Pesquisa Avançada | Regras de Pesquisa | ||||
Onde estou: | Janus 2003 > Índice de artigos > A convulsão internacional > Terrorismos, extremismos e militarismos > [“Hindutva” : o fundamentalismo hindu] | |||
|
Não obstante a insistência em ler esta realidade à luz do binómio muçulmanos/hindus, muitos são os que defendem, quiçá exageradamente, que se assiste actualmente na Índia a um processo a fazer recordar o avanço do fascismo na Europa dos anos 30, enquadrando o aumento das perseguições sistemáticas e organizadas a muçulmanos, “tribais” e, mais recentemente, cristãos, com a existência de um movimento fundamentalista organizado e altamente politizado. Enquanto no vizinho Paquistão a ameaça do fundamentalismo islâmico está a ser seguida atentamente, na Índia o ataque à democracia secular tem paulatinamente vindo a fortalecer-se, liderado por um grupo de organizações reunidas sob a estrutura do Sangh Pariwar – a família ou coorte Sangh –, frente comum da ideologia fundamentalista hindu que ocupa actualmente a cúpula do poder executivo indiano. A filosofia que sustenta este movimento dá pelo nome de Hindutva.
O Hindutva Como reacção ao poder colonial britânico nasceram na Índia dois movimentos distintos: os “modernistas”, que adoptaram modelos políticos e sociais ocidentais, e os “revivalistas” que procuraram nas raízes do hinduísmo védico (1600-1000 a.E.C.)(3) as respostas à modernidade, e de onde nasce a moderna ideologia Hindutva. Com base nas epopeias religiosas hindu Ramayana e Mahabharata (ca. 1000 a.E.C.), que descrevem um Estado hindu (Ariano) lendário, de virtuosos guerreiros e de grande magnificência e poder, com uma organização social baseada no sistema de castas, os actuais partidários da ideologia Hindutva – os Hindutvawadi – defendem que o regresso à grandiosidade do passado passa pela “‘hinduização’ da política e militarização dos hindus”(4), advogando, baseada na exclusividade cultural e religiosa hindu, a constituição de um Estado (o Hindustão), sem lugar para as comunidades não-hindus (muçulmanos, cristãos, parsís – aderentes do Zoroastrianismo persa pré-islâmico – e judeus) que representam um quinto da população indiana. O Rashtrya Swayamsevak Sangh (RSS) – União Nacional de Voluntários, de onde vem o nome das coortes Sangh – foi fundado em 1925 por K.B. Hedgewar e B.S. Moonje, inspirados na ideologia fascista italiana, como contrapeso político aos programas seculares e democráticos apresentados pelo partido do Congresso Nacional de Ghandi e Nehru. Foi um membro do RSS, Nathuram Godse, que em 1948 assassinou o Mahatma Ghandi pela sua “traição” ao aceitar a “Partição” do subcontinente indiano, provavelmente aliado ao “desrespeito” pela tradição hindu, promovendo a emancipação dos “Intocáveis” (os Dalit ou “oprimidos”), a quem garantiu a liberdade religiosa (artigos 25-28) e a ilegalização da discriminação baseada nas castas (artigo 17), consagrados na Constituição de 1949, cuja Assembleia Constituinte foi presidida por um dos mais respeitados e proeminentes Dalit, o Dr. B.R. Ambedkar.(5) Além do RSS, auto-intitulado de organização sociocultural hindu – tido como o think tank do movimento Hindutva – o Sangh Pariwar é composto pelo Vishva Hindu Parishad (Conselho Mundial Hindu), a frente activista, fortemente implantada nos EUA, o Bajrang Dal, a sua organização paramilitar juvenil e pólo aglomerador dos mais violentos Hindutvawadi, e o Janata Bharatya Party (BJP – Partido do Povo Indiano), frente politico-partidária do movimento, maior partido da oposição desde 1991 e partido maioritário do actual governo de coligação desde Março de 1998, liderado pelo primeiro-ministro e líder do BJP, Atal Behari Vajpayee. Na sua órbita movimentam-se ainda grupos extremistas como o Shiv Sena(O Exército de Deus, a frente mais declaradamente fascista do movimento), o Arya Samaj, o Hindu Jagran, o Jagriti Manch e os Sanskriti Raksha Samithis. Apesar da usual moderação provocada pela liderança de um governo, reforçado neste caso pelo facto de ser em coligação, é incontestável que o BJP ascendeu ao poder no início dos anos 90 numa onda de intolerância cultural e religiosa, incitada em proveito próprio, tendo como alvo os muçulmanos indianos e centrada principalmente na polémica em torno de Babri-Masjid, num corolário lógico ao seu chauvinismo civilizacional e à sua longa (e inacabada) história de incitamento à violência contra todos os não-hindus. L.K. Advani, presumível sucessor de A.V. Vajpayee na liderança do BJP (como ele ex-membro do RSS) e actual ministro dos Assuntos Internos – e como tal responsável pela aplicacção da lei e ordem em todo o território indiano – é apontado como instigador directo dos 20.000 hindus que, ao som de slogans como “o Hindustão para os Hindús” e “Morte aos Muçulmanos” provocaram os tumultos de Ayodhya em 1992, de onde resultaram para cima de 3.000 mortos e a destruição da mesquita de Babri-Masjid, tido pelos hindus como local onde existira o templo do nascimento de Rama (o Ramajanmasthan), uma das mais importantes divindades hindu. Apesar dos recentes confrontos (novamente) em Ayodhya, Vajpayee parece ter imposto alguma contenção. Mas não apenas a obtenção do poder explica a actual ‘moderação’ do BJP.
