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Sem querer diminuir a força dos seus efeitos, o impacte da agressão terrorista contra os Estados Unidos não teve uma importância comparável à mudança radical do fim da guerra fria. Entre 1989 e 1991, quando uma aceleração vertiginosa da história determinou, sucessivamente, a deposição dos regimes comunistas na Europa Central e Oriental, a unificação da Alemanha e o suicídio da União Soviética, terminou um século de guerras totais e de revoluções totalitárias e abriu um período de transição e incerteza. Dez anos depois, o 11 de Setembro, foi, sobretudo, um revelador do sentido da evolução internacional, com a escolha de um caminho que pode definir o modelo de ordenamento no pós-guerra fria. Naturalmente, a mudança mais imediata concentrou-se na política interna dos Estados Unidos, com a surpresa provocada pela negação trágica da invulnerabilidade do território norte-americano a uma agressão externa, sem precedentes desde Pearl Harbour. Os responsáveis pelo atentado – a rede terrorista pan-islâmica da Al-Qaeda – escolheram como alvos os símbolos manifestos da preponderância internacional dos Estados Unidos e os dois ataques contra as Twin Towers, em Nova York, e o Pentágono, em Washington, onde morreram milhares de pessoas, demonstraram que era impossível garantir a segurança dos centros da última grande potência. A resposta pôs à prova as instituições políticas norte-americanas e expôs uma séria falta de preparação dos seus aparelhos de segurança para neutralizar as novas ameaças do hiperterrorismo, ou do terrorismo catastrófico, transnacional ou interno. Nove dias depois, o presidente George W. Bush foi ao Congresso declarar guerra ao terrorismo e assumir perante os seus compatriotas o compromisso de que o 11 de Setembro não se podia repetir. Esse desígnio passou a ser parte essencial do seu mandato e a campanha contra o terrorismo impôs uma revisão das prioridades políticas internas e externas. O terrorismo, qualificado como uma forma de totalitarismo, tornou-se a pior ameaça à segurança internacional e, nessa medida, o anti-terrorismo passou a ser o novo paradigma da politica internacional dos Estados Unidos, com consequências directas na evolução das guerras locais, na configuração das alianças e nas estratégias de ordenamento internacional.
Os novos inimigos A definição norte-americana de terrorismo passou a incluir as redes terroristas transnacionais, nacionais ou subnacionais, e três tipos de Estados : os Estados cujas estratégias não excluem o recurso ao terrorismo, os Estados fora-da-lei, detentores de armas de destruição maciça à margem da legalidade internacional, e os Estados falhados, perturbadores regionais e refúgio de organizações terroristas e criminosas. Obtido um mandato do Conselho de Segurança das Nações Unidas que reconheceu aos Estados Unidos o livre exercício do seu direito de legítima defesa contra a agressão terrorista, a retaliação norte-americana começou pelo combate contra a Al-Qaeda. Para neutralizar o seu santuário principal no Afeganistão, os Estados Unidos tinham de desalojar o regime teocrático dos taliban e impor uma fórmula política interna que pudesse garantir a reconstituição do Estado, num quadro de estabilidade regional. Numa guerra inédita, os norte-americanos ensaiaram uma combinação entre a destruição militar do seu inimigo por meios aéreos – quase sem baixas entre as suas forças e à custa de numerosas baixas civis afegãs – e o rápido avanço no terreno dos seus aliados locais, tomando sucessivas cidades até à rendição da capital. Para montar a operação, os Estados Unidos tiveram de mobilizar os exércitos das minorias nacionais afegãs da Aliança do Norte, de isolar o regime dos taliban dos seus aliados paquistaneses e de ocupar, pela primeira vez, instalações militares dentro do território da antiga União Soviética, no Uzbequistão e no Tajiquistão. O sucesso militar criou as condições internas para começar a transformar um Estado falhado numa entidade política autónoma, com instituições fortes e legítimas, em cuja feitura a intervenção das Nações Unidas será decisiva. As condições externas da restauração da independência afegã dependem da neutralidade dos Estados contíguos, nomeadamente do Paquistão e do Irão, bem como de um mínimo de estabilidade regional no conjunto da Ásia Central, onde os movimentos terroristas pan-islâmicos continuam activos, nomeadamente no Uzbequistão, tal como no conflito, muito próximo, de Caxemira: garantir essas condições também exigirá um empenho directo dos Estados Unidos, tanto mais efectivo quanto puder contar com a benevolência da Rússia e da China, a cumplicidade da Índia e a presença dos seus aliados tradicionais. A Ásia Central é um terreno difícil para fazer a prova da capacidade internacional para neutralizar os movimentos terroristas pan-islâmicos, restaurar Estados falhados e impor um mínimo de estabilidade regional. Todavia, contra os mais pessimistas, foi possível pôr fim à longa guerra civil no Afeganistão, bem como instalar as autoridades centrais e mobilizar as Nações Unidas para a segurança e a reconstrução do Estado. A próxima fase da campanha anti-terrorista foi anunciada logo a seguir ao sucesso militar no Afeganistão: o próximo objectivo será o “Eixo do Mal” – o Irão, o Iraque e a Coreia do Norte, três Estados isolados, com arsenais impressionantes de armas de destruição maciça.
