua magnitude material, da sua importância simbólica e dos cerca de 6.500 mortos que causaram (números incertos no fecho desta edição do Janus), os atentados de 11 de Setembro foram, apenas, a parte bem sucedida de um plano que visava atingir mais alvos em território dos EUA (no mínimo, um dos quatro jactos não atingiu o seu objectivo) e cujo objectivo era a desarticulação abrupta da vida e das instituições americanas: “Tornar a América numa sombra do que era”, nas palavras de Osama bin Laden. Que mais alvos? Alvos como os que foram evacuados por quem entendeu a lógica dos ataques: sedes da administração política, grandes instituições culturais ou os parques temáticos da Disney. O efeito procurado era o efeito Hiroxima-Nagasaqui, seguido do colapso de vastos sectores da economia americana e, “portanto”, da do mundo globalizado. Segundo a ONU, a economia mundial terá perdido 320 mil milhões de dólares até ao fim de 2001, em consequência dos ataques de 11 de Setembro. Na sua mensagem pré-gravada, e divulgada pela televisão do Qatar Al-Jazira menos de duas horas depois do início dos bombardeamentos de 7 de Outubro, Bin Laden juraria por Deus que “a América nunca mais saboreará, nem sonhará com o sossego e a segurança, enquanto não os tivermos na nossa terra e na Palestina”.

Vistas uma a uma, as componentes dos ataques de 11 de Setembro não são novas: desvio de aviões de passageiros, procura deliberada do massacre de grandes dimensões, selecção de alvos indistintamente civis e militares, natureza suicidária das missões, são elementos que as democracias e suas opiniões públicas aprenderam a conhecer, separadamente, ao longo das últimas décadas do século XX, caracterizando, quer acções terroristas concebidas nas jihads do extremismo islâmico, quer as levadas a cabo por terrorismos separatistas europeus.

Topo Seta de topo

Nova é a articulação conjunta, para concretizar ataques de grande magnitude e hipermediatizados, de todas essas componentes: o desvio simultâneo de um número considerável de grandes aviões de passageiros por células terroristas suicidas (constituídas por “sleepers” treinados para fazer “vidas normais” na Europa e EUA durante largos períodos), para os esmagar contra alvos fortemente simbólicos e identitários e tão povoados quanto possível, acrescentando à destruição desses alvos o máximo de vítimas inocentes — porque, precisamente em obediência a uma das doutrinas clássicas do terrorismo, “ninguém é inocente”. E o agressor já não se identifica (os atentados já não “precisam” de ser reivindicados).

Foi a conjunção de todos estes factores que transformou estes atentados num ataque sem precedentes à defesa e segurança dos Estados desenvolvidos do pós-guerra fria.

A experiência mostra que, quanto maior e mais fiável é o aparelho de defesa de um alvo possível, maior é a incapacidade, por este revelada, de se imaginar vítima de ataques que escapem à lógica desse aparelho de defesa. Foi o que sucedeu nos EUA: envolvidos no programa de escudos antimísseis e confiantes na eficácia das suas defesas convencionais (que alimentavam o mito da invulnerabilidade do território americano face a inimigos externos), o Pentágono e a Casa Branca foram surpreendidos por um acto de guerra realizado, a partir do seu próprio território, com “utensílios domésticos”. Agentes da DST francesa que reuniram com especialistas de segurança americanos a 5 e 6 de Setembro dizem que os seus colegas de além-Atlântico estavam sobretudo preocupados com a ameaça de ataques “NBC” (nucleares, bacteriológicos, químicos), ameaça que cresceu depois do 7 de Outubro.

A dimensão e a complexidade da operação de 11 de Setembro revela a capacidade dos perpetradores e dos seus meios: confiantes na disciplina suicida dos seus mujadjines, iludiram, com eficácia, diversas tecnologias de ponta, usaram os mercados financeiros para se autofinanciarem e como arma para enfraquecer o inimigo, observaram durante meses as fragilidades funcionais deste último.

