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Janus 2002



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A posição portuguesa no debate constituinte europeu

João Maria Mendes *

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Ao reler-se o discurso da tomada de posse do Presidente Jorge Sampaio, a 9 deMarço de 2001, fica-se com a sensação de que as preocupações do Estado em matériade acção externa se centram na defesa do lugar e do papel de Portugal na Europapós-Nice. Entre os cinco desafios a que, na leitura do Presidente, o País temde fazer face, o “lugar de Portugal na Europa depois de Nice” ocupa a segundaposição, logo após o crescimento económico e em estreita articulação com este,visto que também o crescimento económico é analisado à luz da imperativa “convergênciareal com os padrões europeus”. A presença e intervenção portuguesa em outroscenários do mundo só merece uma referência genérica, e de novo vista atravésda posição portuguesa na UE: “...a nossa posição na União será sempre valorizadapelo reforço das alianças e da cooperação externa do País com o resto do mundo”.

Quer dizer, no discurso presidencial não há referência à alternativa voluntarista que o Brasil representou desde 1995 para o Estado e para parte do empresariado português; não há referência à constituição da CPLP nem a uma avaliação da sua existência; nem às relações que Portugal (por força da História e dos afectos) entretém com cada um dos PALOPs na sua diversidade; nem ao então momentoso problema dos reféns portugueses em Cabinda; nem à África do Sul, onde a situação da comunidade portuguesa se vinha a complicar; nem às relações bilaterais luso-espanholas ou à situação regional dos países ibéricos na UE; nem a qualquer especificidade dos problemas da Europa do Sul no espaço mediterrânico; nem ao que era ainda um projecto da governação socialista — tornar Portugal (ou Sines?) em “plataforma atlântica da Europa” —; nem à continuidade do envolvimento português em Timor; nem à bem sucedida negociação diplomática sobre Macau, que pode ter ajudado a manter aberta uma porta de comunicação com a China; nem à internacionalização de parte da comunicação audiovisual portuguesa...

Não é lícito procurar no discurso presidencial uma síntese das prioridades da acção externa do Estado. Mas ele é um sinal forte do que são as preocupações do poder nesta matéria, tanto mais que, não havendo entre nós a tradição do “discurso sobre o estado da Nação”, um discurso de posse presidencial, como um discurso de posse de um chefe de governo (pensemos no discurso de posse do primeiro-ministro em 1995, que precisamente identificou o Brasil como objectivo estratégico para a internacionalização de empresas portuguesas), tendem a ocupar supletivamente essa posição: o primeiro porque dele se espera um diagnóstico e um projecto nacional, o segundo porque dele se espera um programa de políticas concretas.

Diante dos cinco desafios que Jorge Sampaio enumera no seu discurso, temos o sentimento de que se trata de desafios estruturais que não podem ser vencidos no quadro de uma legislatura ou de um mandato presidencial, a não ser quando dependem inteiramente de pressões exógenas, como é o caso da reconfiguração das instituições da UE, prevista para a CIG de 2004, ou no da situação nova com que o País se defrontará na redistribuição dos fundos europeus depois de 2006.

Este facto repõe a importância do seguinte tema: a natural conflitualidade da vida política e das tensões entre partidos maioritários não nos ajudam a lidar com problemas que assumem a dimensão de “projecto nacional”, de “causa nacional”. Tanto mais que parece ter-se instalado como esperança de vida do poder político nacional o ciclo do duplo mandato, isto é: que a experiência tem mostrado a tendência para a exaustão das políticas no poder ao fim de dois mandatos, a sua falta de capacidade para, findo esse ciclo, conseguirem ainda relançar-se, sozinhas, apoiadas pelo mesmo eleitorado que as tornou possíveis. Só os resultados de eleições legislativas confirmam ou desmentem tal hipótese, mas cremos que é uma hipótese forte.

Surge assim como conveniente, para Portugal, um compromisso interpartidário de fundo, envolvendo os partidos que têm assegurado o poder em alternância ou em coligação, mas compromisso aberto e fazendo apelo à co-responsabilização da sociedade civil. Ele permitiria — eventualmente — transcender a dimensão do actual ciclo de credibilidade do poder político, testando um novo modelo organizacional para o enfrentamento e superação dos “problemas”, ou “desafios”, ou “nós górdios” que fragilizam a sociedade portuguesa. Avalie-se a importância crescente das ONGs na UE e ter-se-á um exemplo do que é essa necessidade de os governos partilharem, cada vez mais, decisões com organismos emergentes da sociedade civil, lutando, ao mesmo tempo, contra a “crise da representação” política.