Os cristãos Sendo a comunidade muçulmana na Índia, em comparação com a cristã, maior, relativamente mais coesa e com um importante peso eleitoral nos Estados do norte – área de implantação principal do BJP – o partido do Governo, após ter utilizado o incitamento à sua eliminação como forma de se consagrar partido maioritário na região (desde 1990), estabeleceu uma paz podre (temporária) com a comunidade muçulmana. Mas como demonstram os acontecimentos de Ayodhya (Março 2002) esse chão dará uvas quando assim entenderem. Necessitando, ao bom tom fascista, de produzir outro inimigo que una os “verdadeiros” hindus, de apaziguar os mais extremistas de entre si – que levantam a voz contra a actual e aparente moderação – e de garantir a ancestral opressão das castas inferiores, o Sangh abriu uma nova frente na sua campanha: a perseguição sistematizada a cristãos, sejam eles missionários, indianos cristãos, recém-convertidos ou simples funcionários de instituições cristãs (escolas, colégios, universidades, centros de saúde, hospitais, etc.). Apesar do saldo das mortes não ser alarmante no contexto geral da violência comunitária, a realidade das comunidades cristãs e dos recém-convertidos é preocupante, tendo-se registado, de acordo com o Fórum Cristão Unido para os Direitos Humanos, 120 ataques a indivíduos, igrejas e escolas cristãs, apenas no segundo semestre de 2001. Assassinatos – veja-se o cruel destino do missionário australiano Graham Staines, há 30 anos a trabalhar com comunidades leprosas na Índia, e os seus dois filhos (8 e 10 anos)(6) – decapitações, tortura, violação de freiras e ocasionais linchamentos tornaram-se recentemente um padrão habitual, exacerbado pela demonização – e consequente exclusão social – de todos os que “negam” a sua “verdadeira” identidade indiana e rejeitam o hinduismo. De acordo com o arcebispo católico de Delhi, monsenhor Alan de Lastic, os extremistas hindus têm uma estratégia nacional para travar a influência cristã claramente mais pronunciada nos Estados onde o governo é de forte ideologia hindu (Orissa, Gujarat, Maharashtra e outros) e onde exista uma minoria cristã mas não demasiado numerosa, pelo que os cristãos de Goa e Kerala não têm vivido (por enquanto) o mesmo clima de perseguição. John Dayal, Secretário-Geral da União Católica Indiana, afirma que os ataques à comunidade cristã têm três frentes: ataques violentos (assassinato, tortura e violações) a padres e freiras; ataques e intimidação a evangelistas e missionários e dispersão de celebrações religiosas; intimidação e pressões de vária ordem sobre instituições cristãs (escolas, hospitais e igrejas), inclusive por parte das autoridades estaduais e municipais a nível legal e burocrático. Exemplo da estratégia anticristã são as recentes leis que estipulam a necessidade de obter permissão da polícia e magistrados locais para a conversão religiosa, donde resulta que muitos dos potenciais convertidos temem fazê-lo e que os que efectivamente se convertem não o declarem às autoridades, continuando assim oficialmente a ser considerados hindus. A explicação é simples: sendo a maioria dos convertidos de castas (varna)(7) inferiores, o facto de renunciarem ao hinduísmo significa perder o direito à “discriminação positiva”(8) (na obtenção de trabalho, no acesso à educação e habitação, etc.), ao invés dos Dalit Budistas, Jainistas e Sikh, abrangidos pela definição de hindu constante na Constituição. Sendo um “Intocável” facilmente reconhecível, o facto de oficialmente se converter ao cristianismo – passará a constar do seu BI –, irá piorar consideravelmente (se possível) a sua já degradada e humilhante vida, quer pelas repercussões sociais da renúncia ao hinduísmo, quer pela perda da protecção legal contra a discriminação.
