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EUA e Rússia à procura de um novo entendimento estratégico

João Maria Mendes *

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Da Rússia à UE, dos regimes árabes “moderados” à Ásia Central e à Índia, quarentapaíses apoiaram em diversos graus o início das retaliações militares contra ostaliban e a al-Qaeda, na noite de 7 de Outubro. Um novo consenso tinha surgido,que permitiu o bombardeamento de alvos em Cabul, Kandahar, Jalalabad, Mazar-e-Sharife de campos de treino da al-Qaida em território afegão. Para além da Inglaterra,o Canadá e a Austrália, a França e a Alemanha, disponibilizaram-se para se associaremconcretamente às retaliações militares dirigidas pelos EUA. Como surgiu esseconsenso?

A administração G. W. Bush demorou horas a reagir aos atentados de 11 de Setembro: a segurança militar desviou o presidente americano até ao fim do dia, o que valeu a este último o comentário agreste de um senador republicano: “Ele foi eleito para dar ordens aos militares e não para lhes obedecer”. Vencedor da eleição presidencial sem a maioria do voto popular, o presidente viveu a prova como um teste à sua capacidade, e à da sua equipa, para fazerem frente, quer ao presente, quer ao futuro — e dez dias depois, as sondagens mostravam que passara no teste.

Quando emergiu, nos dias seguintes, primeiro pelas vozes do secretário de Estado Colin Powell e do secretário da Defesa Donald Rumsfeld, a administração Bush tinha subitamente deixado cair o isolacionismo republicano e apostava, contra o terrorismo internacional (e em primeiro lugar contra a rede Bin Laden e o regime que o albergava), numa coligação internacional tão ampla quanto possível, resistindo assim à tentação da resposta imediata — precisamente desejada pela al-Qaida. De facto, iria demorar quase um mês a preparar a retaliação militar.

O próprio presidente mudou de imagem, esquecendo os apelos iniciais a uma “cruzada” e à entrega de Bin Laden “vivo ou morto” e aprendendo o vocabulário em uso na comunicação política do mundo contemporâneo. Também teve de prescindir do nome “Justiça Infinita” para a contra-ofensiva: só o Deus do Corão ministra tal justiça.

Mas as questões semânticas não ficam por aqui: Powell e Rumsfeld não falam exactamente a mesma língua — o primeiro é um multipolarista pragmático e moderado, o segundo um unilateralista próximo dos jacksonianos do Pentágono e do vice-presidente Cheney. A construção da coligação, apresentada pelo presidente no Capitólio a 22 de Setembro, exprime ambas as abordagens — e delas resultam apoios como o do Uzbequistão estalinista, que já foi porta de entrada no Afeganistão para os soviéticos em 1979 (e de saída em 1989). E há Estados que aproveitarão a época anti-terrorista para ofensivas internas contra opositores e dissidentes.

 

O programa Kissinger

Quatro dias depois do 11 de Setembro, Henry Kissinger, voz influente em sucessivas gerações de republicanos e na opinião conservadora norte-americana, propôs (1) um programa de resposta ao terrorismo, sublinhando que essa resposta interessa a todas as democracias ocidentais, porque “estes ataques, se ficarem impunes, são o prelúdio do que pode suceder, ainda mais facilmente, nas suas próprias sociedades”.

Em diversos aspectos, a começar pela exigência de extradição de bin Laden, pela revisão jurídica da liberdade de acção da intelligence e pela criação do Office of Homeland Security, nova cúpula das três dúzias de agências federais incluindo o FBI e a CIA, passando pelo reconhecimento pragmático de que os membros da coligação internacional antiterrorista poderiam não subscrever senão os compromissos para que estavam preparados, até à rejeição das teses de Huntington e ao tipo das retaliações iniciadas a 7 de Outubro, os primeiros passos da administração de G. W. Bush, a seguir aos atentados de Nova Iorque e Washington, confirmaram a sintonia entre a doutrina Kissinger e os actuais decisores republicanos.

