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Onde estou: | Janus 2002 > Índice de artigos > A política externa portuguesa > Traços históricos > [As transições no século XX] | |||
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A política externa de cada Estado sofre alterações que também se prendem com as conjunturas internacionais. Para dar alguns exemplos, relativamente ao século XX, direi que a política externa portuguesa mudou, profundamente, com a transição da Monarquia para a I República e desta para a Ditadura e depois para a II República. No que se refere, por exemplo, às relações com o Vaticano — um relacionamento especial que vem desde as origens da nossa nacionalidade — observe-se que, durante a I República, chegaram a ser cortadas as relações; ou — outro exemplo — à aproximação que houve durante a I República com a França, a excepção republicana na Europa da época; ou ainda à tradicional desconfiança relativamente à Espanha, antes e depois das incursões monárquicas (a ditadura de Primo de Rivera é de 1923); e, sobretudo, à entrada de Portugal na primeira guerra mundial, feita contra a vontade manifesta e reiterada da nossa velha aliada Inglaterra, para salvaguardar as colónias portuguesas, ameaçadas de partilha entre a Inglaterra e a Alemanha, nos primeiros anos do século XX; e, finalmente, como defendeu João Chagas, para isolar a Espanha no contexto europeu da época e colocar Portugal numa posição de relevo na Conferência da Paz.
A política externa do salazarismo Com a Ditadura e o seu prolongamento pseudoconstitucional — o Estado Novo — a política externa portuguesa variou de novo. Teve, de resto, ao longo dos anos, várias inflexões profundas, algumas contraditórias entre si. A ascensão de Salazar ao poder está relacionada com a vaga autoritária e fascista que deflagrou na Europa do pós-guerra, com a ditadura de Primo de Rivera, em Espanha, que durou até 1931 e com o sucesso inicial do fascismo de Mussolini, na Itália (a marcha sobre Roma é de 1922). Com a II República Espanhola e, depois, o advento da Frente Popular, a política externa da ditadura portuguesa passou a ser de hostilização do governo legítimo de Espanha e de apoio, mais ou menos claro, aos conspiradores espanhóis que prepararam, em Portugal, o golpe antidemocrático no país vizinho. O general Sanjurjo, indigitado chefe da conspiração, morreu próximo de Cascais, num desastre de avião, em circunstâncias aliás não completamente esclarecidas, quando se preparava para tomar a iniciativa e o comando do pronunciamento (função que veio a caber ao general Franco, nessa altura em Marrocos). Durante a guerra civil, a política dúplice de Salazar foi de descarada intervenção em favor de Franco — recorde-se que a Sociedade das Nações tinha decretado a “não intervenção” — e Portugal, à semelhança do que fizeram a Alemanha nazi e a Itália fascista, desobedeceu abertamente, sem nunca o reconhecer. Durante a II guerra mundial, Salazar foi mais prudente, não obstante as suas inegáveis simpatias (iniciais) pelos regimes totalitários fascista e nazi. Não se dispensou de ajudar o Eixo quanto pôde (pelo menos na primeira fase da guerra) mas a defesa das ligações com as nossas colónias africanas, obrigou-o, desde o início, a sublinhar a estabilidade da “velha aliança” com a Inglaterra e a amizade tradicional com os Estados Unidos. Apesar de ter definido, para Portugal, o estatuto de país neutro perante o conflito mundial, foi mudando progressivamente a favor dos Aliados, com o evoluir da guerra, transformando-o em “neutralidade colaborante” (conceito esdrúxulo, exemplificado com a cedência da base dos Açores). A política relativamente a Espanha também mudou com a vitória nacionalista. Uma Espanha centralista e centralizadora, com um nacionalismo agressivo e em expansão, que só foi travado com a eclosão da guerra mundial, sempre seria inconveniente para Portugal. Salazar ignorou essa reserva tradicional da política externa portuguesa e negociou com Franco o chamado Pacto Ibérico — que não passou, felizmente, de um mero entendimento entre os dois ditadores