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Janus 2003



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Os paradoxos do hiperpoder norte-americano

Teresa Botelho *

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Robert Kagan, influente analista neo-conservador, atentamente ouvido pela actual administração norte-americana declarou que a actual conjuntura internacional é caracterizada pela enorme disparidade de poder entre os EUA e o resto do mundo. Samuel Huntington, um analista político da escola realista aponta, por outro lado, para a existência de um sistema unimultipolar onde coexistem uma única super-potência e várias potências regionais, posição infirmada por Z. Brzezinsky, antigo conselheiro do presidente Carter, que considera transitória a actual hegemonia de poder americana.

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Os termos do debate há muito travado entre conservadores e liberais norte-americanos sobre as linhas mestras de uma doutrina de política externa pós-contenção foram recentemente redefinidos pela introdução na discussão pública da primeira e mais bem articulada defesa da inevitabilidade da inclinação unilateralista no cenário pós-11 de Setembro, vinda de Robert Kagan, o influente analista neoconservador do Carnegie Endowment for International Peace (1), atentamente ouvido pela presente administração norte-americana. Qualquer análise do rumo a dar ao poder dos Estados Unidos (que para muitos analistas ultrapassam as capacidades de uma comum superpotência e são melhor descritos como hiperpotência) depende, naturalmente, da leitura que se faz das características da estrutura do poder internacional no rescaldo da Guerra Fria. Kagan argumenta que o que caracteriza a presente conjuntura é, de facto, uma gigantesca disparidade de poder entre os Estados Unidos e o resto do mundo, que está a dar origem a uma crescente divergência entre a cultura estratégica da única potência com capacidade de intervenção global e a dos seus aliados europeus. Esta distância resulta não só da fraqueza militar europeia que reduz substancialmente as suas opções de acção e torna as soluções multilaterais e o uso das estratégias do soft power muito mais atraentes, como da experiência histórica recente, nomeadamente da construção de um sistema de governação multilateral que se pretende para além da política de poder. Enquanto os europeus assumem para si próprios uma nova “missão civilizadora”, a de mostrar ao mundo as virtudes e potencialidades do seu paraíso kantiano, os Estados Unidos (e o resto do mundo) vivem ainda num cenário hobbesiano, para o qual a experiência histórica europeia é pouco mais do que uma admirada fantasia política. Nessa realidade ainda baseada nos factos e relações de poder, os Estados Unidos são simultaneamente o gigante mais influente e o alvo mais desejado.

No cálculo da tolerância perante os perigos internacionais é perfeitamente justificável, segundo Kagan, que a Europa prefira a convivência com a ameaça (a única via que lhe está objectivamente aberta), e os Estados Unidos optem pela confrontação com o risco, porque o podem fazer desaparecer mesmo actuando isolados e porque se sentem muito mais vulneráveis, em função da sua dimensão estratégica e das suas responsabilidades globais. Desta argumentação se deduz ser de esperar que com muito mais frequência do que antecipado pelos realistas e liberais tradicionais, os Estados Unidos e os seus aliados europeus se encontrem divididos quanto a intervenções globais, nomeadamente se incluem uma opção militar, e que a hiperpotência se veja obrigada a assumir sozinha as responsabilidades de se defender de ameaças que a ela quase exclusivamente se dirigem. Esta argumentação, que tem a vantagem da franqueza, irá certamente alimentar uma longa controvérsia nos tempos que se seguem, já que desafia as leituras da conjuntura internacional de alguns mais eminentes analistas da função dos Estados Unidos na cena global.

 

Leituras alternativas da estrutura de poder internacional: Samuel Huntigton e Zbigniew Brzezinski

Contrariando esta visão de uma estrutura global de poder unipolar, o analista político realista Samuel Huntington (2) descreve um modelo muito mais complexo e híbrido de sistema internacional.

