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Rendimento Mínimo Garantido: um rendimento que incomoda?

Teresa de Sá *

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A Recomendação da Comissão Europeia de 1996 defende a criação de um rendimento mínimo garantido (RMG), que garanta o direito fundamental dos indivíduos a recursos que lhes permitam viver em conformidade com a dignidade humana. O RMG surge num contexto de crise do emprego e do próprio “Estado-Providência”, devendo cada país da União Europeia assegurar aos seus cidadãos um “rendimento mínimo”, para além dos sistemas de protecção social existentes, que consiste numa alocação diferencial, destinada a garantir que o rendimento dos mais pobres não diminua para além de um determinado limiar.

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A Recomendação da CE de 1996, apontando para a instauração de um rendimento mínimo garantido (RMG), surge num contexto europeu de crise social e económica, no quadro da “crise do Estado-Providência”(1), num momento marcado pela crise do trabalho, ou melhor pela crise do trabalho-emprego no quadro daquilo a que Castel chama a sociedade salarial com tudo o que esta comporta nas vertentes da protecção e segurança social.

Podemos fazer remontar a ideia da garantia de um mínimo de capacidade económica ao século XVIII e à proposta apresentada por Thomas Paine de assegurar, mediante a tributação da grande propriedade fundiária, a todos os cidadãos um mínimo que lhes permitisse fugir à indigência e exercer efectivamente os direitos que a Revolução Francesa declarava universais.

O texto da Recomendação defende, de facto, a necessidade de um “dispositivo global e coerente de luta contra a exclusão social”, assegurando “o direito fundamental dos indivíduos a recursos e prestações suficientes para viver em conformidade com a dignidade humana” – o que implica que cada país da Comunidade garanta, para além dos sistemas de protecção social já existentes, um “rendimento mínimo” a cada um dos seus cidadãos. De resto, certos dispositivos de natureza afim existem desde há algumas décadas em certos países europeus (2).

Embora, para além do RMG, existam outras propostas frente à “nova questão social” – como o imposto negativo e a alocação universal ou rendimento de cidadania – há na lógica do RMG certos elementos que inovam em matéria de política social.

Segundo Robert Castel, o RM apresenta duas características que o tornam diferente das políticas sociais anteriormente praticadas:

• pela primeira vez na história da protecção social, deixa de se fazer a distinção entre as populações aptas para o trabalho e as que não podem trabalhar;

• o direito aos “meios convenientes de existência” não corresponde a um simples direito à assistência, mas também a um direito de “inserção”. Como o próprio Robert Castel argumenta, esta transformação da assistência social implica a tomada de consciência de um outro perfil de “indivíduos sem suportes”, perfil onde cada um de nós, a pouco e pouco, vai tomando consciência de poder vir a reconhecer-se.

Segundo Isabel Guerra, o RM implica a responsabilização da sociedade civil.

A pobreza releva agora da responsabilidade colectiva, ao mesmo tempo que tem uma dimensão local. Vemos surgir um novo modelo de gestão do social que passa por uma gestão territorial de populações em risco; pelo desenvolvimento da coordenação de acções entre vários tipos de organismos públicos, entidades privadas, escolas, associações, etc (3). Isabel Guerra (1997) afirma que “está, talvez, aqui uma das maiores originalidades e virtualidades do rendimento mínimo, a emergência daquilo que denominamos novas formas de regulação social, isto é, a emergência de uma responsabilização colectiva face aos fenómenos de exclusão, que não podem apenas ser da responsabilidade da Segurança Social”. No entanto, Isabel Guerra chama a atenção também para o grande paradoxo do RM, que é o de tentar resolver a nível local problemas que existem a nível global, como a crise do trabalho na sociedade moderna. É um pouco na mesma linha que Robert Castel também alerta, entre outros aspectos, para os riscos de, a coberto da “individualização” ou “personalização” que tem acompanhado as novas políticas, vermos relegitimada a velha dicotomia entre os “bons” e os “maus” pobres e, com ela, uma inflexão cada vez mais disciplinar da “segurança social”.

 

O RMG em Portugal

A lei do RMG de 29 de Junho de 1996 entrou em vigor em 1 de Julho de 1997. Optou-se por implementar a medida numa fase experimental através de projectos-piloto que se iniciaram em 1 de Julho de 1996. Esta fase foi acompanhada por um dispositivo de avaliação que se desenvolveu a longo de 1997, no âmbito de um projecto do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, centro associado ao Instituto de Ciências do Trabalho e da Empresa.

