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Onde estou: | Janus 2002 > Índice de artigos > A política externa portuguesa > Grandes orientações > [Portugal e os Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mundial] | |||
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Kennan inclinava-se para a segunda hipótese, considerando, no entanto, que tal entendimento só poderia ser obtido através de uma garantia oficial, por parte do governo americano, de respeito pela soberania portuguesa em todos os seus territórios coloniais (1). Esta declaração será apresentada pelo próprio Kennan a Oliveira Salazar, alguns dias depois, vencendo assim as suas primeiras resistências e abrindo o caminho para que as negociações entre os dois países se saldassem por um acordo assinado em Novembro de 1944, concedendo aos norte-americanos facilidades na ilha de Santa Maria. Entrava-se numa fase — desde os últimos anos da segunda Guerra Mundial até meados da década de 50 — caracterizada pela “integração reticente” de Portugal na “esfera de influência americana”(2) e que acabou por corresponder ao melhor período das relações luso-americanas na história recente. É durante esta fase que Portugal adere, pese embora hesitantemente, ao Plano Marshall e à NATO e que assina com os Estados Unidos dois importantíssimos acordos bilaterais de defesa e de auxílio mútuo em 1951. Pode dizer-se que estes acordos de 1951 representam o ponto alto do relacionamento político, diplomático e militar entre os dois países nos anos do pós-guerra.
As dificuldades dos anos 50 e 60 A partir de meados dos anos 50 as relações entre Portugal e os Estados Unidos entraram numa nova fase. Num contexto fortemente marcado pela emergência e pelo desenvolvimento do movimento da descolonização, vieram ao de cima as diferenças entre os dois países relativamente à questão colonial e ao império português. As primeiras dificuldades surgiram em 1954, após a ocupação dos pequenos enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli, no chamado “Estado Português da Índia”. Na sequência destes acontecimentos, Portugal procurou recolher o apoio e a solidariedade dos Estados Unidos, solicitando uma declaração oficial do governo americano condenando a atitude da União Indiana. A resposta dos americanos foi negativa, deparando-se assim o governo português com os primeiros sinais de hesitação por parte dos Estados Unidos, desde a segunda Guerra Mundial, em relação à questão colonial portuguesa. Desta recusa, o governo português vai prontamente tirar as suas conclusões e, a partir de meados de 1954, instala-se nas relações luso-americanas um clima de alguma frieza e sobretudo de muita desconfiança por parte do governo português para com os Estados Unidos. Tudo isto se reflectirá, de imediato, nas negociações entre os dois países para a renovação do acordo das Lajes, que entretanto chegava ao fim em 1956. Apesar das discordâncias entre Portugal e os Estados Unidos sobre a questão colonial remontarem a 1954, é lícito considerar que o ponto de viragem fundamental, neste contexto, foi o ano de 1961. A verdade é que, ainda em Dezembro de 1960, os Estados Unidos se tinham abstido na resolução 1542 sobre o colonialismo português aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas. Foi só com a subida ao poder de John F. Kennedy que a situação se alterou devido, acima de tudo, a uma mudança fundamental da política norte-americana em relação ao continente africano, que veio afectar de uma forma directa os interesses de Portugal. A nova administração democrata decidiu adoptar abertamente uma política anticolonialista e abraçar a causa da autodeterminação e da independência dos novos países africanos. Ora, justamente quando esta mudança está em curso, eclodem em Angola relevantes manifestações contra o domínio colonial português — com os incidentes de 4 de Fevereiro de 1961, em Luanda, e com os ataques da UPA no norte de Angola, a 15 de Março do mesmo ano, estes últimos geralmente apontados como o início da guerra colonial naquele território. A crise no relacionamento luso-americano viria a atenuar-se logo a partir de 1962 e durante os anos da administração Johnson, em virtude, primeiro, dos interesses estratégicos norte-americanos nos Açores e, depois, do desenrolar da Guerra do Vietname. No entanto, a verdade é que o início dos anos 60 parece também corresponder a uma mudança mais profunda e significativa das coordenadas essenciais da política externa portuguesa. Como notou o historiador António Telo, aquilo a que se assiste nesta altura é a “uma verdadeira inversão de alianças e de influências na sociedade portuguesa”. O tradicional apoio proveniente das potências marítimas dominantes no Atlântico — como a Inglaterra e os Estados Unidos — tende gradualmente a ser substituído, em todas as suas vertentes, por uma aproximação aos “novos aliados” da Europa continental, como a República Federal Alemã e a França. É nestes países, e por conseguinte no espaço da CEE, que Portugal vai encontrar agora não só o apoio militar, financeiro e político necessário para a prossecução das guerras em África, mas também as novas referências “em termos económicos, tecnológicos, culturais e de mentalidade”(3). Esta “opção europeia” em termos do eixo fundamental da política externa portuguesa tem passado frequentemente despercebida, tanto mais que o próprio discurso oficial do regime se preocupará em disfarçá-la. No entanto, ela é inegável, traduzindo-se não só pelo incremento das relações bilaterais com a República Federal Alemã e com a França, mas também pela progressiva aproximação a diversos organismos multilaterais europeus como a EFTA e a OCDE, a que Portugal aderiu em 1960.