Os EUA precisavam de logística na Ásia Central, do apoio — mesmo que mudo — dos países árabes e do assentimento da China e da Índia. Mas foi, desde o primeiro momento, notória a tentativa de entendimento com a Rússia de Putin (também aconselhada por Kissinger), ela própria necessitada de maior tolerância americana para com a guerra na Tchetchénia. Uma aliança EUA-Rússia pode ser um dos objectivos estratégicos da administração americana, desejosa de repor ordem num mundo desorganizado pelo fim da bipolaridade, e onde, a longo prazo, se perfila a ameaça do crescimento político chinês. É um objectivo difícil de atingir, mas entendível à luz do desejo, conhecido desde a posse de G. W. Bush, de evacuar parte das áreas de intervenção internacional dos EUA ao longo da década de 90. Também na Rússia é perceptível o desejo de um cauteloso entendimento com os EUA, no quadro de um sistema de contrapartidas que lhe permita restabelecer uma zona de influência, evitar a desestabilização das repúblicas muçulmanas hoje partes da CEI, e defender a segurança dos oleodutos e gasodutos que, na Ásia Central e no Cáucaso, se destinam à Europa.

Na UE, o cenário mudou em relação ao que precedeu a Guerra do Golfo: a Inglaterra surgiu de novo, agora pela mão de Tony Blair, como “aliado especial” dos EUA, apoiando-os em todas as frentes: militar, diplomática e política. Blair terá visado reforçar, assim, a sua voz no contexto europeu. A França fez-se ouvir em dois tons: Jacques Chirac alinhado com as posições de Blair, Lionel Jospin salientando que a França “não está em guerra” com o Islão, rejeitando o espírito de “cruzada” e fazendo depender o tipo de participação na coligação do voto parlamentar. Essas duas posturas nacionais balizam o campo das reacções europeias, mas a UE foi, desta vez, unânime quanto à necessidade da coligação antiterrorista. Quase não se ouviram os lamentos europeus pelo apagamento da ONU no processo.

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Maior sintonia NATO-UE

Significativamente, os EUA não responderam à oferta de forças francesas na primeira fase das retaliações militares, recordando a história conflitual da França com a NATO e a sua defesa de uma força de intervenção rápida europeia que poderia rivalizar com a Aliança.

A NATO accionou, pela primeira vez na sua história, a 5ª cláusula do tratado de Washington, segundo a qual um ataque contra um dos membros da aliança é um ataque contra todos os membros. Ora, a maioria dos Quinze da UE está na NATO. Os líderes dos Quinze consideraram legítima, a 20 de Setembro, uma resposta militar americana aos atentados de dia 11, com base na resolução 1368 da ONU, que reconhece o direito de legítima defesa. E a UE acelerou a preparação de medidas que incluem o reforço da Europol e da Eurojust, a definição jurídica comum do crime de terrorismo, um novo mandato de busca e de captura europeu que substituirá os procedimentos de extradição, e o combate às fontes de financiamento do terrorismo internacional.

O governo israelita de Ariel Sharon manteve-se como o aliado mais incómodo dos EUA, aproveitando o desvio das atenções mundiais para acentuar a pressão militar contra Arafat e a Palestina. Instado, pela administração americana, a reduzir a ofensiva, respondeu que não recuaria, apesar de os EUA precisarem de espaço político para manterem os Estados árabes e outros Estados islâmicos na coligação.

Os Estados árabes manifestaram, salvo o Iraque, disponibilidade condicional para se associarem aos EUA, sublinhando que a extensão da jihad depende de novo enfoque do problema israelo-palestino. Também eles (Egipto, Arábia Saudita, Jordânia...) são alvos dos extremismos islâmicos armados, que os acusam de trair o Islão e de servirem corruptamente o Ocidente; a sua atitude está, em grande parte, condicionada por essa vulnerabilidade interna. Foi claro que um número excessivo de vítimas civis no Afeganistão, ou o recrudescimento da ofensiva israelita contra os palestinos, poderia fazer bascular o seu frágil assentimento.

A Índia aderiu cedo à coligação: também ela enfrenta o extremismo islâmico entre os separatistas de Caxemira. O Paquistão, que criou e reconheceu o regime taliban, dispôs-se a colaborar com os EUA, agravando a sua crítica situação: o extremismo islâmico agita as suas ruas e é uma ameaça interna, tanto mais grave quanto o país é uma potência nuclear e ninguém deseja ver o seu arsenal nas mãos de integristas.

