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Janus 2002



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A Indonésia e Timor Leste independente

Ana Gomes *

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Dois anos passados sobre o referendo de 30 de Agosto de 1999 é possível constataruma mudança progressiva mas radical nas relações entre a Indonésia e Timor Leste,sobretudo na atitude dominante no establishment indonésio, que passou do estadode choque, negação e despeito iniciais para o reconhecimento da realidade deum Timor Leste independente, e para a consideração objectiva do que a Indonésiatem a ganhar, ou a perder, com o tipo de vizinhança que vier a estabelecer.

O ponto culminante deste percurso de reconciliação foi o encontro entre a liderança timorense e a Presidente da República Indonésia, Sra. Megawati Sukarnoputri, no dia 12 de Setembro de 2001. Comprovativo desta evolução, foi a publicação em Setembro de 2001 pelo CSIS (Centre for Strategic and International Studies) de Jacarta — o think tank onde em 1974/75 foi conceptualizada diplomaticamente a ofensiva militar contra Timor Leste — de um estudo (1) advogando um papel construtivo para a Indonésia no desenvolvimento de Timor Leste como Estado independente.

Dois marcos de extraordinária lucidez e visão política foram fundamentais para abrir este caminho e devem-se a iniciativas de ambas as partes: em 30 de Novembro de 1999, ainda Díli fumegava do vandalismo que a destruíra, e já Xanana Gusmão, Ramos Horta e Taur Matan Ruak foram a Jacarta saudar o primeiro Presidente indonésio democraticamente eleito, Abdurrahman Wahid, o líder político muçulmano que fora visitar Xanana Gusmão ainda à prisão de Cipinang. E logo três meses depois, em 29 de Fevereiro de 2000, Wahid retribuía com uma visita a Díli, onde estilhaçou, com esclarecido humanismo e exemplar coragem moral e política, os preconceitos do orgulho indonésio, pedindo desculpa aos timorenses pelos erros e males infligidos ao longo de 24 anos de ocupação.

 

Conversações bilaterais UNTAET — Indonésia

Se a vinda a Jacarta foi o ramo de oliveira estendido pelos timorenses, a visita de Wahid a Díli lançou bases estruturadas para o processo de reconciliação, determinando o estabelecimento de conversações entre a Indonésia e a UNTAET sobre vários temas de interesse mútuo e identificando problemas — “residuais” — a resolver.

O Comunicado Conjunto então emitido estipula os principais assuntos em que as discussões vão incidir.

Na 4ª reunião Indonésia/UNTAET no âmbito destas conversações, em Fevereiro de 2001 (2) — com timorenses integrados na delegação da UNTAET — registaram-se progressos em todos os domínios, embora segundo ritmos evolutivos irregulares, dependentes de Jacarta (sendo os últimos meses de Wahid na presidência marcados pela paralisia governativa). Entre os principais temas da agenda, contam-se:

• Refugiados – questão prioritária para Díli, tanto pelas implicações humanitárias e políticas, como para a segurança do território: a sua presença em Timor Ocidental potencia a existência de milícias e outros agentes para a desestabilização de Timor Leste.

Em finais de Agosto de 2000, menos de um ano após o referendo, mais de 160.000 refugiados (70%) tinham regressado a Timor Leste (3). A tragédia de Atambua, em 6 de Setembro de 2000, em que foram assassinados três funcionários do ACNUR (4), interrompeu o fluxo, mas desencadeou um processo de reconsideração pelas autoridades indonésias sobre a permanência dos refugiados — trazidos para Timor Ocidental numa campanha militar e logística de grande envergadura. A retirada imediata do ACNUR e de todas as agências das Nações Unidas e ONGs que prestavam assistência aos refugiados obrigou Jacarta a assumir os encargos de os manter e, eventualmente, reinstalar. A insatisfação dos refugiados, até aí direccionada contra o ACNUR e a ONU, voltou-se rapidamente contra as autoridades, e a crescente fricção com a comunidade local fizeram aumentar as queixas em Timor Ocidental, pressionando Jacarta a libertar-se dos refugiados. A revisão política, porém, só foi assumida no Governo de Megawati, pela primeira vez afirmando ser uma prioridade indonésia repatriar os refugiados.