O período “marcelista” Durante o período “marcelista” as relações entre os Estados Unidos e Portugal conhecem algumas alterações significativas. Essas alterações são provenientes, em primeiro lugar, das mudanças na própria política externa americana com a subida ao poder da administração Nixon e com a definição de uma política para a África Austral favorável ao estabelecimento de relações amigáveis com os poderes estabelecidos na região, nomeadamente com Portugal . Por outro lado, também Portugal resolveu alterar aquele que tinha sido até então o seu posicionamento em relação à base das Lajes. Como recorda o embaixador Calvet de Magalhães, directamente envolvido nas negociações para a renovação do acordo das Lajes no início dos anos 70, o governo português decidiu-se por uma atitude “mais realística”, abandonando a exigência de “garantias políticas” pelo uso da base e passando agora a insistir nas “contrapartidas materiais” ou de “carácter económico”. É neste contexto que surge o novo acordo sobre a base, assinado em 1971, com os Estados Unidos a fornecerem a Portugal, entre outras contrapartidas, um crédito de 400 milhões de dólares para projectos de desenvolvimento (4). Esta aparente melhoria nas relações luso-americanas durante o consulado marcelista é igualmente revelada pelo posicionamento do governo português durante a chamada guerra do Yom Kippur. Portugal foi então o único país membro da NATO a autorizar os Estados Unidos a utilizar uma base sua (a base das Lajes) na ponte aérea de auxílio a Israel. Porém, tudo isto não impediu que, na continuidade do que verificava desde o início dos anos 60, Portugal continuasse a dar passos decisivos no sentido da sua aproximação à Europa continental, procurando consolidar esta outra vertente da sua política externa. Como notou uma vez mais o historiador António Telo, os efeitos cumulativos desta aproximação à Europa seriam, a prazo, fatais para o autoritarismo português. Na verdade, a transição para a democracia surgirá em Portugal, tal como na restante Europa do sul, como um efeito do “período longo de desenvolvimento acelerado do pós-guerra”. Telo julga detectar como “motor directo” deste processo o chamado “milagre europeu e, em particular, a locomotiva da CEE” que implicou “uma imensa abertura da sociedade portuguesa ao exterior” (5).
A transição para a democracia Neste contexto, que papel ficou então reservado para os Estados Unidos no processo de transição para a democracia em Portugal? A proximidade temporal do tema e a indisponibilidade de materiais de arquivo para este período não nos permitem ainda avançar com conclusões definitivas. O papel dos Estados Unidos na consolidação e triunfo da democracia em Portugal, tendo sido, porventura, menos relevante do que o da CEE e dos países europeus, não foi de todo irrelevante. Ressentiu-se, contudo, de uma conjuntura particularmente difícil a nível interno, com os reflexos da intervenção no Chile e com o próprio escândalo do Watergate a limitarem a margem de manobra das administrações Nixon e Ford. Os americanos terão também sentido algumas dificuldades na avaliação da dimensão e do potencial das forças em jogo no xadrez político português, em comparação com os seus parceiros europeus. Estes — e em especial a República Federal Alemã — não hesitaram, desde cedo, em constituir-se como “grande fonte de financiamento externo de muitas organizações portuguesas, desde o PS aos outros partidos democráticos, associações de agricultores, sindicatos e, segundo parece, até mesmo sectores ligados à Igreja”(6). Os Estados Unidos só após a chegada do embaixador Frank Carlucci a Portugal terão adoptado política semelhante, evoluindo assim para aquilo a que o investigador alemão Rainer Eisfeld chamou de “dupla estratégia norte-americana/oeste-europeia de atracção e pressão”. Esta estratégia caracterizou-se pela retracção e suspensão de apoios e incentivos económicos aos primeiros governos provisórios portugueses, e por um imediato desbloquear desses mesmos apoios ao sexto governo provisório. Refira-se, a título de exemplo, que nos primeiros dias de Outubro de 1975, já com o sexto governo em funções, os Estados Unidos e a CEE concederam conjuntamente a Portugal créditos no valor de cerca de 270 milhões de dólares (7).