Até o Irão xiita, inimigo jurado dos taliban, e Cuba, sem deixar de acusar o “terrorismo de Estado” e recordando o santuário anticastrista da Florida, condenaram os atentados nos EUA. Teerão recuaria na própria noite de 7 de Outubro, considerando a retaliação militar “inaceitável”. Uma ponte diplomática foi estabelecida por Londres para tentar monitorizar a posição iraniana.

Muito mais política e diplomática do que militar, e aberta a compromissos condicionais e multiformes, a coligação avançou. Mas existe a percepção clara, na Europa e no mundo islâmico, de que o futuro da guerra declarada contra redes especializadas em sobreviver entre as contradições do mundo político contemporâneo, depende, em grande parte, da compreensão, pelos EUA, de que, independentemente de um eventual entendimento estratégico com a Rússia, a bipolaridade é irrepetível e a unipolaridade tem um custo incomportável para a América: o futuro da nova guerra depende de uma muito mais efectiva multipolaridade, como é entendido, na administração Bush, pelo Departamento de Estado e Colin Powell.

Tal multipolaridade envolverá a correcção de políticas norte-americanas em áreas onde a sua função de árbitro é muito mais desejada do que o seu alinhamento com uma facção, como no conflito israelo-palestino. No fim de Setembro, a administração G. W. Bush fazia saber que tem um “novo” plano para a região, incluindo o reconhecimento de um Estado palestino e uma nova divisão do território, mantendo-se Jerusalém indivisa e como capital de ambas as partes...

 

Informação complementar

Paquistão, desestabilizador desestabilizado

O epicentro demográfico do mundo islâmico deslocou-se para a Índia (com os seus 350 milhões de muçulmanos) e Ásia Central: os árabes, apesar da sua importância simbólica e estratégica, são hoje uma segunda força nesse mundo (no total, são 200 milhões). O Paquistão — potência nuclear —, encurralado entre a exigência de “escolha de campo” por Washington e o Afeganistão dos taliban, tornou-se no epicentro político da coligação antiterrorista, e também no seu elo mais vulnerável: a eventual queda do regime do presidente Musharraff levaria a Ásia Central e a coligação para o desconhecido.

Musharraff celebrava em 12 de Outubro, entre rumores de golpe de Estado, dois anos do pronunciamento que o levou ao poder. Dias antes, afastara os seus pares Mahmud Ahmad (chefe do Inter Services Intelligence, ISIS), Mohammad Aziz Khan (comandante da região militar de Lahore) e Muzaffar Usmani (chefe de estado-maior adjunto), favoráveis aos fundamentalistas islâmicos do Afeganistão e Caxemira. Os três tinham-no apoiado em 1999. Sami ul-Haq, em cuja madrassa estudaram os principais dirigentes taliban, Faizul Rahman, chefe do Jamiat Ulema-e-Islami (Reunião dos ulemas do Islão) e Azam Tariq, chefe do movimento sunita Sipah-e-Sahaba, três dignitários político-religiosos de primeiro plano, foram postos em residência fixa durante um mês. Mas num país muçulmano, fortemente islamizante — como parte das suas forças armadas —, os partidos religiosos, minoritários nas urnas, são temíveis mobilizadores populares contra Musharraff, como mostraram, em Outubro, as manifestações em Peshawar, Quetta e outras cidades.

A questão de Caxemira envenenou mais o clima político: o Harakat al-Mujahidin, grupo guerrilheiro sediado no Paquistão, foi inscrito na lista de organizações terroristas feita em Washington, e outro, o Jaish Mohammad, também ali sediado, surgiu subitamente como amalgamando “terroristas afegãos e de Caxemira” — mas é visto no Paquistão como combatendo pela liberdade e autodeterminação do território.

Medidas excepcionais de segurança passaram a marcar o dia-a-dia das principais cidades do país, incluindo barricadas de sacos de areia nas avenidas centrais da capital, e um pequeno exército seguiu para Quetta, onde a opinião pró-taliban se mostrava mais violenta, enquanto o presidente anunciava uma escalada repressiva contra os “perturbadores”. Musharraff declarou repetidamente que 90% da população do país (140 milhões) o apoia. Mas os outros 10% são 14 milhões, sobretudo constituídos por populações urbanas.