ibéricos, feito nas costas dos Povos a que pertenciam. No pós-guerra, que poderia ter sido uma enorme oportunidade para Portugal e foi uma ocasião tragicamente perdida, Salazar começou por recusar o auxílio Marshall e orientou a política externa no sentido de um progressivo distanciamento que evoluiria para a política definida como “orgulhosamente sós”, em relação às democracias ocidentais e à Organização das Nações Unidas. Tinha medo do contágio democrático e de um conhecimento efectivo da nossa realidade política interna... O regime salazarista foi salvo pela “guerra fria”, com a traição das democracias ocidentais em relação aos ditadores ibéricos, tolerados pelo seu anticomunismo visceral. Portugal só entrou na ONU em 14 de Dezembro de 1955, uma transacção política de “baixos trocos” (como diria Salazar), suprema humilhação! Mas foi convidado para “membro fundador” da NATO em 1949, considerado um parceiro seguro pelo seu anticomunismo. Assim se verificou, uma vez mais, o oportunismo das chamadas “políticas de Estado” das grandes potências e o consequente abandono, sempre que isso lhes convém, dos princípios proclamados, ao permitir que fosse membro fundador de uma Aliança dita de defesa da liberdade um país — Portugal — em absoluto privado dela... Com o agravamento da questão colonial, que se deu no início da década de sessenta, [a perda da fortaleza simbólica de S. João Baptista, no actual Benim, o início da guerra em Angola (Fev. 1961), a invasão do chamado “Estado Português da Índia” (Dez.1961), logo seguido do eclodir da guerra colonial na Guiné (1963) e em Moçambique (1964)], a política externa portuguesa adquiriu uma vertente prioritária – a defesa da política colonial salazarista. Se Salazar cometeu erros palmares, fatais para o progresso de Portugal — e cometeu muitos — esse foi um dos maiores, um crime de lesa Pátria: empenhar todos os recursos portugueses, materiais e humanos, na defesa do statu quo colonial, (impossível de manter no contexto anti-colonialista do pós-guerra), sem querer entender que a evolução do Mundo ia num sentido irremediavelmente contrário. A descolonização era, com efeito, irreversível – e, era evidente, que quanto mais tarde fosse feita, pior: mais custos, mais dramas e mais traumas haveria de custar às populações em causa e a Portugal. Salazar recusando-se a reconhecer esta evidência, ficou como o grande responsável de todos os desastres que em consequência disso ocorreram: o isolamento e o desprestígio internacional, (especialmente em relação à Europa e até aos próprios parceiros da NATO), o desperdício de recursos indispensáveis ao desenvolvimento interno, a descolonização traumática, a impreparação das populações e das elites, para as inevitáveis independências, e o quase colapso do Estado português que se seguiu imediatamente ao 25 de Abril.
A transição do 25 de Abril A revolução dos Cravos implicou uma rotação de 180 graus na política externa portuguesa. Coube-me a honra de ter sido o primeiro-ministro dos Negócios Estrangeiros, a seguir à Revolução, nos três primeiros Governos Provisórios que se lhe seguiram (de Maio de 1974 a Março de 1975). Os governos de então tinham uma forte tutela do Presidente da República (António Spínola e, depois de 30 de Setembro de 1974, Francisco Costa Gomes) e da chamada Comissão Coordenadora do MFA. Em matéria de política externa, quando fui ministro dos Negócios Estrangeiros, para além da paz e da “descolonização possível”, tinha a ideia de fazer regressar Portugal a todas as Agências Especializadas da ONU, de que fora expulso, e restabelecer relações diplomáticas com todos os Países, para quebrar o isolamento internacional em que se encontrava. Assim aconteceu, de facto, num espaço de tempo recorde. A prioridade das prioridades era pôr fim às guerras coloniais, através de negociações políticas directas com os “movimentos de libertação” que as protagonizavam. Quando cheguei ao Ministério, em 16 de Maio de 1974 (onde nunca tinha entrado antes), levava duas grandes preocupações: saber qual iria ser a reacção da Espanha de Franco à “Revolução dos