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Uma análise mais cuidada revela cálculos de ordem política. É evidente que o partido do Governo se apercebeu das vantagens — a nível de política interna — desta mudança de posição. Apesar de sucessivos governos do Labor Party (Partido Trabalhista) terem estado intimamente associados ao apoio à anexação, repudiaram finalmente esta posição — em 1998, estando na oposição — o que desencadeou um debate acérrimo entre o então líder partidário e os seus antecessores. O Governo de Howard previu igualmente alguns benefícios eleitorais na tomada de uma posição interventiva na região, como forma de apelar aos elementos do eleitorado cépticos ou críticos relativamente à anterior e predominante ideia do “compromisso australiano”. Estes eleitores formavam a base de suporte do partido Uma Nação (One Nation Party — um movimento político desproporcionadamente influente devido às peculiaridades do sistema eleitoral australiano) que argumentava que relações mais próximas com a Ásia introduziam influências indesejadas e estranhas à sociedade australiana. Igualmente influente na tomada de posição do Governo foi o facto da política indonésia em Timor Leste ser inteiramente contrária às normas internacionais sobre os direitos humanos, questão importante para a opinião pública, como ficou demonstrado em sondagens da altura. Havia contudo outras considerações. Com o colapso do regime de Suharto e subsequente queda da sua reputação, a sordidez de relações próximas e acríticas com uma liderança política desta natureza tornaram-se evidentes. O episódio de Timor Leste ilustrou claramente o preço a pagar por esta posição. As anteriores posições australianas sobre esta questão passaram a ser debatidas a partir de uma nova perspectiva. O Ministério de Negócios Estrangeiros australiano tomou em Setembro de 2000 a decisão de tornar públicos — não aguardando os usuais 30 anos de confidencialidade dos registos departamentais — os seus dossiers relativos ao papel australiano na anexação de Timor Leste. Uma selecção dos pontos-chave desta questão foram editados numa obra intitulada Australia and the Indonesian Incorporation of Portuguese Timor 1974-1976 (A Austrália e a integração indonésia de Timor português 1974-1976). Apesar da fuga de partes deste material ao longo dos anos, a obra vinha demonstrar com clareza acrescida o papel significativo da Austrália na invasão indonésia. Em retrospectiva pode afirmar-se que os remorsos pelas acções de 1974-76 — combinada com a negligência a que fora votado Timor Leste após 1945, não obstante o apoio timorense às acções militares australianas contra o Japão durante a guerra, e aumentada pela traição implícita no acordo do Timor Gap — influenciaram fortemente os decisores políticos. Enquanto que na maior parte das análises de relações internacionais se constata que os Estados não agem por questões de consciência, torna-se difícil não acreditar que a Austrália não tenha agido — até certo ponto — para se redimir das posições e opções anteriores. Os documentos recentemente disponibilizados — e que constituem uma leitura fascinante — confirmam que Gough Whitlam (Primeiro Ministro 1972-1975) e Richard Woolcott (um dos seus principais conselheiros sobre política externa) foram as figuras centrais no delinear da política australiana. O encontro de Whitlam com Suharto em Java no princípio de Setembro de 1974, transmitiu a impressão à liderança indonésia de que a Austrália preferiria a integração da Timor Leste na Indonésia, embora a gestão da opinião pública australiana exigisse a “obediência” ao princípio da auto-determinação. Uma vez embaixador em Jacarta (a partir de Março de 1975), Woolcott pôs habilmente em prática esta política. Mas apesar dos documentos mostrarem a influência dominante de Whitlam durante este período, revelam igualmente a cumplicidade activa da burocracia dos Negócios Estrangeiros, confirmando que a cumplicidade australiana era superior ao que anteriormente se suponha. Desde o início de Julho de 1974 que a Embaixada da Austrália em Jacarta recebia informações de que figuras-chave do establishment indonésio contemplavam a anexação de Timor Leste, o que resultou numa troca de opiniões entre Graham Feakes, responsável pelo Sudeste Asiático no ministério em Camberra e o (então) embaixador em Jacarta, Robert Furlonger. Enquanto que Feakes duvidava do papel positivo da Austrália nos planos indonésios, não aceitava que a integração fosse necessariamente do interesse australiano e não acreditava que operações secretas por parte da Indonésia alcançassem os objectivos tão facilmente, Furlonger não possuia tais dúvidas. Antecipando o encontro em Setembro entre Whitlam e Suharto, comenta: “ Não poderia o Primeiro-Ministro dizer que partilha da opinião de que seria do interesse da região que o Timor português se unisse à Indonésia?” A cumplicidade australiana