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10 anos de guerras “americanas”

Fernando C. Freire e Fernando A. Guimarães *

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O orçamento militar dos EUA é superior aos orçamentos da mesma categoria dos restantes países do mundo, contribuindo para o aprofundamento do fosso tecnológico e de poder militar em relação aos seus aliados. Os 10 anos de guerras “americanas” que se iniciaram em 1991, com a operação Tempestade no Deserto, e culminaram com a recente intervenção no Afeganistão (2001) demonstraram o enorme poderio militar deste país, mas provaram também a necessidade de cooperação com outros países, através da autorização para a instalação de bases e direito de sobrevoo, para que este poder se torne efectivo.

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O orçamento militar dos Estados Unidos deverá ascender, em 2003, 396 mil milhões de dólares e dentro de dois anos atingirá meio bilião de dólares. Os americanos gastam mais nas suas forças armadas do que praticamente todos os outros governos do mundo juntos. Devido à dimensão vasta da sua economia, esta soma enorme representa apenas uma percentagem mínima do seu PNB, pouco maior do que a das despesas militares de Portugal. Nunca na História existiu tamanha disparidade militar entre um Estado e o resto do mundo. Com cerca de 1.500.000 voluntários, as forças armadas dos EUA têm hoje, especialmente à luz das novas tecnologias, uma superioridade quantitativa e qualitativa total. Mas, acima de tudo, os americanos mostraram claramente no Afeganistão que têm tanto a capacidade como a vontade de utilizar este poderio militar ímpar. Depois da Guerra Fria, em que a dimensão nuclear essencialmente inviabilizava a guerra, e após a sua experiência desmoralizante no Vietname, teve lugar uma “revolução nos assuntos militares” para transformar a máquina de guerra americana. Desde 1991, assistimos a dez anos de guerras americanas.

No Golfo Pérsico, os americanos juntaram uma coligação internacional para inverter a invasão do Kuwait por Saddam Hussein. Através da CNN, o mundo assistiu ao bombardeamento de Bagdad que desencadeou a operação Desert Storm. Muitos diziam que a guerra seria terrível e que os aliados iriam sofrer muitas baixas. Mas a combinação de poderio aéreo superior com a invasão terrestre (que durou apenas 100 horas) culminou numa devastadora derrota para o Iraque em apenas 43 dias. Cerca de 100.000 soldados iraquianos perderam a vida. Em contraste, apenas 148 soldados americanos morreram, cerca de um terço dos quais vítimas de friendly-fire. Várias inovações tecnológicas fizeram aqui a sua estreia: o Global Positioning System (GPS), os mísseis Tomahawk, as bombas de precisão laser e teleguiadas, os sistemas de visão nocturna, os aviões com capacidade stealth.

Na Somália, a operação Restore Hope começou nas praias de Mogadíscio na manhã de 9 de Dezembro de 1992 com o desembarque dos marines sob as luzes quentes da televisão. Quase 30.000 efectivos participaram na intervenção, onde os próprios americanos admitem haver subestimado as dificuldades políticas da situação. No entanto, foi um sucesso humanitário que conseguiu atenuar dramaticamente a fome que ameaçava matar centenas de milhares de somalis. A grande parte das forças foi retirada em princípios de 1993 e as Nações Unidas assumiram responsabilidade pelas operações a 4 de Maio. Em Outubro desse ano teve lugar o agora famoso caso Black Hawk Down. A emboscada que deixou mortos 18 rangers e Força Delta (e cerca de mil somalis) resultou essencialmente de falhas de informação e de erros tácticos das forças americanas, que se mantinham fora do comando da ONU. Tal não impediu a Administração Clinton de responsabilizar a ONU pelo que ocorreu. Acima de tudo, o incidente realçou o que parecia ser um verdadeiro calcanhar de Aquiles dos EUA, isto é, a incapacidade de suster baixas.

A intervenção da NATO no Kosovo em 1999 nada fez para resolver esta questão, visto que os americanos e os seus aliados não sofreram qualquer baixa, um resultado certamente sem precedente na guerra. Mais um exercício em diplomacia coerciva do que uma guerra propriamente dita, a operação Allied Force durou 78 dias entre Março e Junho de 1999. Foi a primeira guerra da NATO dominada pelos EUA, que claramente demonstraram a sua superioridade aérea, incluindo a utilização significativa de munições de precisão cuja eficácia está a transformar a capacidade de destruir alvos a longa distância. Mas a operação revelou também fraquezas: a insuficiência do poder aéreo isolado, que não conseguiu impedir a limpeza étnica, bem como as suas limitações face às defesas antiaéreas sérvias que mantiveram a aviação aliada acima dos 4.500 m.

A guerra feita por comité – os 19 governos da NATO – terá frustrado os militares americanos, que teriam preferido o uso da força decisiva a partir do primeiro momento com o bombardeamento de Belgrado. Mas a resistência sérvia também se deveu ao facto de o presidente Clinton, logo ao início da campanha, ter tirado da equação militar um factor decisivo ao anunciar que não ia autorizar o uso de forças terrestres. Na realidade, apesar de se atingirem os objectivos, não houve um claro sucesso militar.

