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Bilateralidade e multilateralidade de Portugal e Espanha

Observatório de Relações Exteriores

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Uma mesa-redonda sobre a política externa portuguesa, organizada na York House,em Lisboa, em 17 de Março de 2001, pelo Observatório de Relações Exteriores daUAL, permitiu reunir um grupo de políticos, militares, investigadores, universitáriose jornalistas que aceitaram discutir informalmente o tema em referência.

O presente texto esboça a síntese de algumas das posições que obtiveram maior consenso entre os participantes.

 

O interlocutor ibérico da Europa

A Espanha é a primeira grande condicionante da política externa portuguesa: no quadro do empenhamento português na UE, que constitui hoje o principal desígnio da política externa de Lisboa, não serve os interesses de Portugal que países membros da União, ou órgãos de cúpula da UE, tomem a Espanha como seu interlocutor na Península Ibérica — ou que, como os media têm tendência a dizer, as “questões com Lisboa se resolvem primeiro em Madrid”. Outra formulação da mesma questão, comum em Bruxelas e em Madrid, é a de que o decision shaping sobre os países ibéricos é decision shaping sobre um espaço predominantemente indiferenciado e comum: decisores europeus pensam recorrentemente que, quando se resolve um problema com Espanha, se resolve o mesmo problema com Portugal.

Desde o início do processo de integração — em 1977 — é reconhecível, na Europa, a tendência de certos grandes países para pensar que Portugal pode ser tratado como o parceiro menor da sub-região ibérica, tendência que, sem se ter instalado irreversivelmente, reapareceu na cimeira de Nice e nas novas relações de forças decorrentes do tratado de Nice.

A razão de ser desta tendência funda-se na apreciação que Estados fortes da UE fazem da importância relativa de Portugal no contexto peninsular: a população portuguesa representa apenas um quinto da população da Península Ibérica; o PNB português representa 25% do espanhol; o Orçamento de Estado espanhol é sete vezes superior ao Orçamento de Estado português; e, sobretudo, a importância dos interesses económicos e financeiros espanhóis em Portugal não tem parado de crescer desde a adesão de ambos os países à então Comunidade Europeia, sem que haja contrapartida em sentido inverso.

De facto, em 1985, imediatamente antes da adesão dos dois países à Comunidade, a Espanha era o quinto fornecedor de Portugal e seu sexto cliente. Hoje a Espanha é o primeiro fornecedor e primeiro cliente de Portugal (absorvendo 20% das exportações portuguesas). No mesmo ano, a taxa de cobertura da balança comercial portuguesa com Espanha era de 70%. Hoje varia entre 37% e 41%, consoante nos referimos aos dados portugueses ou espanhóis sobre esta matéria. E, a par da balança comercial, poderiam citar-se os fluxos turísticos, a dependência energética ou outros sectores: todos eles apontam na mesma direcção — e mostram claramente que a dependência de Portugal em relação a Espanha se acentuou fortemente desde a adesão.

O ciclo dos primeiros vinte anos de integração europeia dos dois países alterou e continua a alterar qualitativamente o relacionamento e interdependência entre os dois Estados peninsulares, e fê-lo e fá-lo claramente a favor de Espanha. Mas também provocou e continua a provocar uma outra mudança qualitativa, mais política e igualmente importante: ambos os países se consciencializaram, face ao desafio constituído pela integração europeia, de que o que os liga é mais relevante do que o que os separa e faz divergir. Neste quadro, Portugal passou a evitar embates bilaterais e a tentar multilateralizar o seu relacionamento no quadro da Comunidade, depois União Europeia. Agentes portugueses ligados aos primeiros anos da adesão recordam o tempo em que Lisboa preferia discutir com Madrid via Bruxelas, em vez de favorecer a negociação directa com o país vizinho.

É importante sublinhar que, embora Portugal e a Espanha partilhem hoje as únicas cooperações reforçadas avant la lettre, Schengen e o Euro, subsistem conflitualidades entre os dois países quanto ao projecto europeu e sua arquitectura política (como se viu em Nice, com o maior peso atribuído a Espanha nas estruturas de decisão europeias e a posição de risco em que Portugal passou a encontrar-se, entre os médios e pequenos países da UE) e em matéria de algumas das mais significativas políticas comuns (caso da Política Agrícola Comum, de que a Espanha é um importante beneficiário, enquanto Portugal é um contribuinte líquido).

