Pesquisa Avançada | Regras de Pesquisa | ||||
Onde estou: | Janus 2002 > Índice de artigos > Portugal e o mundo > Aspectos da conjuntura internacional > [11 de Setembro de 2001: salto qualitativo na guerra assimétrica] | |||
|
ESTE ARTIGO CONTÉM DADOS ADICIONAIS CLIQUE AQUI! David contra Golias, liliputianos contra Gulliver: os atentados de 11 de Setembro de 2001 contra as Twin Towers de Nova Iorque e o Pentágono, em Washington, são actualizações metafóricas destes combates, actualizações reais do know how do adversário mais mal armado na guerra do Vietname, depois metamorfoseado e especializado, em décadas de clandestinidade terrorista, por grupos tão distintos como o de Abu Nidal e a Fatah, a ETA e o IRA, a Jihad egípcia, o Hezbollah e o Hamas. Eles confirmam o que dizem os manuais — que é possível fazer a guerra com tesouras, brinquedos e talheres: os terroristas suicidas que desviaram os quatro jactos só levavam consigo facas e x-actos; um avião comercial com os seus passageiros a bordo, carregado de combustível, não é suposto tornar-se num míssil guiado à mão. Tornar instrumentos da vida quotidiana, novo campo de batalha, em armas mortíferas, usadas contra objectivos não necessariamente militares, depende sobretudo da mudança de ponto de vista sobre a utilidade desses instrumentos — e da capacidade técnica para levar à prática essa mudança. Expõe a vulnerabilidade da sociedade civil propriamente dita, e é um enorme salto qualitativo na conceptualização da guerra. Por essa razão, estes atentados foram imediatamente percepcionados como acontecimentos que marcam uma ruptura epocal, fracturando o tempo entre um “antes” e um “depois” da sua ocorrência: os poderes e as opiniões públicas têm a imediata percepção da extensão dos efeitos presentes e futuros desses acontecimentos, sabem que eles ferem os equilíbrios anteriores e vão alterá-los, e que o contrato social e a vida colectiva sofrerão as suas consequências. A resposta militar, iniciada a 7 de Outubro com os ataques aéreos americano-britânicos contra objectivos militares dos taliban e da al-Qaida no Afeganistão, confirmou essa percepção: mais de 40 países, incluindo a UE e Estados árabes, acompanharam a subida de patamar que o 11 de Setembro representou. O primeiro objectivo da retaliação era a destruição das defesas aéreas taliban, mas também a “remoção” do regime, num novo exercício da “guerra zero mortes”, apoiada na “overwhelming force” (força esmagadora) aérea, em que os EUA se especializaram. Vale a pena manter a atenção focada nos ataques de 11 de Setembro, porque eles revelaram a nova dimensão da guerra assimétrica que o terrorismo pode lançar contra as sociedades desenvolvidas, neste início do século XXI. “Guerra assimétrica” é um conceito nascido na força aérea dos EUA, a partir da Guerra do Golfo e dos raids NATO na Sérvia e Kosovo, filho da “overwhelming force” e da “guerra indirecta” (a que evita confrontos frontais): trata-se de, beneficiando da superioridade dos equipamentos e da tecnologia militares, concentrar acções num só alvo, ou num número muito limitado de alvos, particularmente vulneráveis, das forças adversas, usando o efeito surpresa, para alterar decisivamente as relações de forças num conflito preciso. O conceito permite discutir a justeza da retaliação iniciada a 7 de Outubro: classificando de inapropriada (no Afeganistão) a estratégia da “overwhelming force” baseada em bombardeamentos aéreos à distância, o general francês Christian Delanghe, investigador no US CREST de Washington, defendeu (Le Monde 13/10/2001) que, em vez desta, seria mais eficaz, contra os taliban e a al-Qaida, uma ofensiva “concentrada em poucos alvos identificados e seleccionados pelo seu impacte político, mais que militar”. Os atentados de 11 de Setembro mostram como a al-Qaida adaptou aos seus próprios meios esta ideia recém-entrada nos manuais de estratégia dos EUA. Apesar da sua magnitude material, da sua importância simbólica e dos cerca de 6.500 mortos que causaram (números incertos no fecho desta edição do Janus), os atentados de 11 de Setembro foram, apenas, a parte bem sucedida de um plano que visava atingir mais alvos em território dos EUA (no mínimo, um dos quatro jactos não atingiu o seu objectivo) e cujo objectivo era a desarticulação abrupta da vida e das instituições americanas: “Tornar a América numa sombra do que era”, nas palavras de Osama bin Laden. Que mais alvos? Alvos como os que foram evacuados por quem entendeu a lógica dos ataques: sedes da administração política, grandes instituições