Dir-se-á, com razão, que na génese da rede perpetradora está o anti-americanismo fanático dos integrismos islamistas, e que este se alimenta do anti-americanismo popular dos deserdados do Islão. Mas a al-Qaida resulta sobretudo da convergência de quadros oriundos das oposições autóctones de Estados árabes apoiados pelos EUA, e, antes de mais, da Arábia Saudita e do Egipto. Reorganizaram-se em torno de uma pátria imaginária e elegeram como alvo principal os EUA, de modo progressivamente mais claro, no final da década de 90. Apesar da deslocação demográfica do Islão para a Índia e Ásia Central, a al-Qaida é, antes de mais, um fenómeno árabe, um sintoma do problema maior que o mundo árabe constituirá no primeiro quartel do século XXI. Nesta matéria, discordamos dos analistas que vêem, numa rede do tipo da al-Qaida, um fenómeno que exprime a desterritorialização tardo-moderna das identidades: pelo contrário, ela corresponde ao investimento afectivo e ideológico num território ficcional mas profundamente motivador, o de um Islão conceptual parcialmente existente — o das teocracias despóticas que reanimam imaginariamente o califado pré-medieval, anterior às derrotas e humilhações da visão do mundo que a este correspondia.

 

Propaganda, CNN e Al Jazira

Uma palavra só sobre o papel dos media nestes actos da nova guerra: o agressor dependeu da CNN, e da rede global dos media, para publicitar mundialmente a sua agressão, transformada em reality show — porque o directo televisivo é a principal chave de acesso ao espaço público contemporâneo. Daí, igualmente, a importância adquirida pela televisão Al-Jazira, nascida no Qatar há cinco anos e que se tornou, como dizem os media, na CNN do mundo árabe. Em guerra, é vital fazer-se ouvir no campo inimigo: o protocolo entre a CNN e a Al-Jazira punha em confronto dois tipos de informação em grande parte transformada em propaganda — por isso os militares americanos pressionaram tanto para que as mensagens de Bin Laden fossem pré-visionadas antes da sua divulgação nos EUA. A Al-Qaida fez passar na Al-Jazira sucessivas cassetes vídeo apelando à jihad global e prometendo novas “tempestades de aviões”, o que pode significar ansiedade pelo facto de o Islão não se ter inflamado como ela esperava a seguir ao início das retaliações. Os seus dirigentes pareciam apostar tudo por tudo naquele momento, sabendo que dificilmente haveria outros tão potencialmente mobilizadores.

Primeiros, e inevitáveis, efeitos em bola de neve dos atentados de 11 de Setembro, para além da aceleração da crise económica americana e da nova consciência da vulnerabilidade global: o regresso de uma forte componente de secretismo ao poder político, o “endurecimento” previsível de políticas de Estado face às liberdades do indivíduo entendido como cidadão, um muito maior controlo sobre a circulação de pessoas, um maior acesso legal da intelligence a bancos de dados pessoais mais sofisticados, a relegitimização das “mãos livres” concedidas à espionagem, contra-espionagem e vigilância policial, o repensar da segurança do tráfego aéreo e dos aeroportos segundo um modelo mais próximo da El Al.

Os EUA e as democracias alinhadas na contra-ofensiva proposta têm à sua frente um trilho agreste, entre as inevitáveis políticas coercivas, resultantes do regresso da defesa e da segurança interna às prioridades nacionais, e o respeito pelos direitos cívicos do indivíduo-cidadão — pedra filosofal, desde Hobbes, das sociedades abertas, ou “sociedades individualistas de massa”, em que hoje vivemos. A guerra em curso inclui um confronto entre uma cultura da vida (o bem mais precioso de que o indivíduo ocidental dispõe é a sua própria sobrevivência, que convive mal com o patriotismo republicano) e uma cultura da morte (alimentada, não pelo Islão, mas pela jihad armada dos extremismos islamistas, tanto xiitas como sunitas).

