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O regresso do unilateralismo? O programa unilateral caracteriza-se por três pontos centrais: os Estados Unidos devem concentrar-se antes de mais nas questões internas, o que mostra a relação existente entre o unilateralismo e a tradição isolacionista; o país deve manter a máxima liberdade possível na sua política externa, resistindo a ser condicionado por compromissos multilaterais; os norte-americanos só se devem envolver em crises internacionais quando os seus interesses vitais estão ameaçados. Desde que subiu ao poder, a Administração de George W. Bush tem transmitido vários sinais unilaterais. Ainda antes dos ataques de 11 de Setembro, rejeitou a assinatura de tratados internacionais, como por exemplo o Tratado de Kyoto sobre o aquecimento global, a Convenção de Inspecção às Armas Biológicas e o estatuto do Tribunal Penal Internacional. Além disso, denunciou unilateralmente o Tratado ABM sobre armas nucleares. Como tem sido apontado por vários analistas, a estrutura de poder unipolar explica, em grande parte, o unilateralismo norte-americano. Duas teses, em particular, têm surgido com alguma insistência. Uma aponta para as condições hobbesianas de grande parte do sistema internacional, as quais condicionam o modo como os Estados Unidos exercem o seu poder hegemónico. A maioria das regiões do mundo, nomeadamente o Médio Oriente, a Ásia Central, o Extremo Oriente e África, vivem numa situação de anarquia internacional, caracterizada por constantes lutas pelo poder, onde o uso da força militar constitui permanentemente uma hipótese real. Ou seja, a “paz kantiana” que define a política europeia é uma excepção e não a regra. No contexto político europeu é possível e mesmo desejável manter a ordem multilateral. No entanto, nos “sistemas anárquicos hobbesianos”, a adopção de uma estratégia multilateral estará condenada ao fracasso, e neste sentido apenas iria contribuir para a instabilidade internacional. É possível tirar duas implicações deste argumento. Antes de mais, nos sistemas “hobbesianos”, a eficácia política exige estratégias unilaterais. Depois, o uso do poder é fundamental para se estabelecer ordem nestes mundos “hobbesianos”. Ora, por definição, a potência hegemónica é a que tem mais condições para impor a ordem. Para impor ordem nas regiões “hobbesianas”, a potência hegemónica, os Estados Unidos, tem que recorrer a políticas unilaterais, as quais obviamente incluem parcerias estratégicas com potências regionais. A segunda explicação apoia-se na teoria realista do equilíbrio de poder que parte de três pressupostos. Em primeiro lugar, num sistema político anárquico os interesses dos Estados são em larga medida determinados pelo seu poder e pelas suas capacidades. Ou seja, uma potência hegemónica tende a ter interesses globais. Em segundo lugar, o poder é igualmente fundamental para definir a natureza da política externa. Este pressuposto sublinha a relação entre unipolaridade e unilateralismo. Por último, a existência de um equilíbrio de poder entre as várias grandes potências é o único meio de travar a excessiva liberdade unilateral. Por outras palavras, enquanto o sistema internacional não regressar a uma condição multipolar, a política externa da potência hegemónica será unilateral. Aplicando esta teoria ao caso norte-americano, o resultado é o seguinte. A enorme diferença de poder entre os Estados Unidos e as outras grandes potências possibilita a formulação de interesses globais, estratégias expansionistas e políticas unilaterais por parte dos Estados Unidos. (3) Além das tendências unilaterais que resultam da distribuição do poder, muitos consideram que os ataques de 11 de Setembro contribuíram para afastar os Estados Unidos dos seus aliados europeus, pondo assim em causa a ordem de segurança multilateral do Atlântico Norte. Desde os ataques de 11 de Setembro, os responsáveis políticos norte-americanos consideram que o seu país está em guerra, e esta percepção, por um lado, pode afastar os Estados Unidos dos seus aliados europeus e, por outro, tem aproximado Washington de outros países que também sentem que estão em guerra contra o terrorismo, como Israel, a Rússia e a Índia. É possível identificar três factores de separação entre os Estados Unidos e a Europa. Antes de mais, as percepções diferentes sobre a natureza da ameaça terrorista e dos meios a usar para combater o terrorismo poderão fazer diminuir a convergência de interesses entre americanos e europeus. Além disso, o facto de a guerra contra o terrorismo ocorrer, em larga medida, fora da área de actividade da NATO, em regiões onde americanos e europeus têm normalmente interesses divergentes, pode contribuir também para o afastamento entre americanos e europeus. Em último lugar, a concentração dos esforços dos Estados Unidos fora da Europa, e a possível diminuição do envolvimento americano na segurança europeia, poderá levar ao reforço da unidade europeia e a um enfraquecimento da Aliança Atlântica. Estas divergências entre os aliados atlânticos são notórias em dois casos. Por um lado, no conflito israelo-palestiniano. Como afirmou o Economist em 13 de Abril de 2002 com alguma ironia, “embora criticassem a intervenção militar”, “os americanos continuam a ser bons amigos de Israel”; embora “condenem os ataques suicidas”, “os europeus apoiam a causa palestiniana”. No caso do Iraque, não existe um acordo entre os dois lados do Atlântico nem sobre a natureza da ameaça iraquiana, nem sobre o modo de resolução do problema iraquiano. Após os ataques de 11 de Setembro, muitos analistas vêem no apoio incondicional a Israel, contra as posições da maioria dos seus aliados e das Nações Unidas, e num eventual ataque militar ao Iraque, novamente contra a vontade da maioria dos seus aliados, novos sinais do unilateralismo norte-americano. Resta saber se estas divergências entre os dois lados do Atlântico ameaçam a existência da ordem multilateral no Atlântico Norte.