A visita a Washington de Megawati semanas após a sua eleição — encontrando-se com George W. Bush em 19 de Setembro de 2001 — não foi, obviamente, irrelevante para a rápida definição da nova política. Esta evolução oficial acentuou as divisões entre os timorenses integracionistas que tentavam instrumentalizar os refugiados, e, por outro lado, ajudou a rentabilizar o envolvimento pessoal de Xanana Gusmão no processo de reconciliação e repatriamento. As eleições pacíficas em Timor Leste em 30 de Agosto de 2001 fizeram o resto: grupos consideráveis de refugiados começaram organizadamente a voltar em Setembro de 2001.

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• Justiça – o Comunicado Conjunto de 29 de Fevereiro de 2000 prevê assistência mútua em assuntos legais, judiciais e questões de direitos humanos. Pouco depois é assinado um Memorando de Entendimento entre a UNTAET e o Procurador-Geral da República indonésio, estabelecendo mecanismos de cooperação diversos, incluindo a extradição. Mas, dadas as fortes sensibilidades políticas, o Memorando é contestado por sectores parlamentares em Jacarta. A liderança timorense adopta nesta matéria uma atitude pragmática, atenta às contradições em Jacarta e também aos dilemas internos entre os imperativos da reconciliação e da Justiça. Timor Leste não pediu a Jacarta reparações de guerra ou pela ocupação ilegal, mas exigiu o julgamento dos criminosos, timorenses ou indonésios; apostando no processamento da Justiça a nível nacional, com a vertente Tribunal para os casos de crimes mais graves e a vertente Comissão de Verdade e Reconciliação para os restantes. As inconsistências do processo de justiça indonésio farão compreender que só pela via dos julgamentos em Timor Leste pôr-se-á termo à impunidade e far-se-á justiça, para Timor Leste e para a Indonésia.

• Fronteira comum – na 4ª reunião bilateral foi criado um “Comité Conjunto de Fronteira” (CCF), para a demarcação das fronteiras terrestres e marítimas e a regulamentação das relações transfronteiriças, incluindo a passagem terrestre entre o enclave de Oecussi e o resto do território de Timor Leste. O CCF tem quatro subcomités que lidam com o trânsito das populações fronteiriças (foi já acordado o conceito de soft border para facilitar as movimentações tradicionais), a passagem normal da fronteira e a cooperação policial e de segurança ao longo dela. Reuniões de consulta regular e mecanismos de alerta e prevenção instituídos resultaram na diminuição dos incidentes registados e no estabelecimento de três pontos de passagem controlados, permitindo a circulação legal de pessoas e mercadorias. Admite-se que, com o novo governo em Jacarta, se desbloqueie a questão de Oecussi. Paralelamente, deverão começar em breve conversações sobre a linha de demarcação marítima, matéria de vastas implicações económicas, resultantes da redefinição das fronteiras marítimas entre Timor Leste, a Indonésia e a Austrália, como atesta o recente acordo entre Díli e Camberra sobre o Timor Gap.

• Reclamações respeitantes a bens e propriedades de entidades públicas e privadas – Timor Leste não pediu reparações de guerra, mas também não aceita a devolução ou compensação de quaisquer bens que o Estado indonésio, companhias publicas ou privadas e cidadãos indonésios individualmente aleguem ter perdido em Timor Leste. Sempre que Jacarta colocou este tema na agenda das conversações, a UNTAET inquiriu sobre eventuais precedentes (inexistentes…) em reparações indonésias a interesses públicos e privados portugueses e timorenses remontando a 1975, levando Jacarta a compreender ser do seu interesse deixar cair o assunto, sob pena de suscitar pedidos de reparação e indemnização timorenses e eventualmente portugueses (5).