Ao mesmo tempo, a nova partilha, por Lisboa e Madrid, de alguns interesses comuns no quadro multilateral não suprime a necessidade de políticas infra-estruturais bilaterais: os dois países ibéricos não conseguirão resolver os problemas dos recursos hídricos, das telecomunicações, da energia (gás e electricidade), da rede de estradas e de transportes, com base em lógicas sobretudo nacionais. Ora, apesar das múltiplas cimeiras luso-espanholas que se têm realizado nos últimos quinze anos, as “soluções ibéricas” são ainda deficitárias.

 

Dificuldades acrescidas na UE

Na UE pós-Nice, enquanto a Espanha ganha, por via do peso demográfico, um lugar mais próximo dos “grandes países”, Portugal enfrenta dificuldades acrescidas, provocadas por dois factores autónomos mas que tendem a produzir efeitos convergentes: por um lado, é manifesto o enfraquecimento institucional da Comissão Europeia (onde Portugal encontrou, durante o consulado Delors, fortes aliados); a queda da Comissão Santer e a parlamentarização da Comissão Prodi vieram, sucessivamente, prejudicar essa mais-valia portuguesa; por outro lado, o reforço dos poderes intergovernamentais na dinâmica da integração é acompanhado por uma deriva política e estratégica desses mesmos poderes intergovernamentais: a “era pós-Nice” é marcada por um forte traço errático do sistema institucional europeu, onde os “grandes países” reforçam a liderança face ao próximo alargamento, a caminho da “reconstitucionalização” prevista para 2004. Estes dois índices, estas duas tendências, colocam Portugal numa situação mais difícil, hoje, na UE, do que a que o País tinha no início da década de 90 ou nos primeiros anos da adesão.

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A estas dificuldades junta-se a perda progressiva de posições, por Portugal, nas estruturas intermédias das instituições europeias — com a saída de funções de Amílcar Teias em Janeiro de 2001, por exemplo, Portugal perdeu o seu último director-geral na UE. Ora, existe a percepção de que a participação efectiva nas estruturas intermédias condiciona favoravelmente o decision shaping que interessa a cada um dos Estados membros.

Ao mesmo tempo, a actual globalização da vida política e económica — que também é descritível em termos de conjunto de fenómenos de integração regional — não diminui necessariamente a importância da política externa de cada Estado: diminui, sim, dado o peso da multilateralidade, o das bilateralidades. Ou seja, os lugares e o modo onde e como são exercidas as políticas externas de cada Estado estão a mudar, porque uma das consequências políticas da globalização é a de que as bilateralidades são mais sistematicamente filtradas por novos patamares multilaterais de decisão. As políticas externas nacionais estão a mudar qualitativamente, porque o jogo dos interesses negociados no quadro multilateral e supranacional é cada vez mais configurador dos sistemas de tomadas de decisão.

 

Portugal, “ponte” intercontinental

A política externa de um País depende da sua política interna, tendo naturalmente em conta a sua dimensão e a natureza da afirmação dos seus interesses na rede de poderes internacionais de que ele é parte. Em todos os casos coexistem contraditoriamente, na definição de uma política externa — e até na afirmação de uma existência nacional no mundo — a capacidade para exercer influência de modo pró-activo no quadro multilateral, e o conjunto de pressões exógenas que o quadro multilateral exerce sobre essa capacidade, e que é, por vezes, muito condicionante e coercivo.

A tentativa de Portugal se manter politicamente na “linha da frente” da integração europeia, com todas as consequências daí decorrentes — tentativa estratégica, mas que pode gerar efeitos modestos na definição da sua importância no quadro geral da UE, dado o peso e a dimensão do País —, a muito discutida possibilidade de Portugal poder pontualmente constituir “ponte” entre a UE e parte do continente africano, ou entre a UE e o Brasil, são porventura, a par da projecção da língua portuguesa no mundo, as áreas de acção que melhor exprimem a possibilidade de afirmação de existência nacional no novo quadro multilateral. Fora deste quadro, discute-se se outras iniciativas de Portugal se traduzirão, ou não, em meras dispersões de energia, sem outro resultado senão o de obter formas de presença nominais e simbólicas.