Cravos” (tinha na memória as “incursões monárquicas” nos primeiros anos da I República); e a neutralização de uma eventual ajuda da África do Sul (a do apartheid) às minorias brancas de Angola e Moçambique. Quanto ao mais, o meu objectivo era: desenvolver relações com todos os países do Mundo, sem excepção; cooperar, estreitamente, com os países europeus do Mercado Comum; com o Vaticano, especialmente em função da política de descolonização africana; com os países nórdicos; com os Estados Unidos (cujos embaixadores Scott e Carlucci tanto nos ajudaram); e com as instâncias da NATO. No plano interno, do Ministério, prezo-me de não ter feito saneamentos políticos e ter posto ao serviço de uma nova política, sem defecções, a esmagadora maioria dos diplomatas — com eficácia e um grande esforço. Imagine-se o que foi, em breves meses, restabelecer relações diplomáticas com quase todos os países com assento na ONU — incluindo a Índia, os países socialistas, africanos, árabes e do chamado Terceiro Mundo! Creio, no entanto, que a minha passagem pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros contribuiu para a definição de uma política externa coerente — de acordo com as necessidades do novo Portugal, democrático, aberto e progressista. Era uma política externa que se situava, deliberadamente, nos antípodas da política de Salazar e Franco Nogueira. Essa política, que então defini e comecei a aplicar, ainda subsiste nas suas grandes linhas. Entretanto, com as eleições de Abril de 1975 — as primeiras totalmente livres que houve em Portugal, desde 28 de Maio de 1926 — com a relativa pacificação que resultou da actuação feliz do VI Governo Provisório — a clivagem que se produziu no MFA, na sequência das grandes manifestações da Fonte Luminosa e do Estádio das Antas, no Porto, e, finalmente, o contra-golpe do 25 de Novembro de 1975, a febre pseudo-revolucionária baixou. Foi votada a nova Constituição da República, em 2 de Abril de 1976, eleito, por sufrágio universal directo, o novo Presidente da República, Ramalho Eanes, e constituído o I Governo Constitucional, a que presidi. A democracia estava, finalmente, institucionalizada, a acalmia política era generalizada, apesar de fortíssimas reivindicações sociais, a que tive de fazer frente em defesa de uma política de recuperação económica e de reequilíbrio financeiro. Portugal, depois de quase dois anos de euforia pseudo-revolucionária, foi obrigado a negociar com o FMI e aplicar um plano de austeridade. Era essencial para se poder pensar, realisticamente, na adesão ao Mercado Comum — que passou a ser a primeira prioridade desde 1977 — e numa correcta redefinição da política externa de Portugal, na Europa, no Atlântico e no contexto internacional.
Informação complementar Marcos das grandes mutações após o 25 de Abril 1. O pedido de adesão ao Mercado Comum, em Março de 1977, e as negociações que imediatamente se seguiram para concretizar essa adesão, que só veio a ocorrer oito anos depois, em 12 de Julho de 1985 (data da assinatura nos Jerónimos do Tratado de Adesão); 2. A adaptação à adesão, que se iniciou formalmente em Janeiro de 1986, mas que começou antes e que produziu uma radical transformação no País, tornando-o irreconhecível, quer no plano material quer humano, com a reforma da própria mentalidade dos portugueses; 3. A assinatura do Tratado de Maastricht, em 7 de Fevereiro de 1992, que criou a União Europeia e que modificou profundamente a natureza da nossa adesão. Como fiz saber então — era Presidente da República — o Povo Português deveria ter sido consultado, por via de referendo, sobre se aceitava os compromissos decorrentes da assinatura do Tratado, que implicava sérias obrigações no plano político, económico, financeiro e institucional para Portugal. Os dois partidos mais representativos — o PSD, então no poder, e o PS, na oposição — não entenderam, todavia, necessária uma tal consulta; 4. Portugal faz hoje parte de uma estrutura política de tipo federal, embora diferente das Federações existentes até agora — a União Europeia — o que lhe traz direitos e obrigações