O facto inegável da existência de uma só superpotência não implica, na sua opinião, um mundo unipolar, entendido como uma realidade em que, para além da superpotência solitária, não existem grandes potências significativas. Nessa conjuntura, a superpotência pode resolver grandes questões internacionais por si só, sem que qualquer combinação de outros Estados a possa travar, como sucedeu com o poder de Roma no mundo clássico. Para Huntington, este modelo não descreve rigorosamente o presente panorama de distribuição internacional de poder, que tão-pouco pode ser representado pelos parâmetros de um sistema multipolar, que implicaria a existência de várias grandes potências de capacidade comparável, que cooperam ou competem de acordo com padrões transitórios de alianças de conveniência.

Huntington propõe, como alternativa descritiva, um modelo a que chama de sistema unimultipolar em que coexistem uma única superpotência e várias grandes potências regionais. Apesar de a superpotência ser o único Estado com capacidade para promover os seus interesses em virtualmente todas as partes do mundo, necessita, para o êxito da resolução das mais importantes questões internacionais, da cooperação de combinações de, pelo menos, algumas das grandes potências regionais, retendo embora, na prática, a capacidade de vetar qualquer iniciativa de qualquer coligação dessas forças que contrarie os seus objectivos.

Os Estados Unidos são, neste momento, o único Estado com proeminência em todos os domínios do poder – do coercivo (económico, diplomático e militar) ao soft (ideológico, tecnológico e cultural), mas não podem ignorar outras grandes potências, regionalmente proeminentes, embora sem capacidade de afirmar os seus interesses tão globalmente como os Estados Unidos. Huntington classifica assim aquilo a que chama o “condomínio franco-germânico” na Europa, a Rússia na Eurásia, a China e potencialmente o Japão na Ásia Oriental, a Índia no Sul da Ásia, o Irão no Sudoeste Asiático, o Brasil na América Latina e a África do Sul e a Nigéria no continente africano.

O quadro é completado pela existência de um terceiro nível de estados regionais secundários, cujos interesses frequentemente colidem com os das grandes potências regionais. Huntington aponta como exemplos, entre outros, a Grã-Bretanha (em oposição ao bloco europeu liderado pela Alemanha e a França), o Paquistão em relação à Índia, a Arábia Saudita em relação ao Irão.

O sistema assim descrito carece, obviamente, de estabilidade e de longevidade. Um sistema unipolar puro pode sobreviver, sem enfrentar qualquer desafio sério, durante longos períodos, até que seja destruído quer por forças externas ao sistema, quer por enfraquecimento interno, como sucedeu com a China no século XIX ou com Roma no século V.

Num sistema multipolar, pela natureza do equilíbrio dos poderes em presença, qualquer ambição unilateral de um Estado individual será contrariada por outros Estados combinados. Até mesmo o bipolarismo da Guerra Fria continha factores de maior estabilidade, já que funcionava, dentro de cada bloco, como um sistema unipolar, em que cada uma das superpotências dominantes tinha consciência clara do preço incomportável de um assalto ao seu rival. No momento em que uma das entidades deixou de conseguir sustentar a sua posição unipolar dentro do seu espaço de domínio estratégico, perdeu, como consequência, a sua aptidão para sustentar a rivalidade.

Num sistema misto, como Huntington o caracteriza, nenhum dos actores principais está interessado em manter o status quo.

A superpotência preferiria um sistema unipolar, e dificilmente escapa à tentação de actuar como se fosse realmente uma potência hegemónica. As grandes potências regionais, por seu lado, prefeririam um sistema verdadeiramente multipolar em que fossem livres de prosseguir os seus interesses sem pressões ou limitações impostas pela superpotência; quanto maior for a tentação hegemónica da grande superpotência, maior será o impulso das potências regionais no sentido da criação de um sistema multipolar.

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Esta dinâmica aponta, segundo Huntington, para um verdadeiro sistema multipolar dentro de uma ou duas décadas. O momento unipolar que coincidiu com a Guerra do Golfo não terá passado de uma breve fase entre duas grandes reorganizações dinâmicas da distribuição do poder internacional.