culturais ou os parques temáticos da Disney. O efeito procurado era o efeito Hiroxima-Nagasaqui, seguido do colapso de vastos sectores da economia americana e, “portanto”, da do mundo globalizado. Segundo a ONU, a economia mundial terá perdido 320 mil milhões de dólares até ao fim de 2001, em consequência dos ataques de 11 de Setembro. Na sua mensagem pré-gravada, e divulgada pela televisão do Qatar Al-Jazira menos de duas horas depois do início dos bombardeamentos de 7 de Outubro, Bin Laden juraria por Deus que “a América nunca mais saboreará, nem sonhará com o sossego e a segurança, enquanto não os tivermos na nossa terra e na Palestina”. Vistas uma a uma, as componentes dos ataques de 11 de Setembro não são novas: desvio de aviões de passageiros, procura deliberada do massacre de grandes dimensões, selecção de alvos indistintamente civis e militares, natureza suicidária das missões, são elementos que as democracias e suas opiniões públicas aprenderam a conhecer, separadamente, ao longo das últimas décadas do século XX, caracterizando, quer acções terroristas concebidas nas jihads do extremismo islâmico, quer as levadas a cabo por terrorismos separatistas europeus. Nova é a articulação conjunta, para concretizar ataques de grande magnitude e hipermediatizados, de todas essas componentes: o desvio simultâneo de um número considerável de grandes aviões de passageiros por células terroristas suicidas (constituídas por “sleepers” treinados para fazer “vidas normais” na Europa e EUA durante largos períodos), para os esmagar contra alvos fortemente simbólicos e identitários e tão povoados quanto possível, acrescentando à destruição desses alvos o máximo de vítimas inocentes — porque, precisamente em obediência a uma das doutrinas clássicas do terrorismo, “ninguém é inocente”. E o agressor já não se identifica (os atentados já não “precisam” de ser reivindicados). Foi a conjunção de todos estes factores que transformou estes atentados num ataque sem precedentes à defesa e segurança dos Estados desenvolvidos do pós-guerra fria. A experiência mostra que, quanto maior e mais fiável é o aparelho de defesa de um alvo possível, maior é a incapacidade, por este revelada, de se imaginar vítima de ataques que escapem à lógica desse aparelho de defesa. Foi o que sucedeu nos EUA: envolvidos no programa de escudos antimísseis e confiantes na eficácia das suas defesas convencionais (que alimentavam o mito da invulnerabilidade do território americano face a inimigos externos), o Pentágono e a Casa Branca foram surpreendidos por um acto de guerra realizado, a partir do seu próprio território, com “utensílios domésticos”. Agentes da DST francesa que reuniram com especialistas de segurança americanos a 5 e 6 de Setembro dizem que os seus colegas de além-Atlântico estavam sobretudo preocupados com a ameaça de ataques “NBC” (nucleares, bacteriológicos, químicos), ameaça que cresceu depois do 7 de Outubro. A dimensão e a complexidade da operação de 11 de Setembro revela a capacidade dos perpetradores e dos seus meios: confiantes na disciplina suicida dos seus mujadjines, iludiram, com eficácia, diversas tecnologias de ponta, usaram os mercados financeiros para se autofinanciarem e como arma para enfraquecer o inimigo, observaram durante meses as fragilidades funcionais deste último. Dir-se-á, com razão, que na génese da rede perpetradora está o anti-americanismo fanático dos integrismos islamistas, e que este se alimenta do anti-americanismo popular dos deserdados do Islão. Mas a al-Qaida resulta sobretudo da convergência de quadros oriundos das oposições autóctones de Estados árabes apoiados pelos EUA, e, antes de mais, da Arábia Saudita e do Egipto. Reorganizaram-se em torno de uma pátria imaginária e elegeram como alvo principal os EUA, de modo progressivamente mais claro, no final da década de 90. Apesar da deslocação demográfica do Islão para a Índia e Ásia Central, a al-Qaida é, antes de mais, um fenómeno árabe, um sintoma do problema maior que o mundo árabe constituirá no primeiro quartel do século XXI. Nesta matéria, discordamos dos analistas que vêem, numa rede do tipo da al-Qaida, um fenómeno que exprime a desterritorialização tardo-moderna das identidades: pelo contrário, ela corresponde ao investimento afectivo e ideológico num território ficcional mas profundamente motivador, o de um Islão conceptual parcialmente existente — o das teocracias despóticas que reanimam imaginariamente o califado pré-medieval, anterior às derrotas e humilhações da visão do mundo que a este correspondia.
