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O paradoxo da perspectiva grociana é justamente que ela não se sustenta sem uma ultima ratio. Para Hugo Grotius, no século XVII, bastavam a boa-fé e um entendimento mútuo sobre os princípios básicos da Lei Natural. Só que hoje, como ontem, um mundo de regras continua dependente da capacidade – e mobilização de meios materiais adequados – de utilizar a força contra os eventuais delinquentes. Um sistema judicial é fundamental para uma sociedade que pretenda ser governada por regras, mas não há lei sem polícia. Na primeira década do pós-Guerra Fria, os Estados Unidos, última super-potência, assumiram as duas funções: principal promotor de uma vida internacional orientada por regras e, ao mesmo tempo, único poder político com disposição e recursos para intervir no mundo inteiro – unilateralmente ou liderando coligações – usando meios diplomáticos ou militares. Daí o dilema dos norte-americanos, clássico da ciência política: num mundo que não possui uma autoridade política universal à vista, como assumir o papel de força propulsora do multilateralismo – uma comunidade internacional baseada em valores e regras comuns – e, ao mesmo tempo, manter uma opção unilateralista para poder agir independentemente destas mesmas regras? Esta liberdade de acção tem certamente a vantagem de facilitar actuações em causa própria, mas quase sempre, representa também a única garantia, em última instância, para defender o multilateralismo orientado por um sistema de regras. “Soberano é aquele que decide da excepção”: a famosa e lapidar frase de Carl Schmitt sintetiza perfeitamente o status do poder que determina quais as circunstâncias em que as regras deixam de ser aplicáveis e a força se torna necessária.
Amplificação de actores estratégicos Na verdade, o ambiente grociano dos anos 1990 só pôde prosperar graças ao avassalador poderio político, económico, cultural e militar dos Estados Unidos. A legitimidade deste extraordinário poder – pelo menos, a sua aceitação renitente por parte do resto do mundo – estava vinculada ao compromisso da administração Clinton com a construção de regras e com as instituições multilaterais. Mas também existia um consenso quase geral de que só Washington tinha condições de assegurar certos “bens públicos” fundamentais, sobretudo no campo da segurança, encarando os desafios mais desestabilizadores (Iraque-Kuwait, Balcãs, estreito da Formosa, Médio Oriente, Coreia...). A credibilidade dos Estados Unidos vinha da percepção, também generalizada, de que a sociedade norte-americana era invulnerável a qualquer ameaça grave, apesar dos discursos alarmistas sobre os “Estados-delinquentes” (rogue states) e suas futuras capacidades de ameaças assimétricas por meio de vectores balísticos. Depois da intervenção pós-11 de Setembro no Afeganistão, não há nenhuma dúvida de que os EUA continuam a ser o poderoso chefe do planeta, mas deixaram de ser invulneráveis. Outros não podem, ainda, decidir da excepção, mas já têm condições de impor de maneira brutal novos desafios estratégicos, não só aos americanos, mas à comunidade internacional no seu conjunto. Não há dúvida de que na era da globalização, o trabalho de definir as regras do jogo continuará a ser um exercício cooperativo. Porém, no novo ambiente hobbesiano, esta cooperação, que supõe uma lógica horizontal de enfrentamento regulado de públicos e privados, ficou muito mais dependente da lógica hierarquizada e vertical da autoridade e do poder. Portanto, será maior a tolerância para as acções que desrespeitem a letra e o espírito das regras internacionais em nome da segurança e das políticas de poder. O funcionamento das democracias e o respeito pelos direitos humanos terão de se adaptar às necessidades da segurança interna e da edificação de coligações para a guerra antiterrorista. Os Estados Unidos e seus aliados europeus já aceitaram, na aliança contra a Al-Qaeda e os taliban, parceiros que não são propriamente modelos de governação democrática. Da mesma forma, a controvérsia sobre o tratamento jurídico dado aos suspeitos de terrorismo prisioneiros na base militar de Guantanamo, as novas legislações antiterroristas discriminatórias de iniciativa da administração Bush e o projecto da Casa Branca de criação de um novo ministério de segurança interna com poderes inquietantes, são sinais dos novos tempos. O que está em jogo, na verdade, é a manutenção de um consenso mais amplo possível para definir o “fora-de-lei” (rule-breaker), pois trata-se de um elemento crucial para uma vida internacional baseada em regras e até para a legitimidade e credibilidade das grandes negociações comerciais e