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O que fazer com as terríveis crises financeiras, particularmente nas economias emergentes, que ameaçam tanto a estabilidade do Estado ou região em questão como o funcionamento do sistema financeiro internacional? Segurança económica significa, portanto, organizar uma administração mais eficiente das crises financeiras e dos mecanismos de desenvolvimento, de maneira a prevenir perigosas situações de “ingovernabilidade” e, quando necessário, restabelecer formas de governação mais amistosas.
Internacionalismo vs. “a mão invisível” A Casa Branca republicana não abandonou o clintoniano “alargamento da democracia de mercado”, mas introduziu neste conceito uma nuance subtil. Na realidade, esta mudança de vocabulário anuncia um novo voluntarismo político na gestão da economia global. O objectivo é enfatizar não só a “mão invisível” dos mercados, mas também a completa responsabilidade dos governos e operadores privados, que deverão assumir plenamente as consequências das suas políticas ou estratégias de investimento. As receitas são: o livre comércio como a máquina mais eficaz para integrar as regiões mais pobres no mercado global; a mobilização prioritária de recursos privados – internos e internacionais – para os investimentos produtivos; o aumento da proporção das doações a fundo perdido relativamente aos empréstimos para financiar o sector social e as necessidades básicas das populações nos países mais pobres, porém com mecanismos de controlo da utilização efectiva dos créditos (favorecendo a participação directa das ONGs que poderiam contornar governos corruptos ou então colocando condições de “acção prévia” às autoridades nacionais dos países beneficiados, baseadas numa soma de critérios estabelecidos de boa governação); e por fim, a criação de um regime internacional de falências, de maneira a agilizar a resolução dos casos de quebra ou moratória de Estados soberanos. Esta nova filosofia foi claramente resumida pelo Secretário do Tesouro americano: “(...) em suma, trata-se de demonstrar maior disposição em apoiar prioritariamente os países que fazem o máximo para se ajudarem a si mesmos e recusar financiamento para os casos em que um país não está preparado para dar os passos necessários para implementar reformas credíveis e ingressar na via do crescimento sustentável”. A ideia é pressionar autoridades locais reticentes para que aceitem “as reformas domésticas necessárias para atrair investimentos, expandir as oportunidades de comércio, construir capacidade institucional, etc.” Paradoxalmente, persiste o perigo de que esta forte prioridade conferida aos mecanismos do mercado em relação ao intervencionismo estatal venha reforçar as decisões puramente políticas. Intervenções económicas descaradas e pacotes de socorro financeiro, abertamente justificados por considerações políticas e geoestratégicas, poderão prosperar tranquilamente num ambiente em que a disciplina de ferro dos mercados poderá garantir a gestão “normal” (isto é, não-ameaçadora) das emergências económicas internacionais. Para os amigos tudo, para os inimigos nada, para os indiferentes a lei.
O “novo” FMI A mesma lógica parece impor-se na administração das turbulências financeiras nos mercados emergentes. O derretimento da economia argentina, tratado com menosprezo pelas autoridades do Primeiro Mundo, abriu o caminho para repensar toda a missão do Fundo Monetário Internacional (FMI), com o objectivo de neutralizar os efeitos desestabilizadores globais das crises de pagamento. A administração Bush anda a testar um conceito óbvio, porém original, no mundo das finanças internacionais: da mesma forma que se espera dos países devedores que paguem as suas dívidas, os credores – sobretudo do sector privado – também deveriam assumir as suas responsabilidades pelos riscos que tomam. Resumindo, a ideia é estabelecer um tipo de lei internacional de falências, inspirada no Chapter 11 norte-americano, no qual os Estados soberanos serão tratados como uma empresa qualquer e os credores do sector privado deverão arcar com os custos da solução da crise – caminho que vem sendo promovido com alarido pela Vice-Directora do FMI, Anne Krueger. Os governos falidos assumiriam a total responsabilidade pelos ajustes necessários, sem condicionalidades nem ajuda financeira do FMI, e os grandes credores do sector privado teriam de negociar e aceitar perdas proporcionais aos riscos incorridos sem esperar pelo socorro do Fundo. “(...) Em vez de servir de bombeiro para as crises, o FMI deveria ser como um jardineiro cuidando das sementes que farão crescer o sector privado”. Claro, não há dúvida de que esta nova cruzada contra o moral hazard e a favor de comportamentos financeiros mais responsáveis e equitativos tem as suas vantagens. Porém, como demonstram as experiências recentes do Paquistão e da Turquia, em caso de necessidade sempre haverá operações de socorro justificadas por considerações político-estratégicas. Animais mais iguais do que os outros é uma constante da história humana e se não houver um mínimo de regras universais consensuais com certas garantias de que serão implementadas, as evidentes diferenças de tratamento poderão justamente provocar as distorções e tensões nos mercados que se quer evitar.