A necessidade de tal acordo agudiza-se quando os problemas nacionais são a limitada capacidade de investimento do Estado, as ineficazes reformas do ensino e da formação (sobretudo nas suas dimensões técnica e científica), do sistema de saúde, da administração pública e a realização do projecto “menos Estado, melhor Estado”, a reforma fiscal no sentido da convergência europeia, o futuro da segurança social, a tentativa de diminuir as assimetrias regionais, e, ainda, o desígnio, que se eterniza sem resultados, de “maior crescimento económico durável”. O resvalamento do País, de novo em 2001, para o crescimento da dívida externa, o mau controlo da inflação, a incapacidade de melhorar sensivelmente a produtividade e de conseguir um crescimento económico percentualmente equiparável à média da UE, enfatizam a necessidade de tal acordo.

Em matéria de política externa, ele tende sempre a preexistir às governações, porque a política externa não é tão acentuadamente território de conflito. Mas mesmo nesta matéria, o sistema instituído não é um pacto de regime – basta pensarmos no que tem sido a relação de Portugal com o Estado angolano para o reconhecermos.

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O debate constituinte na UE

Um exemplo de pacto entre regimes à escala internacional é o sistema de pequenos passos que tem permitido a construção europeia, independentemente da diversidade dos poderes nacionais: a criação da moeda única, por exemplo, é um risco partilhado que se sobrepõe à diversidade das soberanias nacionais, embora por estas consentido.

Reconsideremos a questão do futuro de Portugal na UE. O processo pós-Nice é marcado, até 2004, pelo debate sobre o futuro da “Constituição” política e institucional europeia, com base num pano de fundo em que a experiência de “consenso permissivo” vive um momento difícil: os esforços necessários para satisfazer a convergência na UEM e sustentar a moeda comum, bem como para reformar a PAC em nome de uma maior estabilidade e prosperidade no continente, não encontram eco fácil em cidadãos que constatam a hesitação europeia diante dos conflitos na Bósnia e no Kosovo, e que sentem que a Europa os protege mal como consumidores, hesitando, por isso, em ceder às suas instituições mais competências e soberania. Está a gerar-se um fosso, alimentado por retóricas eleitorais nos Estados membros, entre a necessidade de dotar a UE de instrumentos constitucionais mais coerentes, por um lado, e uma vaga a favor da “renacionalização” das políticas comuns, por outro.

É conhecida a posição de Jacques Delors sobre o esforço constitucional propriamente dito: num artigo que co-assinou com Vaclav Havel (Le Monde, 1 de Fevereiro de 2001), ele diz que “mais vale um bom tratado que uma má Constituição”, sublinhando que é talvez preferível reorganizar os tratados existentes de modo claro, isolando neles os “elementos constitucionais” e reordenando-os para criar, a partir do que já existe, um “contrato de base” mais coerente. As políticas comuns (PAC, mercado comum, euro, etc.), seriam, por seu turno, consagradas por um “contrato bis”. No plano da reforma institucional, entre os temas em debate avultam a transformação da Comissão — hoje diminuída e parlamentarizada, em resultado da crise Santer — em “executivo” da UE, a transformação do Conselho Europeu, estruturado sobretudo com base em critérios demográficos, no Orgão maior da UE, a redefinição funcional do Parlamento, que ainda não aprova o Orçamento da UE, e um eventual desdobramento do sistema parlamentar em bicamaralismo, com os labirínticos problemas organizacionais que tal implicaria.

 

França e Alemanha

Mas sejamos claros nesta matéria: são a França e a Alemanha que apresentam melhores condições para serem as referências deste processo. Profundamente diferentes em matéria de organização política e económica, ambas mantêm desde há décadas um diálogo sobre a arquitectura europeia, sem o qual não se teria chegado aonde se chegou —ao euro e à UEM.

De um lado está a França presidencialista, onde o Parlamento tem de lutar para consolidar a sua posição no sistema, e que transporta uma tradição jacobina, republicana e democrática. A França é o único dos Quinze que tem fraca tradição parlamentar. O seu modelo não foi pensado para ser gerido em coligação, dependendo do papel presidencial, articulado com uma administração central forte. Face a este modelo, a Alemanha, com a sua tradição federalista e o seu corporativismo, deu ao Parlamento, às regiões e ao partenariado social papéis políticos fundamentais. É do confronto entre estes dois modelos organizacionais que sairá, ou não, um compromisso sobre a reforma das instituições da UE.

