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A possibilidade de ulterior submissão a referendo do projecto de Lei Fundamental não fica totalmente excluída dos poderes da Assembleia Constituinte e, por outro lado, adianta-se, também facultativamente, a hipótese de a Assembleia Constituinte se poder transformar, caso “a Constituição assim o determine” (2.6), no parlamento do futuro Estado. Prevê-se também que a duração dos trabalhos não exceda o prazo de 90 dias após a tomada de posse dos deputados constituintes. E embora a entrada em vigor da Constituição coincida com a data da independência, admite-se que alguns dos seus preceitos, “com a devida autorização do Administrador Transitório” (2.5), sejam aplicáveis mais cedo, para o caso de a forma de governo adoptada ou a realização de um referendo impor novos actos eleitorais. Este conjunto de preceitos, cuja necessidade não se demonstra, tem por finalidade salvaguardar a verosimilhança do calendário de transição política anunciado, admitindo a indeterminação essencial do desenvolvimento subsequente do processo. A Assembleia Constituinte poderá ainda pronunciar-se, por maioria simples, sobre projectos de regulamento que lhe sejam endereçados pelo Administrador Transitório. A inclusão desta norma indicia, ambiguamente, a intenção de extinguir o Conselho Nacional após a eleição da Constituinte.
Limites positivos do poder constituinte O poder constituinte assim reconhecido ao povo de Timor Leste vem condicionado por importantes limitações substantivas. Evitando-se, e bem, quaisquer exclusões quanto ao direito de participação no processo constituinte —- a corrente integracionista, por exemplo — explicita-se contudo a irreversibilidade da opção pela independência com força constituinte originária: “... uma Constituição para um Timor Leste democrático e independente.” A democracia e a protecção dos direitos humanos, acolhidos logo no primeiro artigo do Regulamento, complementam a recepção do Direito Internacional e dos Princípios de Justiça que vinculam materialmente o exercício previsto do poder constituinte. Além disto, é recomendada a “devida consideração” dos “resultados das consultas conduzidas por quaisquer (...) Comissões Constitucionais regularmente constituídas” (2.4). Trata-se de uma reminiscência das modalidades de um procedimento constituinte directo alternativo que foi definitivamente rejeitado em Novembro de 2000. A demissão de Xanana Gusmão da presidência do Conselho Nacional, recorde-se, teve justamente por causa próxima a rejeição pelo Conselho da proposta de criação de uma Comissão Constitucional para aqueles efeitos, e todo o clima de suspeição por ele denunciado. Para além dos limites materiais supracitados, existem também limites formais e circunstanciais. É estabelecido o requisito de uma maioria qualificada superior a 2/3 (60/88), para a aprovação da Constituição. Os deputados podem pedir a sua demissão ao presidente eleito da Assembleia Constituinte, que fica obrigado a comunicá-la imediatamente ao Administrador Transitório, que é a entidade competente para nomear o substituto, nos termos e segundo os critérios previstos no regulamento. Também a fixação do montante da remuneração dos deputados constituintes é da competência do Administrador Transitório. Não se descobre outra razão para a inserção destes preceitos, salvo a reiteração sibilina da indisponibilidade para partilhar a “soberania” sobre o território antes da data da independência. Apenas se deplora, caso a ambiguidade não seja também aqui deliberada, a falta de clareza.
Avaliação provisória do procedimento constituinte adoptado O poder constituinte, a criação de um novo Estado inscreve-se num espaço indeciso entre a legitimidade da ruptura violenta com a velha ordem e a necessidade de legitimação jurídico-constitucional do novo poder. Não se trata de uma problemática jurídica tradicional, nem de matéria submissa a modelos perfeitos de justiça. Por ironia da História, foram as construções teóricas de John Locke — que procurava legitimar a Revolução Gloriosa na Inglaterra do século XVII, o direito de resistência e o “apelo à força” — que serviram aos insurrectos das colónias americanas para justificar o seu direito à independência, um século mais tarde. Porém, a imperfeição inerente a qualquer modelo concreto de transição para a independência não justifica a sua arbitrariedade nem torna a escolha indiferente. O procedimento constituinte adoptado pela UNTAET, após longa e discreta consulta aos timorenses, merece por isso uma avaliação intercalar.