Propaganda, CNN e Al Jazira Uma palavra só sobre o papel dos media nestes actos da nova guerra: o agressor dependeu da CNN, e da rede global dos media, para publicitar mundialmente a sua agressão, transformada em reality show — porque o directo televisivo é a principal chave de acesso ao espaço público contemporâneo. Daí, igualmente, a importância adquirida pela televisão Al-Jazira, nascida no Qatar há cinco anos e que se tornou, como dizem os media, na CNN do mundo árabe. Em guerra, é vital fazer-se ouvir no campo inimigo: o protocolo entre a CNN e a Al-Jazira punha em confronto dois tipos de informação em grande parte transformada em propaganda — por isso os militares americanos pressionaram tanto para que as mensagens de Bin Laden fossem pré-visionadas antes da sua divulgação nos EUA. A Al-Qaida fez passar na Al-Jazira sucessivas cassetes vídeo apelando à jihad global e prometendo novas “tempestades de aviões”, o que pode significar ansiedade pelo facto de o Islão não se ter inflamado como ela esperava a seguir ao início das retaliações. Os seus dirigentes pareciam apostar tudo por tudo naquele momento, sabendo que dificilmente haveria outros tão potencialmente mobilizadores. Primeiros, e inevitáveis, efeitos em bola de neve dos atentados de 11 de Setembro, para além da aceleração da crise económica americana e da nova consciência da vulnerabilidade global: o regresso de uma forte componente de secretismo ao poder político, o “endurecimento” previsível de políticas de Estado face às liberdades do indivíduo entendido como cidadão, um muito maior controlo sobre a circulação de pessoas, um maior acesso legal da intelligence a bancos de dados pessoais mais sofisticados, a relegitimização das “mãos livres” concedidas à espionagem, contra-espionagem e vigilância policial, o repensar da segurança do tráfego aéreo e dos aeroportos segundo um modelo mais próximo da El Al. Os EUA e as democracias alinhadas na contra-ofensiva proposta têm à sua frente um trilho agreste, entre as inevitáveis políticas coercivas, resultantes do regresso da defesa e da segurança interna às prioridades nacionais, e o respeito pelos direitos cívicos do indivíduo-cidadão — pedra filosofal, desde Hobbes, das sociedades abertas, ou “sociedades individualistas de massa”, em que hoje vivemos. A guerra em curso inclui um confronto entre uma cultura da vida (o bem mais precioso de que o indivíduo ocidental dispõe é a sua própria sobrevivência, que convive mal com o patriotismo republicano) e uma cultura da morte (alimentada, não pelo Islão, mas pela jihad armada dos extremismos islamistas, tanto xiitas como sunitas).
Informação complementar Outubro: agressões biológicas • Quando, na primeira metade de Outubro, cartas com antraz chegaram a alguns media dos EUA (na Florida, em Nova Iorque e, depois, no Nevada), o vice-presidente Richard Cheney declarou, em entrevista à televisão pública PBS: “O mais prudente é admitir que estes factos estão ligados aos atentados de 11 de Setembro”. Os primeiros visados pelas cartas eram uma cadeia de tablóides de Boca Raton, na Florida, a NBC e o New York Times, e, depois, no Nevada, a Microsoft Licensing, filial do gigante dos logiciais. No N.Y.T., a destinatária da carta fora Judith Miller, co-autora de Germs (ed. Simon and Schuster), o best-seller sobre a guerra biológica que, por coincidência, saíra dos prelos a 11 de Setembro. A 15 de Outubro (esta edição do Janus fechou nessa data), soube-se que cartas suspeitas tinham chegado ao gabinete de Tom Daschle, líder democrata do Congresso, e os alvos passaram também a ser europeus: quatro destinatários franceses, entre eles a AeroSpaciale, o gabinete de Gerard Schroeder… • A corrida aos antibióticos nos EUA — sobretudo ao Ciprobay, o mais eficaz contra o antraz — esgotou stocks nas farmácias, enquanto o Pentágono divulgava oficiosamente o que sabia sobre os meios de agressão química ou biológica na posse da al-Qaida: a organização poderia fabricar armas químicas mortais, apesar de “rudimentares”, e utilizar uma bactéria como o antraz em acções terroristas. A al-Qaida poderia ainda dispor de clorino ou fosgénio, elementos simples já usados na guerra de 1914-18, mas não de gás sarin, um composto utilizado em Tóquio pela seita Aum. Segundo a mesma fonte, Bin Laden poderia ter adquirido materiais radioactivos, mas não disporia de meios para fabricar armas nucleares. • Os primeiros casos de antraz não foram apresentados pelas autoridades como correspondendo à ameaça de novos atentados, divulgada na mesma altura pelo FBI: Cheney, como G. W. Bush, repetiram, a este respeito, e independentemente das novas agressões biológicas, que “o nível de ameaça tinha subido”, e que os EUA “continuavam em perigo”. • O “alerta antraz” estendeu-se à Europa, onde governos voltaram a identificar os agentes patogénicos mais temíveis, utilizáveis na guerra química e biológica: o germe da peste yersinia (responsável por mais de 200 milhões de vítimas desde o início da era cristã), que pode ser disperso por meio de aerosóis; o vírus da varíola (de que há stocks conhecidos em Atlanta e Novossibirsk, podendo no entanto existir outros, desconhecidos), dispersável por meios aéreos ou através dos aparelhos de ar condicionado; as toxinas botúlicas, também dispersáveis por aerosol, ou introduzíveis na cadeia alimentar através dos depósitos de água ou de certos alimentos, e contra as quais não é conhecido qualquer tratamento efectivo; e o antraz, provocado pelo bacillus anthracis, que, como nos casos de Outubro, nos EUA, provoca, ora infecções pulmonares conduzindo a septicémias muito rápidas (se inalado), ora infecções cutâneas mais fáceis de combater. Atentados terroristas mais relevantes e número de mortes por eles provocadas
|
| |||||||