dos processos de integração regional. A polarização crescente imposta pela guerra ao terrorismo leva a distinguir o bom cidadão mundial do delinquente em termos de poder puro, a partir de conveniências políticas, em vez de regras e de procedimentos. Aliás, no quadro das Nações Unidas, ainda não foi possível encontrar uma definição jurídica consensual do que se entende por “terrorismo”. Portanto, a consistência e a previsibilidade estão ameçadas, enquanto os posicionamentos políticos estratégicos ganharam um peso cada vez maior no âmbito de todas as negociações “civis”, (comércio, meio ambiente, saúde, trabalho...). A velha Realpolitik ganhou uma nova roupagem. Claro que o processo internacional que visa estabelecer regras de forma cooperativa não vai ser sacrificado no altar do espírito da guerra. O paradoxo é que a globalização até sai reforçada pela mobilização mundial contra o terror e a dimensão planetária da ameaça. Mas é certo, também, que as grandes negociações multilaterais, económicas ou financeiras, parecem mais um side show, que vem complementar a prioridade máxima de estabelecer uma nova ordem política mundial mais estável. Até os processos regionais de integração essencialmente económicos, como o Mercosul, a União Europeia ou a ASEAN, serão forçados a considerar de maneira mais séria as questões de segurança, mesmo que nenhum deles tenha vocação para se transformar em potência militar global. Com efeito, o futuro e a credibilidade destes processos vão depender da capacidade de cada um redefinir o papel que está disposto a assumir na actual hierarquia de poder internacional e na futura arquitectura do poder mundial.
“Defining war on our terms” A campanha militar do Pentágono no Afeganistão, em conjunto com a administração, por parte americana, de uma imensa aliança antiterrorista ad hoc e particularmente heterogénea, já está a mostrar o caminho da reconstrução do sistema de segurança mundial. E os ventos sopram claramente na direcção de um multilateralismo hierarquizado, definido e organizado pelos Estados Unidos para combater um novo inimigo planetário: o “terrorismo global” e os governos que patrocinam terroristas ou que ameaçam a América e o mundo com programas de armas de destruição maciça – o agora famoso “eixo do mal”. Aliás, o presidente americano foi perfeitamente explícito quando declarou que o objectivo dos Estados Unidos era: “(...) a manutenção da paz pela definição da guerra nos nossos termos. Isto é um grande desígnio e uma grande oportunidade, consentida a poucas nações na história”. Ditar os termos das guerras futuras é equivalente a tentar restaurar a potência americana na sua função de ultima ratio, exclusiva e única, da vida política internacional, em vez de favorecer formas de autoridade colectiva. Isto não significa um retorno nostálgico ao unilateralismo, mas simplesmente uma nova definição da liderança global americana. Esta liderança será bem diferente do projecto da era Clinton. A administração democrata dos anos 1990 considerava os Estados Unidos o mais poderoso e influente honest broker do mundo, o eixo central – político, económico e jurídico – de um planeta em vias de integração acelerada, uma espécie de software centralizado de um sistema de redes, representando interesses governamentais ou não, cuja função era promover e coordenar o “alargamento da democracia de mercado” (enlargement of market democracy), e manter-se como a força militar consensual de último recurso. A globalização feliz, cooperativa, compatível com a liderança, a prática e os valores americanos. Para a administração republicana deste começo de milénio, a visão é outra. George W. Bush, sem dúvida, continua a considerar que na era pós-11 de Setembro a liderança dos Estados Unidos é indispensável para promover a democracia de mercado no mundo inteiro, mas hoje a tarefa principal é a de organizar, sob comando americano, a defesa da liberdade – “salvar a civilização” – para enfrentar o grande desafio de segurança do nosso tempo: o terrorismo acoplado às “ameaças assimétricas”, esta nova “intersecção” entre terror e armas de destruição maciça. Mas como lutar contra este inimigo global multifacetado? A resposta passa pela implementação de uma nova política de segurança americana e por um novo e eficiente sistema de segurança mundial liderado pelos Estados Unidos. Por um lado, trata-se de aumentar e consolidar a própria superioridade militar – “revolucionar o campo de batalha do futuro (...), transformando as nossas forças armadas por meio de doutrina, estratégia e armamentos inovadores” – e desenvolver uma defesa do território nacional (Homeland Defense) que tenha credibilidade. Por