Em 28 de Setembro de 1996 realizou-se em Lisboa, um seminário europeu sobre o RM, organizado pela União das Mutualidades Portuguesas, com o apoio conjunto da Comissão Europeia e do Ministério da Solidariedade e Segurança Social, cujas conclusões (4) apresentam já alguns problemas e dificuldades da implementação da medida nos outros países.

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A lei do RMG portuguesa propõe uma definição ampla de “exclusão social” – o seu objectivo não é só combater a dimensão económica da exclusão, mas também as dimensões política e social.

O beneficiário do RMG tem direito a uma prestação do regime não contributivo da Segurança Social, que é fixada pelo valor da pensão social. Para tal, tem de estar incluído nos critérios gerais de acesso e aceitar cumprir um contrato de inserção social negociado com os gestores locais do RMG.

 

Breve caracterização da população beneficiária e dos programas de inserção

Tentemos proceder a uma breve caracterização da população beneficiária do RMG, bem como da visada pelos programas de inserção (5). Tal como nos anos anteriores, a população continua a ser marcadamente feminina (69%) e jovem (a população com mais de 65 anos de idade corresponde apenas a 9,9%). Em relação aos beneficiários não nacionais, é a população dos PALOP que ocupa o primeiro lugar (6). Esta população provém maioritariamente de Angola (34,9%) e Cabo Verde (33,8%). Em relação à caracterização da estrutura familiar verifica-se, à semelhança dos anos anteriores, que o tipo de família beneficiária do RMG mais frequente é a família nuclear com filhos (35%).

Em relação aos programas de inserção que correspondem ao aspecto mais inovador do RMG, no ano 2000 contabilizaram-se 210.176 acções de inserção dos beneficiários “que dizem respeito de forma maioritária às áreas de acção social (32%) e da saúde (23%), seguidas de acções de inserção no âmbito da educação (16%), do emprego (15%) e da habitação (11%). A área de inserção que assume o peso menos significativo é a da formação profissional, representando apenas 3% do total das acções de inserção. Esta distribuição pelas áreas de inserção reproduz, aliás, as tendências verificadas no ano anterior” – (Relatório anual, Dezembro 2000).

Em relação aos parceiros das Comissões Locais de Acompanhamento a nível nacional e mantendo a tendência registada nos anos anteriores, um destaque especial deve ser dado à participação das Juntas de Freguesia que representam 39,4% do total de parceiros não obrigatórios.

 

Portugal e a Europa: as comparações possíveis

Não nos sendo possível analisar aqui a dificuldade de comparar os dados relativos ao RM dos vários países europeus, postas em evidência por vários autores como, por exemplo, Serge Paugan, recorreremos aqui ao livro de Pierre Guibentif e Denis Bouget, “As políticas do RM na UE”, que apresenta um excelente trabalho comparativo das leis existentes, bem como uma análise dos conceitos que estão presentes em toda esta problemática.

Os autores vão partir de um denominador comum que acompanha todas as legislações e que corresponde à ideia de que o beneficiário do rendimento mínimo sofreu uma situação anómala que não deveria ter ocorrido, e é essa situação, que interrompe um percurso “normal” de vida, que explica a necessidade desse rendimento. Mas, por outro lado, os autores distinguem duas lógicas normativas diferentes: um grupo de países privilegia o emprego e o outro a “exclusão social”. São mais numerosas as legislações do primeiro tipo: alemã, espanhola (em algumas regiões), irlandesa, luxemburguesa, neerlandesa, finlandesa, sueca, britânica. Nestas legislações a disponibilidade em aceitar um emprego é uma das condições necessárias para a obtenção das prestações.

As legislações do segundo tipo, baseadas numa concepção de luta contra a exclusão (belga, espanhola, francesa, portuguesa (7), diferem das primeiras em dois pontos principais:

• a tónica colocada na procura de emprego é substituída por uma alternativa entre medidas de reinserção incidindo noutros aspectos, nomeadamente a saúde;

• as medidas a tomar devem ser postas em prática na base de um acordo entre o interessado e a colectividade.

Para além das diferentes legislações, interessa-nos também comparar as populações beneficiárias do RM, voltando a chamar a atenção para a dificuldade de retirar conclusões, dadas as especificidades de cada país: a data em que a lei começou a ser adoptada, a situação conjuntural que cada país está a atravessar, a relação desta lei no âmbito da política social, os grupos etários que a lei compreende, etc. Posto isto, apresentamos o quadro de alguns dados estatísticos referentes aos anos 1996 a 2000, extraídos de um artigo de Emília Pereira, “Síntese comparativa de alguns dados estatísticos do RMG, nos países da UE”.