com os desígnios indonésios aumentava com o aprofundar do conhecimento sobre os seus propósitos. Em Agosto de 1975 a UDT tentou tomar o poder mas foram derrotados após combates com forças leais à Fretilin. Em poucos dias os decisores políticos australianos tomaram nota de que figuras-chave na UDT estavam alinhados com os propósitos indonésios e a servirem de testas-de-ferro. Nesta situação confusa as autoridades portuguesas retiraram-se para a ilha de Ataúro, havendo sugestões de que uma intervenção multilateral regional fosse mobilizada para acabar com os combates. Numa comunicação ao Primeiro-Ministro, Alan Renouf, Secretário do ministério refere as vantagens de uma participação indonésia nesta intervenção, ao contrário da acção unilateral contemplada por Jacarta. Essa ‘cobertura regional’ iria “ajudar a legitimar a operação indonésia e neutralizaria a oposição. Permitiria à Austrália apoiar a intervenção indonésia sob pretexto da preservação da paz na região”. Apesar dos dados não oferecerem uma imagem clara para o cenário após Julho de 1976, deverá referir-se que existem provas claras de uma abordagem bi-partidária à questão de Timor Leste. A dada altura Suharto comenta — após ouvir das dificuldades internas de Whitlam — que o Primeiro-Ministro parecia preferir Andrew Peacock (uma destacada figura da oposição) como seu sucessor, em detrimento de alguém do seu próprio partido, visto considerar que Peacock partilhava dos seus pontos de vista a nível de política externa. Embora interinamente, consequência do afastamento do Governo Whitlam em Novembro — após a matança de jornalistas australianos em Balibó, e a escassas semanas da invasão final — o Primeiro-Ministro Malcolm Fraser enviou uma mensagem a Suharto lamentando ‘irritações’ internas nas boas relações mútuas e afirmando entender a “necessidade da Indonésia ter uma solução apropriada” para o problema de Timor Leste. Se as posições políticas australianas eram claras, as das outras partes mostravam-se confusas. Suharto presidia a uma coligação de facções fluidas e competitivas. Não agiu em Agosto de 1975 quando uma intervenção teria tido credibilidade internacional, porque o seu conselheiro espiritual estava certo de que Timor cairia nas suas mãos sem qualquer esforço. Os documentos publicados sugerem que a instabilidade crónica do sistema político pós-Salazar em Portugal impediu a emergência de políticas coerentes em Lisboa. A descolonização seguindo o modelo africano — atribuição do poder ao grupo ou coligação mais poderosos — era defendida por uns, enquanto outros davam mais atenção aos desenvolvimentos em Timor Leste ou na Indonésia. Os timorenses, por necessidade, seguiram a posição portuguesa, com resultados catastróficos. As Nações Unidas encontravam-se imobilizadas pela Guerra Fria. Havia, no entanto, um factor comum: a política externa não era elaborada pelos ministros dos negócios estrangeiros. Em Portugal era frequente os militares tomarem a dianteira. Em seu abono, o senador Willesee, Ministro do Exterior de Whitlam, contestou de forma resoluta a abordagem do Primeiro-Ministro, causando incómodos aos burocratas. Em Jacarta, Adam Malik fora mantido na ignorância e, por conseguinte, as suas afirmações aprovando uma independência timorense eram genuínas. Posteriormente, ao saber das acções subversivas indonésias de desestabilização no território, tornou-se um defensor acérrimo da consumação dessa política. Quando o Professor Mochtar assumiu a maioria das responsabilidades pela gestão do ‘caso Timor’, Malik não foi deliberadamente informado de nada, por forma a torná-lo um porta voz mais credível para a posição da Indonésia. Enquanto única democracia parte neste triste episódio, os processos políticos australianos em nada parecem ter contribuído para um desfecho feliz. Visitas de parlamentares a Timor Leste com o intuito de se inteirarem da situação e clarificarem a sua posição foram vistos com aborrecimento por parte dos líderes australianos. Uma sub-secção do Partido Trabalhista que se interessou pela questão teve de ser ´posta na linha´. Artigos na imprensa australiana — alguns dotados de excepcional previsão, como posteriormente se verificou — foram notados principalmente pela sua capacidade de inflamar as sensibilidades indonésias. As auto-congratulações australianas relativamente aos eventos de Setembro/Outubro de 1999 foram atenuadas pelas revelações contidas no material disponibilizado. Não há dúvida de que influenciarão a opinião em Timor Leste. Embora o período de tempo coberto pelos documentos seja remoto na memória dos australianos, está muito presente para os timorenses. Os australianos devem agora ter a consciência de que as acções do seu Governo como cúmplices dos últimos 25 anos de miséria serão confrontados com qualquer acção positiva resultante da intervenção da INTERFET e da subsequente assistência australiana a Timor Leste.