A agenda comercial voluntarista Na arena estratégica das negociações comerciais, a administração Bush também tenta reforçar o papel central dos Estados Unidos na promoção de um livre comércio de acordo com os seus interesses económicos e de segurança. É um facto que poucos meses depois do 11 de Setembro, e apesar das reticências proteccionistas do Congresso, as autoridades americanas relançaram uma agenda comercial voluntarista. Segundo o representante para o comércio americano (USTR), Robert Zoellick, “o presidente está a promover uma agenda para a liberalização do comércio abrangendo várias frentes : global, regional e com nações individuais. Esta estratégia cria uma competição para liberalizar, com os Estados Unidos na posição de força impulsora central. Isto realça a liderança americana, reforçando os nossos laços económicos, poder, promoção de ideias novas e influência no mundo inteiro”. Em Washington, as prioridades foram bem definidas. Primeiro, no plano global, vai ser defendida na OMC uma agenda relativamente ambiciosa de liberalização comercial no domínio agrícola, mas também no domínio dos bens manufacturados, serviços e regras. A ideia é enfatizar a participação dos países menos desenvolvidos de modo a mantê-los envolvidos no processo de abertura dos mercados e, paralelamente, constituir a maior frente comum possível em torno das posições americanas. Segundo, no plano bi-regional, a estratégia vai concentrar-se nos dois maiores mercados dos Estados Unidos, a União Europeia (UE) e o hemisfério ocidental. A prioridade relativamente à Europa é a administração fria dos contenciosos, de maneira a evitar danos irreparáveis ao sistema de comércio internacional. Quanto ao hemisfério sul, a conclusão em 2005 do Acordo de Livre Comércio das Américas (ALCA) continua a ser uma das grandes prioridades da administração Bush, confirmada tanto por Robert Zoellick, como pelo secretário de Estado Colin Powell, nas suas primeiras apresentações no ano 2002 perante o Senado americano. O problema da Casa Branca continua a ser o Brasil que, graças ao seu relativo poderio económico e à pequena força colectiva do Mercosul, se apresenta como o negociador mais firme e sofisticado. Portanto, não é por acaso que a táctica definida pelo USTR tem todo o ar de um cerco ao Brasil, mediante negociações de abertura comercial com o resto da América Latina e Caraíbas. Utilizando o Acordo de Livre Comércio Norte-americano (NAFTA) como modelo de uma bem sucedida integração Norte-Sul, o objectivo é convencer os outros governos latino-americanos a acelerar as negociações. “Vamos persistir nos nossos esforços de mostrar publicamente os benefícios do NAFTA e considerar caminhos adicionais para aprofundar a integração nas Américas”, explicou Zoellick. Isto significa o lançamento de negociações com o Mercado Comum Centro-Americano, o aprofundamento do Caribbean Basin Economic Partnership, a assinatura de um acordo de livre comércio com o Chile, a expansão do Andean Trade Preference Act, e um cortejar discreto ao Uruguai e à Argentina de maneira a amaciar o espírito combativo dos negociadores do Mercosul. Uma ALCA reduzida, sem o Brasil, perde parte do seu interesse para os Estados Unidos, mas o Brasil fora desta ALCA reduzida pode perder importantes preferências num mercado que representa 50% das suas exportações. Não há governo brasileiro que possa encarar esta eventualidade e Washington sabe disto. A terceira prioridade, sempre com o objectivo de reforçar a posição americana frente aos principais competidores (UE e Japão) e aos negociadores mais articulados das economias emergentes (Brasil, Índia, Paquistão, Egipto, Malásia, África do Sul...) é tentar lançar várias negociações simultâneas para concretizar rapidamente acordos de livre comércio bilaterais com nações desenvolvidas ou em desenvolvimento em todas as regiões do mundo. Trata-se de uma tentativa de garantir a liderança dos Estados Unidos “construindo coligações de amigos para promover objectivos comerciais em outros contextos”. Depois dos acordos assinados em 2001 com a Jordânia e Singapura, e o acordo comercial com o Vietname, Washington – para além da América Latina – está em conversações com a Austrália e a Nova Zelândia e encetando uma campanha para a negociação de acordos com a África Subsariana com base no Africa Growth and Opportunity Act (AGOA), votado pelo Congresso, em Maio do ano 2000.
