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Janus 2003



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O escudo antimíssil

Elisabete Palma *

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O desenvolvimento de um sistema antimíssil assume novos contornos com a tomada de posse da administração de George W. Bush em Janeiro de 2001. Em declarações proferidas na Universidade de Defesa Nacional em Washington, em Maio de 2001, o presidente identificou o estabelecimento de uma rede de sistemas antimíssil como uma das cinco prioridades do seu mandato. George W. Bush justifica esta opção estratégica com base na necessidade de aplicação de um novo conceito de dissuasão, que assenta na ideia de que a proliferação de mísseis de longo alcance coloca em risco a liderança mundial dos EUA.

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Com os ataques de 11 de Setembro, a política de defesa norte-americana, então já em processo de revisão e tema de um grande debate orçamental no Congresso, assume novos contornos.

A alteração mais significativa é a identificação da protecção do território nacional – negligenciada pelo menos durante os últimos dez anos – como a primeira prioridade. Neste novo contexto, o programa de defesa nacional contra mísseis balísticos (MD – Missile Defense) torna-se um dos principais protagonistas.

 

R. Reagan e a “Guerra das Estrelas”

”O MD tem as suas origens na Iniciativa de Defesa Estratégica (IDE), proposta no contexto do conflito Leste-Oeste e anunciada a 23 de Março de 1983 pelo então presidente Ronald Reagan (1980-1988): “Incito a comunidade científica do nosso país, aqueles que nos deram armas nucleares, a canalizar agora os seus enormes talentos para a causa da humanidade e da paz no mundo: a dar-nos meios de tornarmos essas armas nucleares impotentes e obsoletas”(1).

A concretizar-se, a instalação de um escudo de protecção contra mísseis balísticos, um sistema defensivo que deveria tornar obsoletas as armas ofensivas nucleares, interceptando-as e destruindo-as antes de atingirem o solo dos EUA, eliminaria tudo aquilo por cuja realização a União Soviética se empenhara – a URSS era então a primeira potência militar do globo a nível das armas atómicas, constituindo o seu arsenal nuclear o suporte do estatuto de superpotência. Uma defesa eficaz do território norte-americano contra os mísseis soviéticos faria desmoronar a teoria vigente da destruição mútua garantida, que baseava a defesa de ambas as superpotências na ameaça do suicídio. Com a IDE, um primeiro ataque americano poderia ter sucesso, uma vez que o seu sistema defensivo seria capaz de conter a força de mísseis soviéticos que tivessem sobrevivido.

Apesar dos custos do programa (26 mil milhões de dólares) e da inovação tecnológica que pressupunha, os dirigentes soviéticos viram-se obrigados a levar a sério o potencial tecnológico americano e o impacte estratégico que tal defesa, mesmo que imperfeita, teria.

O desafio colocado pela “guerra das estrelas” de Reagan revelar-se-ia demasiado elevado para a economia soviética, já sobrecarregada e estagnada, constituindo assim um importante golpe estratégico no que viria a ser o posterior desmoronamento da URSS.

 

A herança Reagan

O fim da ameaça soviética, a nova conjuntura internacional (que permite, fundamentalmente ao nível do hemisfério norte, uma certa desnuclearização, o controle de armamentos e a redução geral das despesas com o armamento), o estatuto dos EUA como única superpotência e a nova estratégia daí decorrente – projecção do poder norte-americano nas regiões do globo onde se encontram os seus aliados e interesses políticos, económicos, energéticos e militares –, os volumosos custos orçamentais e as enormes dificuldades tecnológicas inerentes à construção de um sistema antimíssil, acabariam por tornar o desenvolvimento da IDE menos premente.

O envolvimento dos EUA na Guerra do Golfo (1991), já com George Bush como presidente (1988-1992), transfere a prioridade para a defesa antimíssil de baixa e média altitude e a administração Clinton (1992-2000), logo no decorrer do primeiro mandato, assegura, num encontro entre o presidente norte-americano e o seu homólogo russo, Boris Ieltsine (Vancouver, 3 e 4 de Abril de 1993), que, tendo em conta a alteração da “ameaça” e as necessidades orçamentais, os EUA renunciariam à IDE, optando por um programa antimíssil menos ambicioso, do tipo “midcourse defense”, capaz de destruir os mísseis no espaço.