As coligações flutuantes A emergência do antiterrorismo como paradigma da política norte-americana requer uma nova teoria das alianças, que os Estados Unidos enunciaram pela negativa, quando avançaram sozinhos no Afeganistão. Nem a Aliança Atlântica, apesar de ter invocado, numa decisão sem precedentes, os mecanismos da defesa colectiva depois do 11 de Setembro, nem o Japão, que teve de aprovar uma lei especial para tornar possível a sua presença militar no Índico, puderam participar na guerra afegã. No lugar da pesada arquitectura das alianças, herdada da guerra fria, os responsáveis norte-americanos passaram a preferir as coligações flutuantes, definidas, caso a caso, para cada missão específica da campanha antiterrorista, de modo a ultrapassar as limitações formais com que as alianças permanentes e institucionalizadas podem condicionar os seus membros, sem excluir as grandes potências. Numa fórmula inovadora, a missão determina a aliança, em vez de a aliança determinar a missão. Com as mãos mais livres, os Estados Unidos começaram a montar as suas coligações flutuantes. Na luta contra o terrorismo pan-islâmico, a Rússia, a Grã-Bretanha, Israel, a Turquia tornaram-se aliados indispensáveis, tal como um certo número de países islâmicos, incluindo o Marrocos, o Egipto, o Iémen ou a Malásia. O desmantelamento das redes internacionais de recrutamento e financiamento da Al-Qaeda empenhou a União Europeia e o Japão, bem como os feudais da península arábica. Na guerra afegã, o Paquistão, o Uzbequistão e o Tajiquistão constituíram a linha da frente e são decisivos para destruir os movimentos pan-islâmicos armados na Ásia Central e no Caxemira. As alianças flutuantes da campanha anti-terrorista trazem consigo os seus problemas. Os Estados Unidos deixaram de exercer pressão sobre a Rússia na questão da Tchetchénia, aceleraram a procura de uma fórmula de autonomia na questão do Sara Ocidental e têm de se interessar pela questão do Caxemira. A questão da Palestina mudou, com a deslegitimação do terrorismo urbi et orbi, a qual tornou possível uma linha ofensiva de Israel contra as alas mais violentas dos seus adversários palestinianos. A escalada da campanha terrorista dos suicidas palestinianos e a retaliação israelita nos territórios ocupados, por sua vez, prejudicou a estratégia dos Estados Unidos na passagem à segunda fase da campanha contra o “Eixo do Mal”, cujo passo inicial poderá ser a deposição militar do regime iraquiano, repetindo o modelo da intervenção no Afeganistão, embora com a previsão de uma ofensiva terrestre norte-americana numa escala sem precedentes desde a guerra do Vietname. Para lá das dificuldades dessa operação e dos riscos de fragmentação do Iraque, o problema imediato está em saber se e como os Estados Unidos vão mobilizar uma grande coligação, incluindo os outros membros permanentes do Conselho de Segurança, cujo assentimento é necessário para obter um mandato seguro, e que efeitos terá esse esforço para as estratégias de aliança e de ordenamento internacional.