“Segurança económica” ou liderança económica? A estratégia da Casa Branca republicana para manter a “ segurança económica ” no mundo depois do 11 de Setembro pode, portanto, ser resumida pela tentativa de vincular as múltiplas iniciativas em matéria de livre comércio à promoção de investimentos do sector privado, doações para reduzir a pobreza e um novo papel para as instituições financeiras internacionais, que pressionarão os governos para que adoptem normas de boa governação e realizem profundas reformas internas. Esta nova visão do processo de desenvolvimento, se for implementada, vai limitar seriamente o espaço de manobra das autoridades dos países pobres e emergentes. Políticos e burocratas terão de enfrentar uma escolha difícil: aceitar que a prioridade máxima do governo seja a administração das finanças públicas de maneira responsável e conservadora, ou então amargar uma total falta de apoio, público ou privado, por parte da comunidade internacional – a Argentina já é um exemplo dos novos tempos. Claro que não há regras sem excepções, mas estas serão decididas ainda mais em Washington, de acordo com as necessidades estratégicas americanas. Obviamente, ninguém é inocente. Considerações político-estratégicas são legítimas e necessárias, não só para os Estados Unidos mas também para toda a comunidade internacional. Novamente a questão é a de quem define a excepção. Hoje, o propósito da administração republicana americana parece ser o de decidir sobre algumas regras e códigos de conduta internacionais que cada um pode aceitar ou recusar livremente... por sua conta e risco.
Informação complementar Intervencionismo económico No campo económico, o velho e já saudoso “consenso de Washington” entrou em agonia, vítima de novas posturas intervencionistas ditadas pelas necessidades de segurança interna e de uma nova economia de guerra. Ensaios de intervencionismo económico, respondendo a cruas exigências políticas, começam a minar a sacrossanta cartilha dos anos 1990, feita de laissez-faire acompanhado de pacotes de ajuda financeira em caso de riscos sistémicos urgentes. Bye, bye Argentina; welcome Pakistan! O Clube de Paris não teve dúvidas em cancelar 30% da dívida externa do Paquistão, enquanto o FMI decidia deixar a Argentina cair na bancarrota. Oscilantes considerações políticas decidem que almas serão salvas, e quais as danadas. O próprio comércio internacional está a sentir o impacte dos novos
tempos, apesar das fortes garantias regulatórias oferecidas pela Organização
Mundial do Comércio (OMC). Será que vão ser utilizadas as preferências
comerciais como um meio para recompensar aliados ou membros de uma coligação,
ou para penalizar adversários ou parceiros hesitantes? E não será também
o caso dos subsídios, ou das medidas indiscriminadas de anti-dumping
e salvaguardas, enrolados na bandeira da “segurança nacional” ou usados
directamente para manter delicados equilíbrios sociais internos e favorecer
interesses sectoriais nesses tempos incertos? As salvaguardas para o
aço ou a Farm Bill, aprovadas pela administração americana em 2002 com
argumentos patrióticos, constituem um bom exemplo desta evolução inquietadora.
Paralelamente, as versões da “Trade Promotion Authority” (TPA) votadas
por cada Casa do Congresso americano, em 2001 e 2002, contêm termos tão
restritivos que os parceiros dos Estados Unidos nas diversas negociações
internacionais estão cada vez mais perplexos quanto às possibilidades
de se chegar a qualquer acordo, regional ou multilateral. Uma das emendas
introduzida na versão do TPA votada pelo Senado põe os pontos nos is:
fica proibido qualquer tipo de preferências comerciais para um Estado
que não colaborar activamente na luta contra o terrorismo.
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