 

Do RMG ao RSI

Não podemos deixar de mencionar, por fim, a nova proposta de lei nº 6/IX aprovada em Conselho de Ministros em 23 de Maio de 2002, que revoga o RMG previsto na lei nº 19-A/96 de 29 de Junho, e cria o Rendimento Social de Inserção. Mas teremos de nos limitar a indicar algumas alterações mais significativas: a idade mínima para se poder beneficiar do RMG passa de 18 para 25 anos (em Portugal 51,1% da população beneficiária pertence a esse grupo); prevê-se uma discriminação positiva em relação aos indivíduos com mais de 65 anos (em Portugal 6% da população beneficiária pertence a esse grupo); prevê-se também uma discriminação positiva aos cidadãos portadores de deficiência; o novo quadro tende, por fim, a privilegiar as famílias mais numerosas.

Na parte correspondente à justificação das alterações, há na nova proposta de lei duas ideias centrais: a crítica aos resultados obtidos pelo RMG em matéria de inserção social e uma grande preocupação com a fiscalização e o “rigor” (8) na aplicação da lei. Mas só o tempo poderá dizer a que resultados conduzirão as diferenças na letra da lei que o novo diploma tenta acentuar.

 

Conclusão provisória

Esta breve análise remete-nos para a discussão de duas questões. Uma passa pela definição dos conceitos – saber o que significam hoje as noções de pobreza, exclusão, inserção – e por uma discussão que é simultaneamente de carácter político e científico. A segunda é a do círculo vicioso de certas versões do “controle social”: o “pobre” só pode e deve ser ajudado se aceitar a moral de uma economia política que justamente o condena à pobreza e às consequentes limitações à sua dignidade de cidadão.

E aqui é toda a questão da cidadania activa que seria preciso levantar.

__________
1 Para a análise dos três modelos diferentes do Estado-Providência, ver Gosta Esping-Andersen, Les trois mondes de l’État-providence, Paris, PUF, 1999.
2 “Na Dinamarca, na Alemanha e nos Países Baixos, foram introduzidos já em 1961, 1962 e 1963 respectivamente. No Reino Unido, um sistema introduzido em 1948 adquire características de um rendimento mínimo desde os anos 60. A Bélgica cria o Minimex em 1974. Mais recentemente, a evolução acelera-se com a criação de rendimentos mínimos no Luxemburgo (1986), em França (1988) e nas Comunidades Autónomas da Espanha nos últimos anos 80.” (Guibentif e Bouget, 1997).
3 Esta dinâmica local implicou a constituição das Comissões Locais de Acompanhamento: as CLAs, cujo objectivo foi o de promover o trabalho em parceria, com o envolvimento do Estado, dos parceiros sociais, dos órgãos do poder local, da sociedade civil. 
4 Cf. Pierre Guibentif e Denis Bouget, op. cit.
5 Os dados referem-se ao ano 2000 e foram retirados do Relatório anual, do IDS.
6 Em 1998 os residentes legalizados provenientes dos PALOP correspondem a 0,8% da população portuguesa e os beneficiários do RMG oriundos dos PALOP correspondem a 8,6% do total da população beneficiária).
7 O autores referem-se à lei nº19-A/96, à lei do Rendimento Mínimo Garantido.
8 Essa fiscalização será feita com o cruzamento de ficheiros, agravando as penalidades, sancionando as recusas especialmente quanto a ofertas de trabalho, terminando com o fim da renovação automática das prestações, dissuadindo a economia paralela.

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* Teresa de Sá

Licenciada em Sociologia pelo ISCTE. Mestre em Planeamento Regional e Urbano pela Universidade Técnica de Lisboa.

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Bibliografia

Capucha, Luis Miguel (coord.) (1998) – Rendimento Mínimo Garantido: Avaliação da Fase Experimental, Lisboa, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia.

Castel, Robert (1995) – Les Métamorphoses de la question sociale, Paris, Gallimard.

Guerra, Isabel (1997) – “The dark side of the moon do rendimento mínimo garantido”, Lisboa, Sociologia – Problemas e Práticas, nº25 pp.157-164. 

Guibentif, Pierre e Bouget, Denis (1997) – As políticas de Rendimento Mínimo na União Europeia, Lisboa, União das Mutualidades Portuguesas.

Instituto para o Desenvolvimento Social (2000) – Execução da Medida e Caracterização dos Beneficiários, Lisboa, Relatório anual, Dezembro 2000.

La revue du M.A.U.S.S. (1996) – Vers un revenue minimum inconditionnel?, nº 7, 1º semestre, Paris, La Découverte.

Pereira, Emília Maria (2000) – “Síntese comparativa de alguns dados estatísticos do RMG, nos países da União Europeia”, Lisboa, Pretextos, nº 0, Junho 2000.

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