Um modelo “científico” Se apenas a lógica comandasse os destinos da humanidade, o caminho teria sido óbvio e linear: (1) organizava-se o processo eleitoral para uma Assembleia Constituinte para discutir, redigir e (2) aprovar uma Constituição que depois seria submetida a (3) referendo. Se o resultado fosse positivo haveria, então, que (4) adaptar a legislação eleitoral às disposições da nova Constituição — tarefa a cargo do Conselho Nacional ou da Assembleia Constituinte ou do Administrador Transitório — para que todos, ou algum deles, pudessem (5) convocar de seguida Eleições Gerais para o legislativo e, eventualmente, para o Presidente. Contados os votos, (6) os eleitos formariam então um Governo e o novo Estado seria proclamado. Da perspectiva dos sistemas de controlo vigentes nas organizações internacionais, este seria o modelo mais adequado porque reconduz ao processo todos os sucessos imponderáveis que tem de enfrentar, facilitando uma “prestação de contas” formal, objectivada, sistemática, exaustiva, segura e, por conseguinte, previsível. Mas não funciona.
Um exercício crítico No melhor dos cenários, não contando com os contratempos e impasses habituais, o processo poderia demorar dois ou três anos, tornando-se muito volátil, devido quer à necessidade de coexistência dos representantes eleitos pelos timorenses com funcionários internacionais, quer à proliferação de distintos protagonistas com legitimidades e fidelidades contraditórias — as Nações Unidas, a Assembleia Constituinte, o Conselho Nacional, a Administração Transitória, os partidos políticos, as igrejas, os militares e os juízes. Os conflitos seriam inelutavelmente amplificados com a multiplicação de actos eleitorais sucessivos e as respectivas campanhas partidárias, abusando de um povo confrontado com carências básicas flagrantes e violentando uma cultura onde os mecanismos da representação democrática ainda não se tornaram habituais.
Soluções práticas O Regulamento da UNTAET nº 2001/2, de 16 de Março, reúne finalmente os três instrumentos jurídico-constitucionais decisivos: a lei dos partidos, a lei eleitoral e a criação de uma autoridade eleitoral independente. Deplora-se apenas que de matérias com dignidade constitucional como estas, não tenha havido eco de quaisquer debates públicos formais ou informais. A marcação das eleições para 30 de Agosto viabiliza a conclusão do processo até finais de 2001 ou princípios de 2002, o que é razoável. Os dois projectos de constituição elaborados pelo Professor Jorge Miranda para o CNRT e o projecto elaborado pela Fretilin partilham uma comum inspiração na Constituição Portuguesa de 1976, o mesmo “parlamentarismo racionalizado” — com uma opção presidencialista — e uma esforçada simplificação textual. Não será por dificuldades de ordem técnico-jurídica, seguramente, que os trabalhos da Constituinte se hão-de atrasar. Importa reconhecer que a prorrogação indefinida da missão da UNTAET não seria aceitável para a comunidade internacional, nem é desejável perante a prolongada instabilidade política que se augura no território fronteiriço do antigo ocupante. Para os timorenses, não seria eficaz nem compreensível, nem sequer pedagógica: a democracia, como a liberdade, aprende-se praticando-a. Por fim, é expressamente afastado o perigo de a UNTAET admitir avalizar um Estado Independente sem que uma Constituição tivesse entretanto sido aprovada, o que é tranquilizador. Evidentemente, a permanência de um contingente militar internacional após a independência não fica prejudicada, o que tem sido devidamente reiterado. O procedimento constituinte adoptado parece assim consagrar uma solução razoável e exequível. É certo que nada garante que a Assembleia Constituinte, o primeiro órgão democraticamente legitimado pelos timorenses, não altere ou protele toda a estratégia de transição prevista. Dir-se-á que essa é apenas uma das fragilidades num processo que se admite à partida como irremediavelmente imperfeito.
Riscos subsistentes O mais importante será então averiguar se os compromissos selados por esta estratégia são claros e consistentes, se promovem uma forma de governo capaz de sustentar duradouramente uma democracia constitucional, se as partes envolvidas são representativas do pluralismo da sociedade timorense e até que ponto serão capazes de assumir as obrigações contraídas. Perguntas, enfim, que ficarão para já sem resposta definitiva. Contudo, é possível e útil fazer um exame retrospectivo de alguns sinais de perigo. É preocupante que o “pacto de unidade nacional” entre os partidos políticos não tenha sido firmado, como era natural e desejável, antes da opção pelo procedimento constituinte representativo que nele se devia sustentar. O Conselho Nacional, protoparlamento de composição exclusivamente timorense, e o Gabinete, com uma maioria de ministros timorenses, têm enfrentado sérias dificuldades em afirmar-se como instâncias credíveis de concertação entre os timorenses e como fórmula de articulação eficaz com a administração internacional das Nações Unidas. A crise de liderança e as votações erráticas no Conselho ou as ameaças cíclicas de demissão no Gabinete não têm prestigiado a anunciada partilha das funções de direcção política que justificaram o seu anúncio. É também motivo de apreensão o atraso do Programa de Educação Cívica cujo arranque esteve previsto para Setembro de 2000 e são graves os equívocos e contratempos que protelaram o lançamento de um amplo debate público sobre a questão constitucional. Quanto ao programa de educação cívica, registava-se a conclusão de um primeiro curso de formação de formadores até ao final de Abril de 2001. Quanto à organização do debate constitucional, por dificuldades de comunicação ou pouca experiência dos procedimentos parlamentares, desembocou na crise que levou ao afastamento de Xanana Gusmão da Presidência do Conselho Nacional e de seguida ao fracasso da eleição de José Ramos Horta, para o substituir. Enfim, perdas irreparáveis.