Os “Intocáveis” Mas porquê esta perseguição a um grupo que representa apenas 2,4% da população indiana, contra 81% de hindus e 12% de muçulmanos? O problema reside nos potenciais convertidos. Com a noção de igualdade perante Deus, o cristianismo nega activamente a noção de castas – ao contrário do que acontece com a maioria dos indianos muçulmanos – tornando-o por isso atractivo às castas mais desfavorecidas, principalmente os Dalit e os “tribais”.(9) Concentrando-nos apenas nos Dalit (os “Intocáveis”), estima-se serem 225 milhões(10), aproximadamente 22% da população indiana (cerca de 27% num universo de 834 milhões de hindus), e que 3% (6,7 milhões de indivíduos) se converteram ao cristianismo, representando no entanto 50% dos recém-convertidos. Extrapolando: se os Dalit se convertessem em massa ao cristianismo, a população hindu passaria a representar pouco mais de metade da população indiana (contra os actuais 81%), e os cristãos um terço. Ou, numa perspectiva mais realista, se apenas metade dos Dalit se convertessem, os cristãos passariam a 13,25% da população, ultrapassando os muçulmanos (12%) no segundo lugar, atingindo mesmo assim uma “massa crítica” populacional potenciadora de um forte crescimento posterior desta comunidade, pois se os Dalit perfazem 50% dos recém-convertidos, significa que o apelo do cristianismo atrai igualmente outras castas e comunidades. Em consequência, os Hindutvawadis temem, compreensivelmente, um efeito de bola-de-neve que leve ao declínio populacional dos hindus e à erosão da sua rígida hierarquia social, dando razão aos que apelidam igualmente este movimento de “neobramanismo”(11). Mas, independentemente do desfecho desta nova etapa na história da “maior democracia do mundo” e apesar de todas as teorias culturais e religiosas “relativistas” legítimas, urge consciencializarmo-nos de que a realidade diária para 250 milhões de indivíduos, Dalit, Aadivasi e outros, é a de um brutal apartheid – pois é disso mesmo que se trata – desumano, injusto e cruel, bem pior que as arbitrariedades impostas às mulheres muçulmanas pelos taliban, que tanto chocaram as nossas sensibilidades “civilizadas”.
Informação complementar os Muçulmanos Os dados sobre os mortos em confrontos entre muçulmanos e hindus são impressionantes – estimando-se que desde 1990 tenham morrido mais de 30.000 apenas em consequência da disputa sobre Caxemira (ver texto neste Janus), excluindo os números relativos a actos de violência ‘comunal’ –, mas basta lembrar que em 1992, após a destruição da mesquita de Babri-Masjid (séc.XVI) em Ayodhya por fanáticos hindus, os distúrbios resultantes provocaram a morte de 3.000 pessoas, cerca de metade apenas em Mumbai (Bombaim), e que em Março de 2002 – de novo com Ayodhya como epicentro – provocou os distúrbios que levaram à morte de 58 hindus e cerca de 600 muçulmanos.
os “Sikhs” Estima-se que entre 1984 e 1995 tenham sido mortos para cima de 20.000 sikhs como resultado da repressão governamental indiana sobre as suas aspirações à elevação do Punjab a Estado da União – dentro da União Indiana –, ou, por parte dos mais intransigentes liderados por J.S. Bindranwale, de um Estado independente, o Khalistão (‘País dos Puros’). Só em 1984, de 5 a 7 de Junho, terão morrido perto de 1.000 sikhs, entrincheirados
no Darbar Sahib, o Templo Dourado de Amritsar (o local mais sagrado dos
sikhs), liderados por Bindranwale, resultante da ordem de Indira Ghandi
(primeira-ministra 1966-7, 1980-84) de tomar o templo pela força. Indira
foi assassinada, em Outubro do mesmo ano, por dois guarda-costas sikh,
provocando retaliações por parte da maioria hindu que levou à morte de,
aproximadamente, 3.000 sikhs.
|
|
|||||||