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No entanto, nas recomendações desta instituição não há referências à pobreza, à marginalização e à falta de opções de milhões de pessoas em países como o Paquistão, o Afeganistão ou o Egipto, ou à forma como a partir do desespero, podem apoiar ou passar a formar parte de redes e políticas contrárias ao Ocidente(2). Como nos filmes da saga Star Wars, a força regressou. Desde o 11 de Setembro acentuou-se no sistema internacional a tendência para a utilizar como método de enfrentar os problemas. Isto deixa em segundo lugar o Direito e a Cooperação. É o fim da complexidade: de um lado existem Estados párias e grupos terroristas; do outro lado, um Estado que lidera o mundo contra estes. O sistema multilateral é um instrumento secundário nesta guerra global contra o terrorismo, que a este se subordina ou se rejeita. O resto dos problemas e dos actores devem subordinar-se a este esquema, que é aceite tanto por numerosos governos como por grupos armados não estatais. Desta forma os avanços alcançados em problemas transnacionais como o meio ambiente, direitos humanos, comércio internacional e democratização, estão deslocados. Estas questões, todavia, devem abordar-se sob uma perspectiva crítica dos modelos de desenvolvimento, se se pretender obter maior segurança global a médio e longo prazo. Volta a considerar-se que a força é a melhor resposta para alcançar segurança e atingir objectivos políticos. Durante os anos posteriores ao fim da Guerra Fria, esta concepção de segurança, baseada na acumulação, modernização e eventual uso da força, tornou-se questionável tanto pelas críticas às armas nucleares e seu impacte, como pela necessidade de gerir cooperativamente problemas como a crise ambiental, necessidades alimentares, pobreza, narcotráfico, crises humanitárias e a vigência dos direitos humanos. Durante décadas discutiu-se a necessidade de fortalecer as instituições multilaterais. Paralelamente, a ideia de que a mudança social se podia atingir mediante a guerra de guerrilha deu lugar à necessidade de assumir a vida política não violenta, e assim aceite por grupos como os palestinianos da Fatah ou os zapatistas do México. Depois do desaparecimento do Pacto de Varsóvia, o aumento dos orçamentos militares dos países mais desenvolvidos não tinha uma orientação precisa e resultava num fardo para os Estados menos desenvolvidos. A OTAN passou uma década procurando uma ou várias missões novas e levou a cabo algumas no sentido de garantir acordos de paz (Bósnia) ou defender de forma selectiva comunidades ameaçadas ou que corriam risco de genocídio (Kosovo). O sistema internacional encontrava-se em 2001 num período de debate e de tensão. Por um lado estava a cooperação, a contratualização, o sistema de regime para defender bens comuns e o Direito, como instrumentos para alcançar a segurança. Por outro, a tendência para continuar com os esquemas realistas de equilíbrio de força da época da Guerra Fria. O presidente Bush Jr. tinha decidido, uns meses antes dos ataques terroristas acabar com o Tratado de Mísseis Antibalísticos (ABM – assinado em 1972), que coloca restrições ao desenvolvimento de certas armas entre a Rússia e os Estados Unidos – com o fim de activar o sistema de Defesa Nacional anti-Mísseis (NMD). Também manifestara que não assinaria o Acordo de Quioto (com o objectivo de reduzir as emissões contaminantes para a atmosfera) nem ratificaria a assinatura da adesão ao Tribunal Penal Internacional. A sua posição em relação ao mundo era a de reforçar o unilateralismo face ao multilateralismo moderado que Bill Clinton havia gerido. Em Outubro, Washington, com a colaboração de alguns aliados da OTAN, lançou um ataque sobre o Afeganistão que gerou um debate intelectual e político sobre se seria uma guerra justa ou injusta. Para lançar a ofensiva, contou com duas Resoluções do Conselho de Segurança da ONU e activou o Artigo V da OTAN, que obriga à solidariedade entre todos os membros da Aliança e iniciou a construção de uma coligação internacional. O governo dos Estados Unidos não interpretou os ataques de Setembro como um crime contra a humanidade mas uma guerra(3), que seria longa e teria muitas frentes políticas e geográficas, desde o Afeganistão e Iraque, até à Somália, passando pelas Filipinas, Indonésia, Singapura, Iémen ou Colômbia. No Verão de 2002, Washington discutia com os seus aliados, tentando criar um clima favorável a um ataque ao Iraque. Levantou as sanções económicas ou militares a Estados colaboradores, como o Paquistão, renovando os acordos de ajuda militar e de envio de assessores oficiais e grupos privados de segurança a diversos países onde existem movimentos considerados terroristas, como na Colômbia e Geórgia, sem condicionantes de respeito pelos direitos humanos. A guerra global de Washington foi rapidamente aproveitada pelos governantes autoritários. Desde o presidente corrupto Mugabe no Zimbabwe, até ao general