É certo que o euro e o próximo alargamento obrigam a União a mais integração política. Ora, 40 anos de integração mostram que o impulso não virá da Grã-Bretanha, que sempre dispensou uma Constituição escrita e mostra um interesse tardio pela zona Euro. Nem dos países mediterrânicos, que não estão em posição de propor sínteses dos modelos políticos e socioeconómicos europeus. As particularidades dos países escandinavos, e a falta de uma cultura política própria da integração, enfraquece a sua participação neste debate. Quanto aos futuros aderentes do Centro e Leste, são debutantes políticos sem peso económico.

E há também o peso da demografia e da história: a França e a Alemanha representam hoje 140 milhões de europeus e são Estados fundadores, o que lhes dá um papel instituinte reforçado. O “campo magnético” que desenvolvem em seu redor, o poder de atracção que têm sobre outros países — a Espanha atraída pela França, a Itália pela Alemanha — surge como “natural”. A questão institucional e constitucional europeia está no centro da vida política interna francesa e alemã: ao discurso de Joschka Fischer na universidade Humboldt responde o discurso de Chirac no Bundestag, Gerard Schroeder associa-se a Giuliano Amato para discutir uma “Federação de Estados-Nação”, Jacques Delors associa-se a Havel para discutir um projecto constitucional para a Europa, Helmut Schmitt e Edmund Stoiber discutem a redução de poderes da UE.

Em França e na Alemanha, os partidos nacionais reflectem “naturalmente” sobre a estrutura institucional europeia: a UDF e o RPR apresentaram documentos estratégicos sobre o tema constitucional e da reforma das instituições, como fez a CDU/CSU no Bundestag.

 

Portugal no pós-Nice

Entende-se que, neste contexto, Portugal desenvolva uma estratégia multilateral, tentando preservar os seus direitos de pequeno-médio país do Sul num quadro movediço, determinado pelos países com mais peso demográfico, económico e político. Uma Europa mais integrada vai inevitavelmente ferir mais a soberania portuguesa, com efeitos imprevisíveis na opinião pública e na sociedade civil, mesmo que os principais partidos políticos portugueses não ponham em causa a sua vocação europeísta.

Mas nada disto significa que Portugal não desenvolva, com realismo e imaginação, uma ideia europeia própria, apoiada nas parcerias que se apresentem, e que lhe permita continuar por dentro do “pelotão da frente” da integração. Nem significa que Portugal não identifique com clareza os valores que defende na e para a Europa, designadamente não deixando morrer o que, depois da sua presidência, ficou conhecido como “estratégia de Lisboa”. Significa, sim, que a cimeira de Nice e o que se lhe segue tornou mais difícil a prossecução dessa tarefa.

Como comentou Delors no seu artigo comum com Havel, há novos valores hoje emergentes na Europa: os cidadãos europeus podem ser levados a reinteressarem-se pela Europa através do debate constitucional, — não o debate técnico da reforma institucional, mas o debate constitucional em sentido lato, em torno dos princípios e dos valores — que tende a ser um elemento mobilizador e formativo de opiniões públicas europeias, lá onde elas existam.

 

Cidadania e valores

Se o euro vingar, se a protecção dos cidadãos-consumidores se acentuar, se progressos como a livre circulação se multiplicarem, se for possível instituir uma fiscalidade europeia em vez das nacionais, se caminharmos para um ensino e formação técnica e científica europeus (coisas que estão, hoje, ainda longe do horizonte dos cidadãos da Europa), a ideia de um percurso constituinte pode ser uma ideia mobilizadora, que ajude a gerar identidade em torno dos valores e interesses comuns, apesar da heterogeneidade política, económica, social e cultural. E esse terreno – o dos valores e o dos objectivos, o da cidadania, o dos direitos e deveres do cidadão europeu – é um terreno em que Portugal pode afirmar-se internacionalmente. É um terreno mobilizador das opiniões públicas, que ajudaria a equilibrar o peso negativo que a perda progressiva das soberanias nacionais tende, psicológica e politicamente, a adquirir nos Estados membros, sobretudo naqueles que não são locomotivas do processo de integração.

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* João Maria Mendes

Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica de Lovaina (Bélgica). Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Professor na ESCT. Subdirector do Curso de Ciências da Comunicação da UAL. Subdirector do Observatório de Relações Exteriores.

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