• Pagamento de pensões a funcionários timorenses – a Indonésia aceitou regularizar o pagamento de pensões a timorenses reformados da sua administração pública, mas invocou impedimentos legais para continuar a fazê-lo após a independência de Timor Leste, tendo-se alheado da obrigação de pagar pensões ou indemnizar os funcionários que ainda tinha no activo em 1999. Por seu lado, as TNI (Forças Armadas Indonésias), tomaram a iniciativa de pagar compensações por desvinculação, em vez de pensões, aos timorenses que a serviram. Um sistema idêntico, extensivo a todos os timorenses, antigos ou actuais funcionários do Estado ou de empresas públicas da Indonésia, foi proposto pela UNTAET, sugerindo a constituição de um Fundo Especial — suportado pela Indonésia e com contribuições internacionais — que permitiria substituir o pagamento de pensões por compensações a todos os funcionários, que ficaram ou já regressaram a Timor Leste, ajudando igualmente a acelerar o repatriamento dos 6.000 a 8.000 funcionários ainda refugiados em Timor Ocidental (que com as famílias perfazem cerca de 30.000 a 40.000 pessoas). Jacarta começou, finalmente, a considerar esta solução.

• Relações económicas e comerciais – sendo um dos pontos potencialmente mais importantes da agenda bilateral, tem merecido menor atenção devido à prioridade dada aos aspectos de segurança e normalização política. Será, no entanto, também através da cooperação económica com a Indonésia que a paz, a segurança e o desenvolvimento serão alcançados.

A aguda consciência que a UNTAET e a liderança timorense têm deste factor explicam que a Pertamina, a empresa petrolífera estatal indonésia, se tenha mantido em Timor Leste como fornecedor de combustíveis, e que, logo na primeira visita a Jacarta, em Novembro de 1999, tenha sido pedido a Wahid o restabelecimento das linhas aéreas e marítimas — tendo a Merpati indonésia recomeçado os voos em Fevereiro de 2000, operando hoje seis voos semanais Díli-Denpasar-Jacarta. Não tardará que outros operadores estabeleçam ligações a outras cidades indonésias e regionais com as quais Díli já tem ou precisa de estabelecer circuitos comerciais: Surabaia, Macassar, Kupang, Singapura… Nos sectores da banca, telecomunicações, energia eléctrica, hotelaria, etc., Timor Leste só tem a ganhar criando sinergias com empresas indonésias experientes. A Indonésia será, naturalmente, o principal mercado das exportações agrícolas timorenses — já o é, tendo recomeçado a exportação de cami (6) para Surabaia, podendo em breve alargar-se ao tamarindo e ao arroz…

O desenvolvimento paralelo de Timor Ocidental e da província indonésia em que se integra, a NTT (Nusa Tenggara Timor) — politicamente vital para a segurança de Timor Leste, evitando pressões políticas e sociais desestabilizadoras — passa pela intensificação das suas relações económicas e progressiva integração neste plano. Bom sinal, é Díli ter já começado, em 2001, a importar cimento de Kupang.

• Cooperação no domínio da educação – graças ao entendimento entre a UNTAET e Jacarta, no âmbito das conversações bilaterais, mais de 900 estudantes timorenses regressaram ainda em 2000 a universidades indonésias para concluírem os seus cursos, beneficiando de bolsas de estudo concedidas por Jacarta e por fundações americanas, japonesas e timorenses, havendo mais de 800 inscritos a aguardar as respectivas bolsas, e estando a Indonésia aberta a receber timorenses nas suas escolas técnicas para formação vocacional e técnica, desde a hotelaria ao desenvolvimento agropecuário. Centenas de professores indonésios estão interessados em leccionar em Timor Leste — o que será certamente útil, porque vai continuar a ser necessário ministrar ensino em língua indonésia, tal como em inglês, independentemente da opção preferencial pelos português e tetum.

 

Enquadramento regional

Esta evolução no relacionamento bilateral entre Timor Leste e a Indonésia foi-se consolidando, tendo ambos como pano de fundo a perspectiva de integração num quadro de cooperação regional, tanto a nível político e de segurança, como económico.

Parece haver convergência quanto aos enquadramentos organizativos em que tal integração é possível e desejável: antes de mais na ASEAN; depois, num eventual Fórum do Sudoeste Pacífico (7); e ainda, no âmbito do Fórum do Pacífico Sul. Sintomático e positivo é Jacarta reiterar que a pertença a um dos últimos não exclui a adesão de Timor Leste à ASEAN — o que merecerá certamente, do ponto de vista político e de segurança, a prioridade de Díli.