O concerto internacional Há três tipos principais de ordens possíveis na política internacional – a balança do poder, a hegemonia de uma grande potência e o concerto das grandes potências. No fim da guerra fria – um exemplo claro da balança de poder, temperada pela improbabilidade da guerra nuclear – ficou em aberto determinar uma tendência dominante ou para o lado da hegemonia dos Estados Unidos, os únicos sobreviventes da competição bipolar, ou na direcção de um concerto das principais potências, ou numa linha de continuidade da anarquia, unipolar ou multipolar. Durante a década de transição, desde a unificação alemã e a guerra do Golfo Pérsico às guerras periféricas na Tchetchénia ou em África, acumularam-se sinais contraditórios nos vários sentidos. Porém, o choque do 11 de Setembro criou uma situação diferente, na medida em que, desde o primeiro momento, o conjunto das principais potências relevantes, incluindo os adversários dos Estados Unidos, se declararam solidários na luta contra o terrorismo. As tomadas de posição, firmes e empenhadas, da Aliança Atlântica, da União Europeia e do Japão, eram previsíveis, ao contrário do apoio, imediato e sem reservas, da Rússia e da China no Conselho de Segurança. As autoridades russas, inserindo a sua intervenção na Tchetchénia na esteira da luta contra o terrorismo pan-islâmico, mostraram uma abertura notável para combinar esforços no domínio das informações e na mobilização da Aliança do Norte contra os taliban e não se opuseram à instalação de forças militares norte-americanas no Uzbequistão e no Tajiquistão. Os dirigentes chineses quiseram ultrapassar as tensões anteriores nas relações bilaterais com os Estados Unidos, inscreveram o separatismo no Xinjiang na lista geral do terrorismo pan-islâmico, deram carta-branca aos norte-americanos no Afeganistão e fizeram a sua parte para conter a escalada entre a Índia e o Paquistão. A democracia indiana quis demonstrar tanto o seu apoio aos Estados Unidos, como a sua moderação face aos atentados dos movimentos terroristas pan-islâmicos, para fortificar uma relação emergente de aliança com a principal potência internacional. A posição das principais potências foi determinada pelos seus interesses próprios e pela vulnerabilidade de cada uma perante as ameaças do terrorismo catastrófico e da proliferação descontrolada de armas de destruição maciça, que não podem ser contidas sem o concurso de todas as grandes potências. Nesse quadro, pela primeira vez desde o fim do velho concerto europeu, as potências relevantes reconhecem a existência de uma agenda de segurança comum que requer a definição dos novos inimigos e dos modos legítimos para os neutralizar colectivamente. Na definição clássica, o modelo do concerto corresponde a um acordo entre as grandes potências que exclui o domínio de qualquer uma e as inclui todas. Nesse sentido, é incompatível com uma pretensão hegemónica dos Estados Unidos e tem implícito um princípio de equilíbrio multipolar, cujo principal instrumento são as regras que definem a legitimidade e consolidam o concerto internacional. Porém, ao contrário do modelo da hegemonia unipolar, a coligação das grandes potências tende não só a desvalorizar a antiga arquitectura das alianças, como a subordinar as instituições multilateralistas aos acordos do concerto, cujos membros podem exercer uma forma de unilateralismo colectivo mais forte do que um unilateralismo singular dos Estados Unidos. Paradoxalmente, a sobrevivência do constitucionalismo multilateralista depende da persistência da hegemonia norte-americana contra a estratégia de formação de uma coligação permanente das principais potências. Os próximos inventários poderão avaliar melhor a tendência de evolução na balança entre o concerto e a hegemonia, que não esgota as alternativas. De facto, não é claro se o efeito mais profundo dos massacres terroristas de 11 de Setembro na sociedade norte-americana não acabará por exprimir uma vontade isolacionista perante a percepção de uma forte hostilidade exterior, que pode levar a um retraimento estratégico dos Estados Unidos e, por consequência, ao regresso a uma anarquia mais competitiva na política internacional. Nesse caso, o regresso do realismo, sob o signo de Carl Schmitt, não
deixaria nada de fora, nem sequer a Europa e o seu arquipélago kantiano,
e o 11 de Setembro marcaria, efectivamente, o fim do fim da guerra fria.
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