Musharraff no Paquistão e o primeiro-ministro Sahron em Israel, todos se sentem amparados no discurso antiterrorista. O governo de Mugabe, assediado pela oposição e pelas críticas internacionais, declarou em Dezembro de 2001: “Nós também não distinguiremos entre os terroristas, os seus amigos e quem os apoiar”. Sharon afirmou: “Vocês estão em guerra contra o terror nos Estados Unidos. Em Israel estamos em guerra contra o terror. É a mesma guerra”. O novo presidente da Colômbia, Uribe, assume o poder em Agosto de 2002 com um discurso baseado em vencer a guerra às guerrilhas para depois negociar. Este tipo de discurso simplificador tem sérias implicações políticas, uma vez que elimina as possibilidades de negociação e de acordos e estimula todas as partes a utilizar a força. O militarismo exercido a partir do centro do sistema mundial tem impactes perigosos. O apoio reforçado outorgado ao Paquistão desde setembro produziu inquietação na Índia. Islamabad viu como levantavam as sanções que lhes haviam imposto anos atras por desenvolver o seu programa de armas nucleares e agora pode, novamente, comprar armas. Os graves incidentes em Caxemira e os confrontos entre a população hindu e muçulmana adquiriram o tom elevado da ameaça da guerra com armas nucleares. Washington e Londres trataram de mediar o conflito mas, simultaneamente, aproveitaram a diplomacia para vender armas. Os governos destes dois países, aliados aos de Israel, Rússia, França e África do Sul, lutavam desde princípios de 2002 por vender diferentes sistemas bélicos à Índia(4).A mesma política dupla tem o governo de Blair face a África. A venda de armas é um exemplo do perigoso pragmatismo de curto prazo que se prolonga em alianças como a que os Estados Unidos selaram com a China para combater o “terrorismo islâmico”, mas que é um apoio claro às políticas repressivas de Pequim na província ocidental de Xianjiang, na qual existe um movimento radical islamista da etenia dos uigures, tal como o apoio ocidental ao governo de Vladimir Putin na Rússia e o silêncio perante a sua guerra e as violações dos direitos humanos na Tchetchénia.
Acabar com o multilateralismo Mas para os Estados Unidos a catástrofe de Setembro reforçou as suas políticas unilateralistas e contrárias às leis internacionais. “A segurança do país não deve depender de nenhuma limitação exterior”, disse Condoleeza Rice, conselheira de Segurança Nacional do presidente Bush. Assim, para além de se recusar a ratificar a adesão e boicotar o Tribunal Penal Internacional em Julho de 2001, e de não apoiar o fortalecimento do Tratado Internacional sobre a Tortura, Washington anunciou que deixaria de apoiar os Tribunais Internacionais que estão a julgar os crimes contra a humanidade cometidos no Ruanda em 1994 e na ex-Jugoslávia nos anos 90. Por outro lado, Washington boicotou os acordos de proibição de armas de destruição massiva (biológicas e químicas), contra a proliferação nuclear, de limitação do comércio de armas de curto alcance, e pressionou para que funcionários internacionais como Mary Robinson, a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos e José Bustani, director da Organização para a Proibição das Armas Químicas, abandonem os seus cargos, entre outras medidas(5). Bloqueio à justiça internacional e limitações na esfera interna. Esta “nova guerra” tem, como a Guerra Fria, o controle policial e a espionagem em casa, somando-se-lhe os tribunais especiais, as detenções ilimitadas, um governo paralelo e secreto, a possibilidade de utilizar países terceiros para torturar prisioneiros da rede Al- Qaeda(6) e um controle maior sobre os refugiados e a imigração(7). O jurista Aryeh Neyer afirma que, ao militarizar a justiça, o governo deslegitimiza o sistema legal democrático e retira os argumentos aos Estados Unidos quando criticam outros países que ponham em funcionamento tribunais especiais arbitrários(8). O governo de Bush está, para além disso, a colocar sérios obstáculos à obtenção de informação oficial, tanto do passado como do presente. A Grã-Bretanha seguiu, em parte, a mesma tendência de controle social interno. Na União Europeia, a situação dos quase 10 milhões de muçulmanos radicados em França, Alemanha e Grã-Bretanha, entre outros países, tornou-se mais instável, transformando-os em cidadãos sob suspeita. Enquanto os Estados Unidos aumentaram o seu orçamento militar, nos últimos 20 anos os seus orçamentos para ajuda e cooperação internacional diminuíram, fortalecendo, por outro lado, os seus mecanismos comerciais proteccionistas. O orçamento para ajuda estimado para 2003 é de aproximadamente 750 milhões de dólares, mas 500 milhões destinam-se a treino militar e 52 milhões à construção de um centro de formação antiterrorista.(9) O militarismo regressou e manifesta-se de formas diversas, dos Direitos Humanos ao comércio, difundindo globalmente o medo e a paixão pela guerra. Mas os verdadeiros desafios que geram a violência estão a pôr-se de lado.