A percepção do carácter transitório do presente cenário internacional é também avançada pelo antigo conselheiro nacional de segurança do presidente Carter, Zbigniew Brzezinski (3), já que o carácter globalizante da política internacional, que acarreta uma maior difusão do saber e, sobretudo, uma maior dispersão do poder económico (o que implica que, segundo algumas estimativas, na segunda década deste século a percentagem da contribuição americana para a economia global tenha diminuído para níveis entre os 10 e os 15 por cento, próxima dos volumes então já atingidos pelas economias europeias, chinesa e japonesa), tornarão improvável a concentração de poder hegemónico nas mãos de um único Estado. Na conjuntura que se seguirá, a predominância de um só Estado será, pelas mesmas razões, altamente improvável. Os Estados Unidos parecem destinados a ser o primeiro hiperpoder global e também o último.

O momento de domínio global americano (que poderá não durar mais do que uma geração) constitui assim uma curta janela de oportunidade histórica que os Estados Unidos deverão usar para criarem as parcerias de poder que garantirão a prossecução dos seus interesses em condições menos favoráveis e que constituirão o seu legado à comunidade internacional.

 

A defesa dos interesses nacionais americanos no contexto de uma hegemonia temporária

A percepção de que os Estados Unidos não detêm uma posição de hegemonia permanente e estável num sistema unipolar conduziu Huntington (e outros analistas conservadores como Henry Kissinger), a um conjunto de recomendações que constituem na sua essência uma crítica contundente à recente experiência de internacionalismo liberal clintoniano e ao seu modelo de hegemonia benevolente. Em primeiro lugar, os Estados Unidos deveriam alterar a sua retórica e a sua prática, rejeitando o modus operandi unilateral e reconhecendo que precisam da cooperação de pelo menos algumas outras grandes potência. Deveriam, em segundo lugar, abandonar a ilusão “benigno-hegemónica” de que existe uma natural harmonia entre os seus interesses e valores e os do resto do mundo. Em terceiro lugar, seria desejável que, reconhecendo embora que não podem criar um mundo unipolar, os Estados Unidos fizessem uso da sua posição temporária como única superpotência para defender os seus interesses vitais (e não, subentende-se, os da comunidade internacional, ou os interesses humanitários de países periféricos). Nesse quadro, deveriam privilegiar os seus laços com a Europa, fortalecendo o bloco cultural em que naturalmente se inserem.

Ao abandonar o papel de polícia global, que, num sistema multilateral deverá ser garantido por um modelo de “policiamento comunitário”, em que as grandes potências regionais assumem a responsabilidade de manutenção da ordem nas suas áreas de influência, os Estados Unidos encontrar-se-iam, prevê Huntington, num sistema menos exigente e menos contencioso. Os perigos, sacrifícios e ansiedades inerentes ao papel de única superpotência, poderiam, finalmente, dar lugar às reduzidas responsabilidades e acrescidas compensações inerentes ao estatuto de serem apenas uma entre várias grandes potências.

Para Brzezinski, entre as tendências neo-isolacionistas que defendiam, pelo menos até aos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001, uma redução significativa das responsabilidades globais americanas, independentemente das consequências externas dessa retracção, e uma aposta no multilateralismo internacional que implicaria cedências de alguma da sua soberania e sacrifícios de alguns interesses americanos imediatos, a posição prudente será a de utilizar este breve momento de oportunidade histórica para fortalecer as ligações dos Estados Unidos com o espaço euroasiático, cuja estabilidade é garante da segurança internacional. A criação de laços de cooperação geopolítica com a China e a Rússia, para além do estreitamento do entendimento com a Europa alargada é assim vista como a prioridade máxima da política externa norte-americana, a única capaz de, ao mesmo tempo, evitar a anarquia global hobbesiana que ameaça permanentemente o sistema internacional e diminuir as probabilidades da emergência de uma potência rival. Uma imprudente predilecção por actuações unilaterais que alienassem o bloco euroasiático teriam como consequência um enfraquecimento das alianças e estruturas de cooperação geopolítica que, para Brzezinski, são o garante não só da estabilidade e segurança internacionais, como dos interesses americanos quando a sua “regência” da ordem global se tiver naturalmente desvanecido.

