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AQUI! Uma coisa parece certa: alterou-se substancialmente a percepção que os norte-americanos têm de si próprios e do seu papel no mundo. Assumindo-se como única superpotência mundial, repartem o globo em parcelas que não são mais do que os seus comandos territoriais (ver à frente o mapa e o respectivo texto). As novas doutrinas militares mal escondem o carácter messiânico atribuído à universal missão americana e representam um inquietante entendimento do exercício da força na vida internacional. Contrastando fortemente com as anteriores concepções (o último documento de natureza estratégica data de Dezembro de 1999, no final da era Clinton), é agora adoptado, desde 20 de Setembro de 2002, o conceito de guerra preventiva. Partindo da hipótese segundo a qual “a América é hoje ameaçada menos por Estados expansionistas do que por Estados em colapso”, ela sente-se autorizada “a actuar contra novas ameaças antes que elas estejam completamente formadas”. Se necessário, a intervenção dispensará qualquer legitimação pela comunidade internacional: “Os Estados Unidos procurarão sempre assegurar o apoio da comunidade internacional, mas não hesitaremos em agir sozinhos, se for preciso, para exercermos o nosso direito à autodefesa, agindo de modo preventivo contra os terroristas, impedindo-os de atingir o nosso povo e o nosso país”.
A fractura no interior dos Republicanos O aparente consenso em torno desta nova maneira de pensar esconde as bem conhecidas divergências no seio da actual Administração, divergências arbitradas pelo Presidente, com o apoio pragmático da sua conselheira de Segurança, Condoleezza Rice. Todavia, são menos conhecidas as razões dessas clivagens e os fundamentos teóricos que as explicam. Existe uma verdadeira fractura no Partido Republicano a este respeito, dividindo-o em neoconservadores e conservadores tradicionais. Curiosamente, tanto uns como outros fazem uma leitura da realidade contemporânea à luz da experiência do imperialismo britânico durante o século XIX e o princípio do século XX. Seguem desse modo uma tendência bem característica do pensamento conservador em Relações Internacionais: por um lado, a reflexão está exclusivamente centrada no papel dos Estados e nas relações de poder entre eles, ignorando a diversidade complexa das dinâmicas sociais; por outro, o chamado “concerto europeu” do século XIX, assente no “balance of power”, é o protótipo obrigatório para a análise da vida internacional. Os chamados neoconservadores têm um peso provavelmente determinante e são chefiados por um triângulo formado pelo vice-presidente Dick Cheney, pelo secretário da Defesa Donald Rumsfeld e pelo subsecretário da Defesa Paul Wolfowitz. Este último é reputado como o principal inspirador da tendência neoconservadora. O “The Economist” de Londres julga que o termo “falcão” é insuficiente para o caracterizar e designa-o como “velociraptor” (dinossauro astucioso, rápido e que ataca a presa pela pescoço...). Secundado por Richard Perle, influente presidente do Conselho Político da Defesa, a sua concepção assenta na escola imperialista da Inglaterra vitoriana, quando a Grã-Bretanha exercia um poder mundial, com a diferença de que o domínio dos mares pelos britânicos é agora substituído pelo poderio tecnológico norte-americano. A única potência deverá submeter todas as outras, concretamente assegurando na Ásia o equilíbrio entre China e Japão; na Europa o equilíbrio entre ingleses e alemães, isolando a França; no Médio Oriente conciliando interesses turcos, israelitas e sauditas. Seguindo esta linha ideológica, Donald Rumsfeld expôs publicamente a sua doutrina militar em Janeiro de 2002, defendendo que os EUA devem “agir para ter capacidade de dissuasão em quatro teatros de operações importantes”, obtendo meios para “vencer dois agressores simultâneos, tendo ainda a possibilidade de desencadear uma contra-ofensiva de envergadura e de ocupar a capital de um inimigo para aí instalar um novo regime”. A inovação é grande em confronto com as anteriores posições norte-americanas a este respeito, pois até agora previa-se apenas a possibilidade de travar “uma guerra e meia” (conceito introduzido por Nixon, referindo-se a uma guerra de grande dimensão, contra a URSS ou a China, mais uma guerra limitada contra um inimigo menor) ou então “dois conflitos regionais de envergadura” (concepção perfilhada tanto por Bush pai como por Clinton). Rumsfeld multiplica a eventualidade dos conflitos alargando para quatro os “Major Theater Wars”. Assim se justifica o extraordinário aumento do orçamento da defesa. O conceito central é o de alcançar o objectivo do “controlo estratégico”, ou seja, a supremacia indiscutível.