Informação complementar Grupos armados não estatais A Guerra Fria foi uma confrontação entre Estados e alianças militares estatais que tinham diferentes formas de conceber a organização das suas sociedade e do resto do mundo. Na fase actual, diferentemente, trata-se de um conflito disperso, sem localização geográfica, no qual se encontram, de um lado, os Estados Unidos e os seus aliados, e do outro, grupos não estatais, como a rede Al-Qaeda. Ainda que os Estados Unidos tenham travado a sua primeira batalha da nova época no Afeganistão, este não era um Estado constituído, mas um território fragmentado, sem coesão institucional ou social, que estava ocupado pelos talibans e pelas forças de Osama Bin Laden. Os grupos armados não estatais estão a converter-se em actores importantes do sistema internacional. Os senhores da guerra na Somália, Serra Leoa ou Afeganistão; os paramilitares e guerrilheiros na Colômbia; os grupos armados criminosos nas favelas do Brasil e as formações palestinianas radicais; os Tigres Tamil no Sri Lanka e os paramilitares sérvios e croatas, entre muitas outros, têm capacidade para desestabilizar e corromper sociedades, incorporar jovens sem opções e implicar-se em actividades económicas ilícitas. Quando, para além disto, estes grupos adoptam discursos de identidade – religiosa, étnica ou nacional – a violência serve como instrumento de legitimidade exclusiva/que exclui. À medida que os Estados frágeis se desintegram e desaparece o princípio básico do monopólio legítimo do uso da força por parte do Estado, multiplicam-se os grupos não estatais armados. Por sua vez, em alguns Estados centrais e ricos do sistema internacional, começa a debater-se a possibilidade de usar empresas de segurança privada para realizar algumas missões, como por exemplo, de manutenção da paz. A guerra do Afeganistão tem mostrado que os grupos não estatais podem resistir a uma guerra directa contra forças convencionais dotadas de armas sofisticadas e levar a cabo actos terroristas difíceis de prevenir contra os Estados Unidos e outros países centrais .
A Europa a reboque de Washington? Apesar de a Europa ser uma potência mundial, os Estados Unidos actuam face a esta unilateralmente, impondo as suas políticas. Nas sucessivas guerras e crises humanitárias dos anos 90 – desde a Somália até ao Afeganistão – a Europa demonstrou a falta de um critério comum; dependeu dos Estados Unidos para tomar decisões e foi marginalizada em processos em que deveria ter participado, tanto no Acordo de Dayton para a Bósnia, como no processo de negociação entre Israel e a Palestina, e nas respostas armadas e não armadas que se dão relativamente aos grupos e Estados implicados nos atentados de Setembro passado. O aumento do orçamento militar (de 48.000 mi-lhões para 379.000 milhões de dólares) decidido, em Fevereiro pelo governo de Bush, confirmou aos aliados europeus que a tendência será para o unilateralismo e que espera destes o apoio e a parti-cipação na sua nova guerra anti-terrorista. Quando chegar a altura, os europeus que se ocupem dos processos de reconstrução pós-bélica. Da mesma forma a Casa Branca indicou aos seus aliados que prosseguirá com o sistema antimísseis, agrade ou não à Europa. Este sistema é muito questionado: tecnicamente duvida-se da sua eficácia e politicamente da sua necessidade. A sua razão seria económica e de poder simbólico. O aparente dilema da Europa é o de aumentar os orçamentos de defesa para tentar equilibrar a si-tuação de poder com os Estados Unidos ou submeter-se. Esta não é, no entanto, a única opção, já que a UE e os países do continente podem desempenhar funções distintas, por exemplo, nos campos da ciência, tecnologia, comércio e diplomacia. Em particular, a Europa pode reforçar os instrumentos jurídicos multilaterais, realizar importantes tarefas de prevenção de conflitos através da cooperação internacional e de gestão dos mesmos, através do seu prestígio e peso diplomáticos. Igualmente pode promover acordos regionais de cooperação e projectos de reconstrução pós-bélica para fortalecer as instituições da sociedade civil em Estados débeis. Tudo isto, para além de competir no plano económico, pode ser levado a cabo sem a necessidade de se igualar a Washington em políticas de força. É precisamente a experiência europeia de conciliar interesses entre diversos Estados que pode servir de base a uma política exterior que não se baseie em ser uma superpotência, mas um mo-delo de cooperação pacífica.(10) O Comissário da UE para os Assuntos Exteriores, Chris Patten, conferenciou
com o secretário de Estado Colin Powell em Fevereiro de 2002. O funcionário
europeu indicou que a guerra no Afeganistão talvez tenha “reforçado alguns
instintos perigosos, por exemplo, que a projecção do poder militar seja
a única base para contar com verdadeira segurança; que os Estados Unidos
podem não se apoiar em mais nada a não ser em si próprios; e que os aliados
podem ser úteis como uma opção acessória”. Patten considera que os Estados
Unidos e os aliados devem ocupar-se “das partes mais obscuras da globalização”
como a pobreza, o tráfico de pessoas e os regimes autocráticos.(11)
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