 

Informação complementar

Outubro: agressões biológicas

• Quando, na primeira metade de Outubro, cartas com antraz chegaram a alguns media dos EUA (na Florida, em Nova Iorque e, depois, no Nevada), o vice-presidente Richard Cheney declarou, em entrevista à televisão pública PBS: “O mais prudente é admitir que estes factos estão ligados aos atentados de 11 de Setembro”. Os primeiros visados pelas cartas eram uma cadeia de tablóides de Boca Raton, na Florida, a NBC e o New York Times, e, depois, no Nevada, a Microsoft Licensing, filial do gigante dos logiciais. No N.Y.T., a destinatária da carta fora Judith Miller, co-autora de Germs (ed. Simon and Schuster), o best-seller sobre a guerra biológica que, por coincidência, saíra dos prelos a 11 de Setembro. A 15 de Outubro (esta edição do Janus fechou nessa data), soube-se que cartas suspeitas tinham chegado ao gabinete de Tom Daschle, líder democrata do Congresso, e os alvos passaram também a ser europeus: quatro destinatários franceses, entre eles a AeroSpaciale, o gabinete de Gerard Schroeder…

• A corrida aos antibióticos nos EUA — sobretudo ao Ciprobay, o mais eficaz contra o antraz — esgotou stocks nas farmácias, enquanto o Pentágono divulgava oficiosamente o que sabia sobre os meios de agressão química ou biológica na posse da al-Qaida: a organização poderia fabricar armas químicas mortais, apesar de “rudimentares”, e utilizar uma bactéria como o antraz em acções terroristas. A al-Qaida poderia ainda dispor de clorino ou fosgénio, elementos simples já usados na guerra de 1914-18, mas não de gás sarin, um composto utilizado em Tóquio pela seita Aum. Segundo a mesma fonte, Bin Laden poderia ter adquirido materiais radioactivos, mas não disporia de meios para fabricar armas nucleares.

• Os primeiros casos de antraz não foram apresentados pelas autoridades como correspondendo à ameaça de novos atentados, divulgada na mesma altura pelo FBI: Cheney, como G. W. Bush, repetiram, a este respeito, e independentemente das novas agressões biológicas, que “o nível de ameaça tinha subido”, e que os EUA “continuavam em perigo”.

• O “alerta antraz” estendeu-se à Europa, onde governos voltaram a identificar os agentes patogénicos mais temíveis, utilizáveis na guerra química e biológica: o germe da peste yersinia (responsável por mais de 200 milhões de vítimas desde o início da era cristã), que pode ser disperso por meio de aerosóis; o vírus da varíola (de que há stocks conhecidos em Atlanta e Novossibirsk, podendo no entanto existir outros, desconhecidos), dispersável por meios aéreos ou através dos aparelhos de ar condicionado; as toxinas botúlicas, também dispersáveis por aerosol, ou introduzíveis na cadeia alimentar através dos depósitos de água ou de certos alimentos, e contra as quais não é conhecido qualquer tratamento efectivo; e o antraz, provocado pelo bacillus anthracis, que, como nos casos de Outubro, nos EUA, provoca, ora infecções pulmonares conduzindo a septicémias muito rápidas (se inalado), ora infecções cutâneas mais fáceis de combater.

separador

* João Maria Mendes

Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lovaina (Bélgica). Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Professor na ESCT. Subdirector do curso de Ciências da Comunicação na UAL. Sudirector do Observatório de Relações Exteriores.

separador

Dados adicionais
Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas
(clique nos links disponíveis)

Link em nova janela Atentados terroristas mais relevantes e número de mortes por eles provocadas

Topo Seta de topo

 

- Arquivo -
Clique na edição que quer consultar
(anos 1997 a 2003)
_____________

2003

2002

2001

1999-2000

1998

1998 Supl. Forças Armadas

1997
 
  Programa Operacional Sociedade de Informação Público Universidade Autónoma de Lisboa União Europeia/FEDER Portugal Digital Patrocionadores