outro, a ideia é criar novos instrumentos de acção colectiva, tanto no quadro das Nações Unidas, como no seio das principais alianças bilaterais e multilaterais (essencialmente, a NATO e a OEA). A campanha anti-taliban foi uma demonstração espectacular da eficiência em associar armamentos e sistemas de comunicação e informação high-tech americanos, superioridade aérea esmagadora, pequenas unidades de forças especiais e aliados locais realizando o trabalho de infantaria. Neste contexto, as nações ou Estados são considerados entidades estratégicas cada vez menos relevantes. O terrorismo não tem fronteiras, portanto os limites geográficos são vistos cada vez mais como barreiras artificiais. A lógica da guerra contra o terror – “connosco ou contra nós” – leva a apreender qualquer Estado soberano como um campo de forças contraditórias. Um governo, amigo ou inimigo, pode ser considerado não tanto como o representante de uma nação particular, mas como o instrumento de uma facção. A eventual intervenção militar será concebida de maneira a combater a facção “bárbara” com a ajuda da facção “civilizada”: o grupo “do bem” (a Aliança do Norte ou o governo filipino) contra a súcia “do mal” (Al-Qaeda e taliban, os rebeldes Abu-Sayyaf na ilha Basilan), sem falar na Somália, Iémen, Indonésia, Colômbia... e o “ eixo do mal ” propriamente dito (Iraque, Irão, Coreia do Norte). “A guerra contra o terror não será ganha na defensiva. Teremos de levar a batalha para o campo do inimigo, (...) defrontar as piores ameaças antes que elas apareçam (...) e estar preparados para acções preventivas quando necessário (...). Temos de descobrir células do terror em mais de 60 países e enfrentar os regimes que (as) apoiam...”, avisou George W. Bush. Para as autoridades em Washington, a verdade é que uma aliança antiterrorista precisa não somente do empenhamento dos Estados aliados ou amigos, mas também da participação de grupos ou facções aliadas ou amigas. Isto significa que alianças formais entre Estados, juridicamente vinculantes, passam a ser apenas um dos instrumentos políticos da acção global contra o terrorismo.
O multilateralismo hierarquizado Será que estamos a assistir à desvalorização do multilateralismo clássico a favor de redes de alianças híbridas e precárias associando governos e actores não-governamentais em torno da superpotência? Se um superlíder decide do papel e das tarefas de cada um dos seus parceiros – estatais e não-estatais – para cada intervenção militar particular, e distribui as responsabilidades do trabalho de reconstrução pós-conflito, será que os Estados aliados não estão a ser reduzidos a simples ferramentas disponíveis segundo as necessidades estratégicas americanas, meros “satélites”, como contestou o ministro alemão das Relações Exteriores, Joschka Fischer, no início de 2002? Esta nova visão estratégica, que promove de facto um multilateralismo
hierarquizado, está a ter um forte impacte no sistema de alianças plurilaterais
nas quais os Estados Unidos se encontram na posição de liderança (particularmente
a NATO e a OEA-TIAR). Uma coligação ad hoc foi suficiente para a campanha
no Afeganistão, mas pode não ser o caso no futuro. Seja o que for, os
Estados Unidos precisam destas velhas e seguras organizações. Primeiro,
porque elas constituem o principal vector político – juntamente com a
ONU – para a legitimação, sob a forma de um compromisso universal, da
prioridade da guerra ao terrorismo e para a implementação de uma política
global de não-proliferação. Segundo, porque Washington nem sempre deseja,
nem tem a capacidade de agir só. Necessita de amigos para “partilhar
a carga” (share the burden) militar e da interoperabilidade de um pool
de forças militares e de inteligência aliadas, organizadas pelos Estados
Unidos e disponíveis para diversas situações de emergência. Enfim, estas
alianças plurilaterais são os principais instrumentos para garantir a
paz nas suas próprias regiões e representam parcerias indispensáveis
para promover e harmonizar medidas colectivas não-militares de combate
ao terrorismo, compatíveis com a nova concepção americana dos valores
e processos para impor a lei internacional: controlos financeiros, problemas
de alfândega e imigração, polícia científica, luta contra o tráfico de
armas, reforma das legislações nacionais, intensificação da cooperação
judicial e policial... Em suma, trata-se de mecanismos internacionais
fundamentais nos quais a liderança dos Estados Unidos pode ter um impacte
imediato e contar com uma forte e tradicional solidariedade aliada baseada
em valores, procedimentos e objectivos comuns.
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