Informação complementar Austrália: vizinho ambivalente A Austrália produziu governos que reconheceram a brutal invasão e subjugação de Timor Leste pela Indonésia, que ignoraram os pedidos de ajuda dos timorenses e só ouviam o discurso de Jacarta, e por isso assinaram sem problemas o tratado “Timor Gap” para a exploração comum do petróleo com a Indonésia. Depois do volte-face de Canberra em 1998, a Austrália encorajou o presidente Habibie a autorizar uma consulta popular no território; mas ao mesmo tempo passou a defender a generalização do ensino do inglês em vez do tetum e das línguas vernaculares… Nos anúncios de recrutamento de professores para esse programa, a Austrália dizia que o conhecimento do bahasa indonésio ou do tetum ajudaria, sem referir o português — língua falada por 15.000 australianos. Quase nenhum australiano falava tetum, mas muitos tinham estudado bahasa na escola, por isso a maioria dos que seguiram para Timor Leste para ensinar inglês tinham alguma familiaridade com a cultura indonésia, e eram totalmente insensíveis à cultura local. Mas os governos australianos das décadas de 70, 80 e 90, embora tolerando a ocupação indonésia do território por razões geopolíticas, abriram as portas do país aos refugiados timorenses, de tal modo que é na Austrália que reside a maioria dos timorenses da diáspora. A imprensa e a opinião pública australianas foram durante décadas sensíveis à luta de libertação de Timor Leste e à defesa dos direitos humanos no território. As universidades australianas mantiveram ensinos de línguas e da cultura locais, e movimentos de libertação puderam abrir, no país, as suas sedes. Estes contrastes reflectem a realidade social da Austrália, vária e contraditória. Há uma Austrália dos anglo-celtas anglófonos, monoglotas, monoculturais e apenas abertos ao mundo de língua inglesa, especialmente aos EUA. Mas há também a Austrália indígena, que sofreu o genocídio perpetrado pelos anglo-celtas: os aborígenes são simpatizantes naturais da causa timorense. E há também milhões de australianos oriundos ou descendentes de oriundos do continente europeu, a maioria dos quais se assimilou ao establishment anglo-celta. Alvos da política assimilacionista New Australian dos anos 50 e 60, muitos deles são bilingues ou multilingues e culturalmente sofisticados, o que os predispõe para a simpatia para com a causa timorense. Estes “australianos europeus” forçaram os governos dos anos 70 a adoptar políticas multiculturais, combatendo a hegemonia anglófona nos media, na educação e nas instituições públicas. Os cidadãos australianos oriundos de comunidades latinas — que falam italiano, espanhol, francês e também português — representam um potencial de contribuições construtivas nos projectos de reconstrução timorenses que respeitam as tradições e valores locais. E também estão bem apetrechados para saberem que o facto de falar inglês não implica a arrogância linguística nem o filistinismo característicos do estereótipo anglo-australiano ainda muito forte. Se a Austrália constitui hoje uma ameaça para Timor Leste por ser um poderoso agente de anglicização através dos seus programas de ajuda humanitária e outros, ainda subsiste espaço no país para combater de novo a favor do multiculturalismo e contra o fortemente anglófilo governo liberal — ironicamente o mesmo que encorajou o referendo sobre a auto-determinação e enviou tropas para apoiar a autonomização do território em Outubro de 1999. Os timorenses de Leste e os seus dirigentes, que conhecem suficientemente bem a Austrália para saberem como ela é diversa, têm de cultivar as amizades australianas que os compreendem em matéria de política da língua, de respeito pelas culturas locais, determinados a enfrentar os australianos anglocêntricos, que não vão desaparecer da Austrália plural.
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