 

Conclusão

Um longo e auspicioso caminho para a boa vizinhança e interdependência entre Timor Leste e a Indonésia foi cumprido nos dois últimos anos, não obstante restarem magnos problemas a resolver. O papel de Xanana Gusmão como interlocutor em que Jacarta confia e respeita não pode ser sobreavaliado nem subutilizado.

As eleições democráticas em Timor Leste levaram um muçulmano a assumir funções de Primeiro Ministro em Díli, capital de um país fortemente católico — isto só pode encorajar o relacionamento com o grande vizinho muçulmano. Uma política externa inteligente, descomplexada e realista é vital para um pequeno país como Timor Leste e exercita-se em primeira linha nas relações diplomáticas e outras com Jacarta. Mas Timor Leste não pode esperar que a República Indonésia lhe preste toda a atenção de que necessita, porque as vicissitudes e complexidades da transição indonésia determinarão frequentemente outras prioridades. A evolução do processo de democratização indonésio importa sobremaneira a Díli e influencia as suas relações com Jacarta. Na actual conjuntura só um modelo integrado de desenvolvimento com a Indonésia — e em especial com Timor Ocidental e a província da NTT em particular — pode servir o povo timorense.

 

Informação complementar

Cronologia

1999

30 Ago – Referendo em Timor Leste

04 Set – Anúncio dos resultados do referendo

06 Set – Ataque à casa do Bispo Belo;

libertação de Xanana Gusmão em Jacarta

12 Set – PR Habibie anuncia ter solicitado intervenção das NU para pôr termo à violência em Timor Leste

15 Set – Resolução do CSNU mandata força multinacional

20 Set – Chegada das primeiras forças da INTERFET

22 Out – Xanana Gusmão chega a Díli

25 Out – Resolução do CSNU estabelece UNTAET

30 Nov – Primeira visita a Jacarta de Xanana Gusmão, R. Horta e Taur Matan Ruak

Dez – Primeira visita do RESG Sérgio Vieira de Mello a Jacarta

 

2000

Jan – Visita do RESG a Jacarta

29 Fev – Visita do PR Aburrahman Wahid a Díli

Mar – Visita do RESG a Jacarta

Mai – Visita do RESG e Xanana Gusmão a Jacarta

Set – Visita do RESG a Jacarta

Out – Visita do RESG a Jacarta

 

2001

Fev – Visita de Xanana Gusmão e RESG a Jacarta

Mar – Visita de Ramos Horta e Mari Alkatiri a Jacarta

Abr – Visita de Xanana Gusmão a Jacarta

Jun – Visita de Xanana Gusmão a Jacarta

12 Set – Visita de S.Vieira de Mello, Xanana Gusmão, Mari Alkatiri e Ramos Horta a Jacarta, encontro com PR Megawati.

__________
1 Autoria de Prof. Hadi Soesastro, Director Executivo do CSIS , “East Timor – Development Challenges for the World’s Newest Nation”, Setembro de 2001 (publicado em folheto).
2 Estando a 5ª prevista para Outubro de 2001.
3 Mais de 186.000 em finais de Setembro de 2001.
4 Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.
5 O Prof. Hadi Soesastro sustenta a resolução destes problemas entre o governo indonésio e os proprietários, sugerindo que se classifiquem estes bens como investimento directo estrangeiro em Timor Leste, defendendo ainda     que o espectro das reparações pode desaparecer se “acordos satisfatórios” forem alcançados nos vários problemas identificados no Comunicado Conjunto de 1999.
6 Noz de “kamiri” (em indonésio) ou “candle nut” (inglês).
7 Ideia lançada pelo Presidente Wahid – englobando Timor Leste, Indonésia, Austrália e Papua Nova Guiné – pouco definida mas não descartada pelos potenciais participantes, mesmo após o afastamento de Wahid da presidência.

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* Ana Gomes

Embaixadora de Portugal em Jacarta.

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