A mobilização islamita não significa necessariamente, como não significaram as incontáveis manifestações pró-Saddam na Guerra do Golfo em todo o Islão, que exista uma base popular credível para a conquista do poder. Talvez por isso, os EUA pareciam, em Outubro, pouco sensíveis à situação do seu aliado paquistanês, de novo forçado a extremar o combate pela unidade interna do país. Mas, naquele aniversário, o destino de Musharraff parecia depender do futuro da campanha antiterrorista americana: os EUA garantiram-lhe que a retaliação militar no Afeganistão seria curta, mas logo a seguir anunciaram que iria ser longa; garantiram-lhe a selecção rigorosa dos alvos, sem danos colaterais, mas as vítimas civis multiplicaram-se desde o começo dos raids; o “apoio logístico” prometido por Musharraff aos EUA passou a ser um eufemismo para designar a presença de tropas americanas em pelo menos duas bases paquistanesas. Pior: a administração G. W. Bush sugeriu, na ONU, que as operações militares poderiam não se limitar ao Afeganistão, o que afectou profundamente, quer a “maioria silenciosa” em que o presidente diz apoiar-se, quer a intelligentsia paquistanesa.

 

O pesadelo de Nova Delhi

O Paquistão, “terra dos puros”, nasceu em 1947 como nação criada para parte dos muçulmanos das Índias, na sangrenta repartição da herança territorial do império britânico. Fundado por Mohammed Ali Jinnah, líder da Liga Muçulmana separatista, a partir do sonho do poeta indiano Mohammed Iqbal, os seus episódios democráticos têm sido breves parêntesis entre ditaduras. Nova Delhi nunca aceitou a criação do novo país, argumentando que a sua população (pachtunes, pendjabis, sindhis, balutches e mohadjirs (refugiados), nada têm em comum para além da sua conversão ao Islão. A secessão do Paquistão Oriental, tornado Bangladesh (1971), confirmou a artificialidade genética do país. Mas, desde o início, a história interna do Paquistão foi feita de golpes e contragolpes: assassínio do primeiro-ministro Ali Khan (1951), golpe militar de Ayub Khan (1958), lei marcial sob Yaya Khan (1969). No Paquistão Ocidental, Zulfikar Ali Bhutto gere, a partir de 1972, uma política de esquerda que se transforma em tirania despótica. Zia ul-Haq, chefe do seu estado-maior, manda-o prender (1977): Bhutto é condenado à morte e enforcado (1979). Ao longo de nove anos de ditadura militar, Zia islamiza o regime e toda a vida do país; morre (1988) num estranho acidente aéreo. A filha de Bhutto, Benazir, ganha o poder nas urnas, em nome do regresso da democracia.

Benazir e o seu adversário Nawaz Sharif alternam no poder enquanto a democracia se torna mais corrupta e perde o controlo das lutas interconfessionais: entre a minoria xiita e os extremistas sunitas, sindhis e mohadjirs. Musharraff toma o poder (1999), quando o país já é uma potência nuclear e desestabilizadora da região (como mostra o Afeganistão dos taliban, que o Paquistão “inventou” para dispor de um aliado importante contra a Índia). O eventual regresso da Aliança do Norte à liderança de Cabul é visto pelos paquistaneses como marcha atrás na relação de forças com Nova Delhi, onde o Paquistão continua a ser entendido como uma “péssima ideia”, nascida, não de um sonho bom, mas de um pesadelo de Mohammed Iqbal. Para se manter no poder, Musharraff precisava de se escudar na ONU, de calar os islamitas, de cortar as ligações com os taliban, de manter as forças armadas unidas e de alcançar uma plataforma negocial com a Índia sobre a questão de Caxemira.

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1 Kissinger, Henry, A War to Free the Future from Fear, distribuídopelo Los Angeles Times Syndicate International a 15.09.2001 e editado pelo TheSunday Telegraph de 16.09.2001.

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* João Maria Mendes

Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lovaina (Bélgica). Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Professor na ESCT. Subdirector do curso de Ciências da Comunicação na UAL. Sudirector do Observatório de Relações Exteriores.

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