Um exemplo forte da importância desta discussão, no caso português, é o modo como a afirmação de interesses nacionais, envolvendo a necessária deslocalização de empresas portuguesas, se está, ou não, a desenvolver no Centro e Leste europeus — territórios que determinaram, pelo seu irreversível desejo de integração, a inflexão de toda a estratégia europeia, tornando-se mais urgente pensar o alargamento da UE para Leste do que a reforma da arquitectura política da UE. É patente, entre os decisores portugueses, a discussão sobre se vale, ou não, a pena investir na afirmação portuguesa nesses novos territórios.

Para uns, Portugal está tão longe desses novos territórios europeus, do ponto de vista geográfico, linguístico, cultural, económico e político – quer dizer, eles pertencem tão claramente a outras áreas de influência – que constituem uma nova quimera onde o País se arrisca a dispersar inutilmente energias. Para outros, a inexistência de acção externa do Estado português, e dos interesses empresariais que lhe estão associados, nesses novos territórios, são mais uma “oportunidade perdida”. Os primeiros são acusados pelos segundos de não conseguirem ultrapassar os arquétipos históricos da política externa portuguesa, representando, assim, a inércia do passado. Os segundos são acusados pelos primeiros de sobrevalorizarem de modo aventureiro orientações voluntarísticas do posicionamento de Portugal no novo contexto da globalização e da multilateralidade.

 

As novas exigências da diplomacia

Outra questão relativa à acção externa do Estado português diz respeito à própria percepção contemporânea do que é essa acção e de quem a executa: esboça-se uma tendência para considerar que o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o seu aparelho diplomático deveriam, mais sistematicamente, funcionar como “executivos” da penetração dos interesses económicos, culturais e políticos do Estado no mundo em globalização. Por exemplo, na sua primeira legislatura, o Governo socialista definiu com clareza que o Brasil é um mercado estratégico para a internacionalização das empresas portuguesas (o que não fez em relação ao Centro e Leste europeus) — e essa orientação política gerou efeitos apreciáveis.

Este exemplo volta a sugerir a abordagem, num novo contexto, dos interesses comuns luso-espanhóis: Portugal não dispõe de meios para pensar globalmente a sua acção externa na América Latina hispanófona, como a Espanha não dispõe de meios para pensar sozinha a sua relação com o Brasil lusófono. Uma parceria entre os países ibéricos nesta matéria poderia permitir-lhes pensar em conjunto a sua acção externa na América Latina hispanófona e lusófona. Tal parceria está, porém, longe de se esboçar.

A acção externa dos Estados é hoje, cada vez mais assumidamente, o resultado da confluência entre a acção diplomática e a acção económica e cultural – e essa parece ser uma das grandes dificuldades da “política externa” portuguesa, guardiã do velho cânone diplomático da “defesa dos interesses permanentes do Estado”: a dificuldade de integrar sinergicamente, num mesmo aparelho activo e multifuncional, estas três linhas de acção que marcam as políticas externas da era da multilateralidade e da globalização.

 

Informação complementar

Portugal, “one issue state”

A afirmação do peso específico de Portugal na nova multilateralidade pode, porém, traduzir-se na aparição de Portugal como one issue state — país que só levanta um problema de cada vez à comunidade internacional — como se observou no caso timorense. A campanha pela autodeterminação de Timor-Leste e sua libertação da ocupação indonésia revelou, precisamente, a forma como um médio-pequeno país da UE pode afirmar-se de modo pró-activo no novo contexto multilateral. Mas tenha-se em conta que se tratou e trata de uma campanha que, por um lado, aproveita a “nova” preocupação internacional com os direitos humanos, o direito de intervenção por razões humanitárias e a relevância dos valores éticos na multilateralidade, e por outro é uma área de intervenção histórica e tradicional, porque se refere à responsabilidade das antigas potências coloniais no destino actual dos seus antigos territórios.

Portugal esteve duravelmente em condições de desempenhar o mesmo papel — o de one issue state — face à tragédia angolana, e não o fez. O facto de, para meio milhão de portugueses, Angola ser uma componente da sua identidade nacional, e de as políticas partidárias portuguesas em relação ao Estado angolano serem excessivamente contraditórias, transforma a questão angolana, em Portugal, numa questão de política interna, como sucede com a questão argelina em França.

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