 

Informação complementar

O Xerife Relutante?

Antes dos acontecimentos do 11 de Setembro, a negação de que os Estados Unidos tivessem obrigações globais e a crítica ao modelo de hegemonia benevolente, eram temas constantes das análises da opinião conservadora e neo-isolacionista nos Estados Unidos desde a emergência dos conceitos de intervenção humanitária e de multilateralismo no primeiro mandato de Bill Clinton.

Em primeiro lugar, tanto Huntington como Kissinger defendiam que os Estados Unidos não tinham condições internas para se tornarem uma potência hegemónica, já que lhes faltava uma base política doméstica de apoio, evidenciada pelas constantes oscilações do Congresso e da opinião pública no apoio a operações globais em que interesses americanos directos não estivessem em causa, e não dando mostras de assumir como seus os pontos de vista internacionalistas que, para Huntington, afectam as elites políticas e os media liberais nos Estados Unidos. Em segundo lugar, tanto a opinião liberal como a neoconservadora, adoptando embora paradigmas diferentes (os Estados Unidos como assistente social ou como polícia global), eram acusadas por Huntington de assumirem que a política externa americana deveria ter uma componente moral, aliando a idealpolitik à realpolitik. Desde a intervenção na Somália, em 1993, numa “operação romântica” em que “vidas e recursos foram sacrificados na defesa do povo de um país periférico em que não estavam em causa interesses vitais americanos”, até às intervenções na Bósnia e no Kosovo, a crítica conservadora, quer no Congresso quer nos meios académicos e de reflexão, atacava sistematicamente o impulso internacionalista humanitário, o envolvimento americano em operações de nation-building e a política de fortalecimento das instituições internacionais multilaterais, encapsulados na expressão de Madeleine Albright de que os Estados Unidos eram “a nação indispensável”. O investimento de recursos económicos e militares na promoção da democracia e dos direitos humanos em cenários secundários eram analisados como reflexo de uma tentação imperial e universalista, que subordinava os interesses vitais americanos a vagos interesses globais, ignorando as realidades do poder e a necessidade de os Estados Unidos adoptarem uma política externa realista que fosse bem mais longe do que o “multilateralismo à la carte” de inspiração neoconservadora do Departamento de Estado de Colin Powell para se afirmar sob a forma de um “nacionalismo robusto”, bem mais ao gosto do secretário de Defesa Donald Rumsfeld.

Perante as recentes intervenções de Rumsfeld e Cheney, dois adeptos da robustez das relações internacionais que em muito ultrapassaram as cautelosas recomendações de conservadores realistas como Henry Kissinger e Brent Scowcroft, o anterior debate parece ter assumido novos contornos. Ao modelo do xerife relutante, alguns membros da equipa Bush parecem preferir o modelo alternativo do pistoleiro justiceiro que ataca os fora-de-lei sozinho e depois cavalga em direcção ao horizonte, deixando aos confusos habitantes da cidade a tarefa de contar os custos da sua libertação do perigo, e de reparar os danos provocados pelo duelo.

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1 Ver  Robert Kagan (2002) “Power and Weakness”, Policy Review, Junho-Julho, pp. 3-28.
2 Ver Samuel P. Huntington (1997) “The Erosion of American National Interests”, Foreign Affairs, Vol.76 nº 5, pp. 28-49, (1999) “The Lonely Superpower”, Foreign Affairs, Vol 78 nº 2, pp. 35-49, (2000) , “Robust Nationalism”, The National Interest, nº 58 pp. 31-40.
3 Ver Zbigniew Brzezinski (1997) The Grand Chessboard: American Primacy and its Geostrategic Imperitives, (2000) “Living with China” The National Interest, nº 59, pp. 7-21, “Living With a New Europe”, The National Interest, nº 60, pp. 17-32, “Living with Russia”, The National Interest, nº 61, pp. 5-17.

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* Teresa Botelho

Doutorada pela Universidade de Cambridge. Professora de Cultura Norte Americana e Política Externa Norte Americana na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

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