A resistência do multilateralismo À semelhança da evolução da tradição isolacionista para o unilateralismo, o multilateralismo constitui a versão actual da tradição internacionalista. Apoiado no respeito por normas não-discriminatórias e recíprocas, e no funcionamento de instituições políticas, o multilateralismo está profundamente ligado à identidade colectiva norte-americana. Como têm apontado alguns analistas, a cultura política liberal, ou “kantiana”, a qual marca de um modo decisivo os Estados Unidos, é um dos factores que pode ajudar a manter uma ordem multilateral no espaço do Atlântico Norte. O peso da cultura política “kantiana” nos Estados Unidos foi visível, num primeiro momento, quando os Estados Unidos, após a IIª Guerra Mundial, abandonaram o seu tradicional isolacionismo. Quando se viram como a maior potência mundial e com a obrigação de liderarem o processo de criação de uma nova ordem internacional, os Estados Unidos recorreram a instituições de natureza multilateral, como as Nações Unidas e a Aliança Atlântica. Este momento de criação institucional demonstra que, por um lado, o liberalismo contém uma “visão do mundo”, uma concepção de como se deve organizar a ordem internacional e, por outro lado, afecta a política externa de países cujas elites se consideram fortemente influenciadas pela ideologia liberal. Note-se, ainda, que estes compromissos multilaterais condicionaram a política externa americana até hoje. Veja-se o caso de um segundo momento histórico de criação de uma ordem política, o fim da Guerra Fria. Durante o processo de reunificação da Alemanha, em 1989 e 1990, os norte-americanos foram sempre muito claros. A Alemanha unificada terá que ser membro da Aliança Atlântica. De igual modo, os Estados Unidos envolveram-se no mais grave conflito europeu após o fim da Guerra Fria, as guerras jugoslavas, desempenhando mesmo um papel crucial na construção da paz balcânica. Esta participação foi feita no interior da Aliança Atlântica e não de um modo unilateral. Ou seja, os Estados Unidos renovaram os seus compromissos institucionais com a ordem multilateral euro-atlântica após o fim da Guerra Fria. Do mesmo modo, a sua participação na Guerra do Golfo de 1990-91 foi legitimada por Resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas (o mesmo se passou com as intervenções na Bósnia, no Haiti e na Somália.). Podemos assim concluir que a hegemonia norte-americana reforçou-se, mas o multilateralismo manteve-se. É de resto esta coexistência entre hegemonia e multilateralismo que permite a John Ikenberry falar de uma “hegemonia limitada” assente em valores democráticos e liberais, e no funcionamento de instituições internacionais. Terá a Administração de Bush poder para escapar ao peso da cultura política liberal e legitimidade para acabar com os compromissos históricos que herdou das anteriores Administrações? O período de Janeiro, quando Bush tomou posse, a Setembro de 2001 foi caracterizado por um ajustamento do novo Presidente à herança multilateral na área da segurança internacional, nomeadamente com a renovação dos compromissos americanos em relação à Aliança Atlântica e ao processo de paz nos Balcãs. Após os ataques a Nova Iorque e a Washington, a Administração americana reagiu com prudência e, antes da resposta militar, construiu uma grande coligação internacional, de acordo com o princípio do concerto das grandes potências, através de um forte exercício de diplomacia multilateral. Além disso, durante a sua visita à Europa na Primavera, Bush declarou que a NATO deve desempenhar um papel central na guerra contra o terrorismo, afirmando mesmo que a Aliança necessita de uma nova estratégia e de novas capacidades. Estas declarações sugerem que os Estados Unidos pretendem adaptar os mecanismos multilaterais às novas realidades da segurança internacional.