A “doutrina Powell” Pelo seu lado, os conservadores tradicionais (que neste caso fazem figura de moderados) são chefiados por Colin Powell, pelo seu adjunto Dick Armitage e pelo chefe do “Policy Planning Staff” do Departamento de Estado, Richard Haass, que é o principal teórico desta corrente. Haass inspira-se na tese do célebre Paul Kennedy, irlandês, professor em Yale, segundo o qual há uma sobre-exposição da potência americana, donde os EUA deveriam adoptar uma postura comparável à da Inglaterra após a guerra dos boers, quando a Grã-Bretanha assumiu uma posição moderada e moderadora, conciliatória com os interesses dos principais aliados, favorável ao estabelecimento de alianças. Na actualidade, isto significaria também uma abertura às instituições multilaterais, como a ONU, a OMC e a ASEAN, sobretudo com a NATO entendida como assembleia transatlântica integrando a Rússia. Esta posição conservadora tradicional não implica obviamente a rejeição do recurso à força. A “doutrina Powell” admite-o com clareza, embora exija condições bem precisas. Segundo o secretário de Estado, Washington só deverá intervir militarmente quando se reunam duas condições: estar em jogo o interesse vital norte-americano e poder desencadear um potencial militar esmagador. Caso contrário, os EUA devem abster-se de intervir. Para os seus críticos, esta doutrina tem na sua essência uma hostilidade em relação à “guerra limitada”, pois só admite uma intervenção de tal modo intensa que o único desfecho seja o esmagamento do adversário. Eles recordam uma passagem da autobiografia de Powell: “Muitos oficiais da minha geração juraram que, quando viesse o tempo de estarem aos comandos, não se comprometeriam beatificamente com uma guerra conduzida sem convicção, por razões duvidosas que o povo americano seria incapaz de compreender”. Para os mesmos críticos, se esta doutrina fosse seguida, não teria havido intervenção na Bósnia, nem no Kosovo, nem sequer – quem sabe? – no Koweit, já que era duvidoso que estivessem em jogo interesses vitais norte-americanos. Uma interpretação estrita dos princípios enunciados por Colin Powell significaria o fim das operações de paz ou das intervenções humanitárias. Aparentemente, ninguém duvida que a troika Cheney-Rumsfeld-Wolfowitz levará a melhor nesta luta de influências, tanto mais que o vice-presidente colocou homens da sua confiança em lugares-chave da Administração e sobretudo no Pentágono, onde o orçamento de 300 mil milhões de dólares constitui um peso determinante na condução das políticas efectivas. Talvez por isso, William Pfaff escrevia na Foreign Affairs: “os Estados Unidos são um país perigoso”. Este mesmo autor critica a visão optimista de quem pretende reformar o mundo a partir dos seus próprios padrões morais, objectivo erigido em fonte de legitimação para a actual política de hegemonia global. “Na origem da sua cultura, encontra-se um puritanismo intolerante para com os pecadores e impaciente face a uma vontade divina que tarda em se manifestar. Os Estados Unidos continuam a querer o progresso com impaciência. O seu desejo de transformar o mundo é a expressão do seu sentimento de serem uma nação de excepção dotada de virtudes singulares, o que, por feliz coincidência, reforça o interesse económico nacional e apoia a lógica da extensão do poderio do país. O risco que correm os Estados Unidos é um dos mais clássicos: o de um orgulho autodestruidor que acaba por conduzir a um vale de lágrimas”. Numa palavra, as actuais orientações em política externa norte-americana não são meros produtos de uma conjuntura ou impulsos de reacção a um trauma particularmente doloroso. Elas assentam em opções ideológicas estruturadas e alimentam-se da cultura profunda do país.
Informação complementar O novo mapa-Mundi americano Na sequência do 11 de Setembro de 2001 deu-se uma reestruturação das forças armadas norte-americanas na sua projecção mundial, em vigor a partir de 1 de Outubro de 2002, estabelecendo-se dez comandos presididos por generais. Cinco desses comandos são de tipo funcional: Comando Espaço, Comando Estratégico (controla o uso do arsenal nuclear), Comando Transportes, Comando Forças Aliadas, Comando Operações Especiais. Os outros cinco são comandos geográficos que repartem as grandes regiões do globo: Comando Norte, Comando Sul, Comando Europa, Comando Centro, Comando Pacífico. Anteriormente não estavam integrados em nenhum comando militar delimitado países ou zonas como o México, a Rússia, o Canadá, a Antárctida e o Mar Cáspio. Uma das principais novidades da presente reorganização diz respeito ao Comando Norte que inclui os EUA, o Canadá, o México e uma parte das Caraíbas. Até agora nenhum destes comandos abrangia o território dos Estados Unidos, com a única excepção do plano NORAD (North American Aerospace Defense Command) para a defesa anti-aérea dos EUA e do Canadá, presumindo-se a invulnerabilidade desse mesmo território – pressuposto que se desmoronou com o 11 de Setembro. Daí a actual composição do Comando Norte. Curiosamente o Comando Europa superintende sobre a Groenlândia, sobre quase toda a África e sobre a totalidade da Rússia. Esta decisão foi mal recebida em numerosos sectores de Moscovo que lamentam o modo como se está a redesenhar o espaço pós-soviético, numa atitude considerada como de marginalização da Rússia, remetida para o “pátio traseiro” da geopolítica mundial. Por sua vez, o Comando Pacífico integra agora a Antárctida, atinge Madagáscar e condivide o Alasca com o Comando Norte. Se o Comando Sul não suscita nenhum comentário especial dada a sua quase coincidência com a América do Sul, já o Comando Central se situa numa zona particularmente sensível: a sua importância é hoje tão grande que justifica uma análise própria (ver à frente o texto “11 de Setembro: consequências na Ásia Central e do Sul”). Segundo informações que remontam a Setembro de 2002 e a pretexto de um exercício previsto para Novembro seguinte, a sede deste Comando Central foi transferido de Tampa, na Florida, para o Qatar, no Golfo Pérsico, no quadro dos preparativos da intervenção militar contra o Iraque. Pela primeira vez, os EUA vão testar a mobilidade do “quartel-general móvel” recentemente estabelecido. De acordo com as fontes oficiais publicamente disponíveis, estes comandos
geográficos têm a seu cargo a defesa do espaço aéreo, terrestre e marítimo
das respectivas zonas contra qualquer ataque militar, terrorista, nuclear,
químico ou bacteriológico, coordenando a resposta militar adequada. Em
tempo de paz, as competências destes comandos permitem-lhes intervir
nos domínios das catástrofes naturais, do narcotráfico, das migrações
clandestinas, da assistência às populações civis e das manobras e exercícios
militares.
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