Conclusão A atribuição da tarefa de elaborar a Lei Fundamental a uma assembleia eleita para esse fim não é uma escolha que se imponha por si mesma nem foi, de facto, a única possibilidade encarada. Bem pelo contrário, as virtualidades de uma ampla consulta que abrangesse toda a população, capaz de envolver num debate descentralizado as comunidades locais com os dirigentes políticos timorenses e assim fazê-las participar no desenvolvimento do processo político, eram enfaticamente sublinhadas na alocução de abertura do Administrador Transitório perante os delegados ao Congresso do CNRT, ainda em Agosto de 2000. Em contrapartida, o afunilamento da discussão para a Assembleia Constituinte, que na prática se constata, desloca a política para o terreno eminentemente conflitual da representação. Evocando John Rawls e os atributos do véu da ignorância, não seria mais sólido e mais generoso um consenso constitucional aberto e plural, construído entre correntes de opinião e forças políticas que desconhecem ainda o seu peso eleitoral relativo? Claro que, desta forma, se colocava o problema de referendar prévia ou simultaneamente um projecto constitucional, mas ganhava-se uma vinculação mais certa, segura e controlável dos membros da Assembleia a compromissos e soluções publicamente construídos e consensualizados.
Informação complementar Condução do Procedimento Eleitoral A autoridade eleitoral em Timor Leste é exclusivamente investida numa Comissão Eleitoral Independente composta de 6 membros, dois dos quais timorenses, todos nomeados pelo Secretário-Geral das Nações Unidas. Esta entidade, a quem cabe a certificação final das eleições para a Assembleia Constituinte como “livres e justas”, organiza e conduz a preparação das eleições, regista os partidos políticos que se pretendem candidatar, previne e controla as irregularidades eleitorais e decide, em definitivo, todo o contencioso eleitoral, sem admissão de recurso judicial. A obrigatoriedade do registo dos Partidos Políticos e Candidatos Independentes tem por única finalidade a admissão de candidaturas às eleições constituintes. Foi expressamente afastada qualquer pretensão de, através do registo, limitar directa ou indirectamente as liberdades de associação, de reunião pacífica, de expressão, os direitos eleitorais passivos e activos e os direitos de participação política (20.3). A apresentação de candidatos às eleições está portanto submetida à obrigatoriedade do registo dos respectivos partidos políticos ou das candidaturas individuais independentes que, segundo a fórmula do respectivo requerimento, se comprometem explicitamente com a opção pela democracia e pela independência. São requeridas 500 assinaturas de timorenses, residentes habituais, para o registo dos partidos políticos, os quais só podem candidatar militantes seus. As candidaturas independentes estão sujeitas a requisitos análogos, caso pretendam concorrer ao círculo nacional, ou à propositura por um mínimo de 100 timorenses residentes nesse Distrito, para registar um candidato por um círculo distrital. Foi adoptado um sistema eleitoral misto com um círculo plurinominal único que elege 75 deputados, de base proporcional, e 13 círculos uninominais correspondentes aos actuais distritos, de base maioritária, restritos aos eleitores e candidatos neles residentes. Foi substancialmente favorecida a representação proporcional num círculo nacional único — em número superior à maioria qualificada de 60 votos necessários para aprovar a Constituição — com o intuito de limitar as distorções induzidas pela heterogeneidade da distribuição territorial dos votantes de cada força política, esperando-se das eleições a primeira clarificação sobre os contornos reais do sistema partidário. Por outro lado, prevaleceu a necessidade de moderar a dimensão do corpo legislativo, sobretudo na expectativa da futura transformação da Assembleia Constituinte em parlamento ordinário e considerando a disponibilidade previsível de recursos humanos e financeiros.
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