Conclusão O argumento deste texto apoia-se no pressuposto de que existe um sistema internacional unipolar, que inclusivamente saiu reforçado após o 11 de Setembro. Quanto às conclusões, parece-me incorrecto analisar a política externa norte-americana em termos de multilateralismo ou unilateralismo. As duas estratégias não se excluem mutuamente; pelo contrário, podem perfeitamente coexistir. Neste sentido, o modo mais correcto de análise é multilateralismo e unilateralismo, segundo a fórmula ‘multilateralismo quando é possível e unilateralismo quando é necessário’. Por outro lado, é igualmente incorrecto opor realismo a liberalismo. Se a distribuição de poder é um elemento fundamental, como afirmam os realistas, a cultura política, a qual afecta as concepções de legitimidade e ilegitimidade, vitais para qualquer tipo de prática política, é igualmente central, como nos dizem os liberais. Se por um lado, a estrutura unipolar pode provocar tentações unilaterais, a cultura política liberal tende a aceitar compromissos multilaterais. Ou seja, se há na verdade um risco da hegemonia americana ser unilateral, existe igualmente a possibilidade da hegemonia americana continuar a respeitar o multilateralismo. Numa fórmula muito simples, compete acima de tudo aos Estados Unidos protegerem-se de si próprios. Os próximos tempos dirão se são capazes.
Informação complementar Os conceitos de Unipolaridade, Hegemonia e Multilateralismo A unipolaridade refere-se à distribuição de poder do sistema internacional, nomeadamente entre as grandes potências. O termo define uma distribuição de poder internacional, na qual uma única grande potência está claramente no topo da hierarquia do poder. A unipolaridade pode ser mais ou menos acentuada, segundo os diferentes critérios de avaliação de poder. Por exemplo, tendo em vista os critérios militares, económicos, político-diplomáticos, e territoriais, onde a primazia norte-americana é evidente, pode-se afirmar que a actual distribuição do poder é fortemente unipolar, com os Estados Unidos a ocuparem o polo hierárquico. Como se entende facilmente, a unipolaridade é uma alternativa à bipolaridade e à multipolaridade. No primeiro caso trata-se de um sistema internacional onde duas grandes potências dominam a distribuição do poder, como aconteceu durante a Guerra Fria. No segundo caso, existem mais do que duas grandes potências dominantes. Os sistemas políticos internacionais, desde a Paz de Vestfália até à Segunda Guerra Mundial, constituem exemplos de sistemas multipolares. Num sistema unipolar, a potência dominante adquire uma posição de hegemonia. Na literatura das Relações Internacionais, é comum encontrar duas concepções de hegemonia. Por um lado, a concepção realista sde hegemonia afirma que a criação e a manutenção da ordem internacional depende exclusivamente do poder da potência hegemónica. O uso do poder hegemónico tende a ser coercivo e unilateral, sem procurar a construção de posições consensuais. Basicamente, para os realistas, a condição de hegemonia permite a máxima liberdade de acção, o que dá origem a uma política externa unilateral. Em suma, esta primeira concepção de hegemonia é uma hegemonia unilateral. Por outro lado, temos a concepção constitucional de hegemonia. Para
os defensores desta concepção, o exercício do poder hegemónico deve ser
limitado e institucionalizado. Para John Ikenberry, um dos grandes defensores
da ideia de hegemonia constitucional, uma ordem política só é legítima
quando o exercício do poder é limitado. Para o exercício do poder ser
limitado, é necessário criar instituições, apoiadas em consensos políticos.
Quando isto acontece, o poder transforma-se em autoridade legítima. O
ponto crucial nesta definição é a dimensão institucional, a qual tem
uma natureza multilateral. Quando a potência unipolar exerce a sua hegemonia
através de instituições internacionais, pode-se falar de hegemonia multilateral.
O exercício de uma hegemonia multilateral, por sua vez, contribui de
um modo decisivo para a criação de uma ordem política multilateral. Assim,
o termo multilate-ralismo aplica-se a um sistema político de três ou
mais Estados, cujas relações se regulam por princípios gerais não-discriminatórios
e recíprocos. Estes princípios vinculam de igual modo todos os Estados,
independentemente do seu poder, incluindo naturalmente a potência hegemónica.
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