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A operação Enduring Freedom, que teve início a 7 de Outubro de 2001, para derrubar os taliban e destruir a organização Al-Qaeda veio demonstrar o crescente fosso militar existente entre os EUA e o resto do mundo. No Afeganistão, a experiência de guerras passadas culminou numa interacção de grande eficácia de forças aéreas, terrestres e baseadas no mar numa sintonia coordenada por meios de informação e comunicação ultramodernos que permitem ao comando central na Florida controlar operações em tempo real.

As inovações tecnológicas que tiveram a sua estreia neste teatro de operações são consideráveis: o Predator, avião de reconhecimento sem piloto, armado com mísseis Hellfire entrou aqui em pleno funcionamento; as bombas termobáricas de ataque a cavernas; a utilização de “bombas inteligentes” quase duplicou em relação à guerra no Kosovo (60% contra 35%), sendo a maioria controladas por GPS em vez de laser. A grande eficácia das forças americanas assenta ainda na utilização de sistemas antigos mas provados, actualizados com novas tecnologias: o mais sofisticado helicóptero do mundo, o Pave Low, regularmente utilizado pelas forças especiais; os C-130, utilizados há mais de 30 anos continuam a demonstrar a sua utilidade em versões altamente modificadas de ataque ao solo; depois de 40 anos o U-2 prossegue na sua missão de espionagem de alta altitude; e foram os “enferrujados” mas implacáveis B-52 Stratofortress que dominaram os céus do Afeganistão.

Dez anos volvidos, os EUA são claramente a “hiperpotência” militar do planeta, muito superior a todos os seus aliados juntos e aos seus actuais e potenciais adversários. São claros os factores que determinam o seu actual domínio militar: poderio aéreo, munições de precisão e redes integradas de comando e controlo, comunicações e informática que permitem a condução táctica da campanha militar dia e noite e a longa distância.

As frustrações do Kosovo, levaram os americanos a escolher para o Afeganistão uma coligação por eles dominada em vez de uma aliança formal como a NATO, que poderá ainda vir a ser prejudicada pelo crescente fosso militar e tecnológico relativamente ao seu aliado mais poderoso. Mas, apesar disso, os Estados Unidos continuam claramente a precisar dos seus aliados e amigos. Dispersas pelo mundo fora, as Forças Armadas americanas precisam, para fazer vingar o seu poderio militar a nível global, da cooperação de outros Estados para colocar bases e obter direitos de sobrevoo. A nova geração de guerra – contra agentes sem Estado – apresenta novos desafios à adaptabilidade e à capacidade de transformação do poder militar americano. No Afeganistão, ao usar a força com determinação e propósito, os Estados Unidos demonstraram que, ao contrário da Somália, têm a capacidade de suster baixas e terão afastado, porventura definitivamente, o síndroma pós-Vietname. Demonstraram ainda que, ao contrário do Kosovo, não dependem exclusivamente do poder aéreo.

A cooperação da Aliança do Norte no terreno e a utilização de forças especiais foram essenciais para a vitória final.

 

Informação complementar

O futuro da guerra

As novas tecnologias de guerra americanas foram bem exibidas no Afeganistão: bombas telecomandadas (Joint Direct Attack Munitions que, a uma fracção do preço de um míssil Cruise, alteram bombas tradicionais permitindo uma precisão milimétrica), postos de comando longínquos, com informações do terreno obtidas por forças especiais ou aviões sem piloto (Unmanned Aerial Vehicle, tipo Predator), estando estes elementos dispersos ligados em tempo real através de uma rede de comunicações, satélites e informática (C4ISTAR – command, control, computers, communications, intelligence, surveillance, target acquisition and reconnaissance). E o futuro parece augurar inovações ainda mais fantásticas com o uso significativo, dentro de 10 anos, de robôs, sensores e outras máquinas que, ao dispensarem a presença humana, prometem facilitar muito do trabalho militar cansativo e perigoso. Um resultado deste avanço tecnológico é já evidente na crescente distância entre os EUA e os seus aliados, ameaçando a interoperabilidade das suas forças. Em termos militares, a maior automatização também apresenta riscos devido às limitações da inteligência artificial. O soldado de carne e osso não está, portanto, em risco de extinção. Para além disso, as estruturas militares americanas são burocráticas e dificilmente se deixam transformar. A nova geração de armamentos era suposta substituir muitas das antigas plataformas de guerra mas acabaram por ser acrescentadas ao que já existia. Para uma verdadeira “revolução militar” não é suficiente fundir novas tecnologias com estratégias efectivas. É também necessário criar a organização certa.

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* Fernando C. Freire

Mestre em Ciências Políticas pela Durham University.

* Fernando A. Guimarães

Doutorado em Relações Internacionais pela London School of Economics and Political Science.

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Dados adicionais
Gráficos / Tabelas / Imagens / Infografia / Mapas
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