Informação complementar A posição internacional de Portugal em Julho de 1964 As relações luso-americanas atravessaram um momento particularmente difícil nos primeiros anos da década de 60. As dificuldades foram provenientes, acima de tudo, da questão colonial, uma vez que a adopção de uma política anti-colonialista por parte da administração Kennedy coincidiu com o início da guerra em Angola. Na altura, o governo português investiu deliberadamente numa política de diversificação dos seus apoios externos, procurando assim fazer face à relutância dos seus tradicionais aliados anglo-saxónicos. Um relatório produzido por Frank J. Devine, primeiro secretário da embaixada norte-americana em Lisboa, em Julho de 1964, dá-nos conta precisamente desta situação. Devine analisa detalhadamente a posição internacional de Portugal, afirmando existir agora um “consenso” entre a comunidade diplomática radicada em Lisboa de que a posição internacional de Portugal tinha “melhorado significativamente” nos últimos tempos. Esta melhoria na posição internacional de Portugal é explicável, segundo Devine, pela “infusão de uma nova energia na diplomacia deste país”. Ao longo de 1961 e 1962, quando Portugal e os Estados Unidos se encontravam a renegociar a presença americana na base das Lajes, era frequente dizer-se que “o controlo de Portugal sobre os direitos de utilização dos Açores era a única carta de trunfo” possuída por Lisboa. Agora, de acordo com Devine, a “mão” dos portugueses era “incomparavelmente melhor”. Procurando justificar esta asserção, o diplomata americano destaca cinco pontos essenciais: 1. A base da República Federal Alemã em Beja – Devine recorda que durante um período considerável as negociações entre Portugal e a Alemanha Ocidental foram conduzidas em segredo, mas que um acordo entre os dois países relativo à construção de uma base alemã em Beja foi finalmente tornado público “com o maior impacte possível” pelo Ministro da Defesa português a 14 de Outubro de 1963. 2. Os “detalhes do acordo militar luso- germânico” – Devine evoca a recente visita à Alemanha do Ministro da Defesa Gomes de Araújo e o comunicado emitido em Lisboa, após o seu regresso, que, com “grande detalhe, dramatizou a dimensão da cooperação bilateral entre os dois países, e publicou aspectos previamente desconhecidos do acordo militar RFA-Portugal”. 3. A base francesa na Ilha das Flores, nos Açores, para rastreio de mísseis balísticos, anunciada publicamente por Franco Nogueira, numa conferência de imprensa de 1964. Considera Devine que este “surpreendente anúncio apanhou a audiência desprevenida, produziu o máximo impacte, e reforçou dramaticamente a imagem pública de um Portugal aproximando-se cada vez mais de aliados importantes”. 4. Relações com a China Comunista: segundo Devine, o governo português apercebera-se que o possível estabelecimento de relações diplomáticas entre Portugal e a China constituía um ponto particularmente sensível para o mundo ocidental em geral e para os Estados Unidos em particular e, por conseguinte, agitava periodicamente essa possibilidade. 5. Os convites regulares para viagens às colónias portuguesas em África: Devine destaca o facto de o governo português utilizar agora, como parte da sua ofensiva diplomática, os convites para visitas a Angola e Moçambique dirigidos a grupos de estrangeiros, a jornalistas, ao secretário-geral das Nações Unidas e praticamente a todos os embaixadores residentes em Lisboa. De acordo com Devine “estas e outras acções” fazem parte de uma “ofensiva diplomática levada a cabo pelo governo português durante o último ano”. “Levando em linha de conta a posição desfavorável e relativamente isolada da qual partiram”, o consenso da comunidade diplomática é agora de que os portugueses, “através de uma combinação dos seus próprios esforços e do curso dos acontecimentos mundiais”, têm obtido um sucesso razoável. À luz do exposto, conclui Devine, “parece de alguma maneira improdutivo e até fútil procurar, nesta altura, persuadir os portugueses de que o tempo corre contra eles e de que devem iniciar uma política de negociações e concessões a fim de salvar a sua presença em África. Este tipo de conselho simplesmente não coincide com a sua própria análise da situação”. Assim, “parece haver pouco a ganhar e algo a perder em pressionar muito insistentemente com uma linha de análise e de conselho em que os portugueses não estão presentemente preparados para acreditar ou aceitar”(8)
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