novas, o obriga a uma partilha de alguns atributos de soberania — até então considerados inalienáveis — e confere aos portugueses o estatuto de uma dupla cidadania: a portuguesa e a europeia. (Não sei se a grande maioria dos nossos cidadãos tem a consciência plena de que assim é. Nem se houve o cuidado de os consciencializar nesse sentido); 5. Entretanto, o Mundo sofreu uma profunda mudança em 1989, com o colapso do comunismo, no plano mundial, a queda da “cortina de ferro” e o fim da “guerra fria”. As relações inter-Estados e no quadro da ONU mudaram radicalmente. Surgiu uma única hiperpotência, sem paralelo na história. A organização dos países não-alinhados, que alimentava um certo terceiro-mundismo, deixou de fazer sentido. A NATO, de que Portugal é um dos membros fundadores, parece ter deixado de ser uma organização defensiva e está porventura a mudar de natureza (o problema pôs-se agudamente a propósito da intervenção no Kosovo). Contudo, os portugueses não foram consultados sobre o assunto, nem sequer devidamente esclarecidos... 6. Portugal aceitou pertencer à Comunidade Ibero-Americana, criada em 1992 em Guadalajara (México). O que começou por ser uma Cimeira de Chefes de Estado e de Governo dos países ibero-americanos (incluindo Cuba) com Espanha e Portugal, evoluiu no sentido de uma organização mais abrangente de cooperação e entre-ajuda em que a solidariedade política não está excluída; 7. Portugal reuniu em Lisboa a 17 de Julho de 1996, os chefes dos Estados dos Países Lusófonos donde saiu a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Uma comunidade não só de defesa da língua comum e das culturas de expressão portuguesa mas também uma organização de cooperação e entre-ajuda (económica, financeira, cientifica, tecnológica, universitária, ambiental) mas também, em termos políticos, de solidariedade. Timor, antes de ser um Estado independente tem já o estatuto de observador da CPLP e, ao optar pela língua portuguesa, como língua oficial, irá seguramente pertencer à CPLP num futuro próximo.
O discurso nas Nações Unidas No discurso que proferi na Assembleia Geral das Nações Unidas, como ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal — em nome de um Portugal “livre, democrático e renovado” — em 23 de Setembro de 1974, indiquei logo os grandes objectivos a seguir, o que representou um primeiro compromisso solene tomado precisamente nas Nações Unidas: 1. Democratização das instituições, pela realização de eleições livres a todos os níveis, que prometi para Março de 1975 (seriam realmente em 25 de Abril de 1975, visto que o calendário inicial foi adiado pelos dramáticos acontecimentos de Março); 2. Descolonização dos territórios sob administração portuguesa segundo um processo rápido e seguro, estabelecido de acordo com os legítimos representantes da vontade dos povos respectivos, conduzindo necessariamente à independência (Note-se que não falei de autodeterminação, ou seja, de uma consulta prévia às populações, porque os movimentos que faziam a guerra a Portugal a recusavam. Seguiu-se o caminho, na altura o único viável, que percorreu De Gaulle, ao fazer a paz de Evian, negociando directamente a independência da Argélia com o FLNA); 3.Aceleração do desenvolvimento do país, fazendo um apelo à solidariedade internacional, ao investimento externo e declarando o propósito de uma aproximação à Europa do Mercado Comum”.
Noutro lugar do mesmo discurso, referi, como prioridades: - O reforço da comunidade luso-brasileira em termos de eficácia prática; - Relações de boa vizinhança com a Espanha; - Apoio cultural e social aos grupos de portugueses dispersos no mundo; - Respeito dos princípios de independência e de igualdade entre os Estados e de não ingerência nos negócios internos dos outros Estados; - Respeito pelos Tratados Internacionais em vigor, especialmente da Organização do Atlântico Norte (que constituía um ponto altamente polémico nessa época); - Colaboração e participação activa na ONU e, em geral, com os organismos de cooperação internacional.
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