 

George W. Bush e a MD

A temática do desenvolvimento de um sistema antimíssil assume novos contornos com a tomada de posse de George W. Bush (Janeiro de 2001), que identifica como uma das cinco prioridades da sua administração a investigação, desenvolvimento, teste e construção de uma sofisticada rede de sistemas antimíssil. Para o presidente,

trata-se da altura apropriada para “(...) o mundo repensar o impensável e para arranjar novas maneiras de manter a paz.

O mundo de hoje precisa de uma nova política, uma estratégia alargada de não-proliferação activa, contra-proliferação e defesas. Precisamos de novos conceitos de dissuasão assentes em forças defensivas e ofensivas. A dissuasão não pode continuar a assentar apenas na ameaça da retaliação nuclear (...)”(2).

Dois dos principais argumentos por detrás desta tese resultam dos riscos inerentes à proliferação de mísseis de longo alcance. Com a actual lógica de dissuasão, países como a Coreia do Norte podem efectivamente atacar os EUA.

As probabilidades são reduzidas, mas é uma hipótese a ponderar na sequência de um acidente ou da queda do regime, circunstância em que os dirigentes penalizados podem decidir ripostar sobre os EUA. O outro argumento, mais racional, é o receio de que, não sendo passível de supervisão total, a proliferação daquele tipo de mísseis se torne uma ameaça à liderança mundial americana. Mais uma vez, países como a Coreia do Norte não precisam de usar esse armamento para que possam tirar proveito da sua posse.

Podem utilizá-lo de forma coercitiva. Mesmo Washington não cedendo à chantagem, aumentam consideravelmente as dúvidas dos países aliados e amigos sobre o real cumprimento das garantias de segurança por parte dos EUA. Trata-se de uma situação que mina os interesses americanos em todo o mundo e que coloca em perigo a segurança americana.

A questão do desenvolvimento de um sistema defensivo do território norte- americano contra ataques com mísseis de longo alcance não é, contudo, e desde 1983, pacífica. O seu efeito desestabilizador, ao fazer perigar o princípio da dissuasão mútua, a sua não exequibilidade, a possibilidade de saturação do sistema ou a falta de incentivos para a defesa dos aliados europeus, são alguns dos argumentos apresentados pelos seus críticos – políticos, chefes militares e cientistas, internos e externos. A estes motivos, mais antigos, juntam-se outros, mais recentes, como o risco que significa para as relações com a Rússia, o antagonismo que pode provocar por parte da China, o crescente isolamento dos EUA ou o facto de não se adaptar às realidades e ameaças reais da actualidade.

 

Os efeitos de 11 de Setembro

Apesar da rede de sistemas antimíssil constituir uma prioridade na agenda de G.W. Bush, aqueles e outros argumentos levariam mesmo a que no início de Setembro de 2001, Carl Levin, presidente do Comité das Forças Armadas do Senado, obtivesse o apoio dos treze democratas com assento naquele órgão para reduzir o orçamento de 8,3 mil milhões de dólares da defesa antimíssil proposto pela administração.

Com os atentados de 11 de Setembro, a maré favorável aos opositores – pelo menos políticos – do programa é silenciada. Face à enormidade dos danos provocados e à percepção da vulnerabilidade do território norte-americano, tornou-se muito difícil erguer a voz contra medidas que visam evitar um eventual ataque com mísseis nucleares ou mesmo transportando armas químicas ou bacteriológicas. As palavras de Donald H.

Rumsfeld, Secretário de Estado da Defesa, reflectem o sentimento generalizado da população: o recurso a aviões civis não diminuiu a necessidade de desenvolver a MD, uma vez que “se (os terroristas) tivessem mísseis balísticos e armas de destruição maciça, penso que ninguém duvidaria que eles as teriam usado”(3).

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Que MD?

Em 2 de Janeiro de 2002, é criada a “Missile Defense Agency” (MDA), visando a integração, num mesmo programa, dos projectos de desenvolvimento de sistemas TMD e NDM.

A implementação do programa versa a concepção, desenvolvimento e teste dos elementos de um sistema integrado de defesa, o BMDS (“Ballistic Missile Defense System”). Para tanto, em 13 Junho de 2002, os EUA revogaram o Tratado ABM de 1972, instrumento jurídico que impedia o desenvolvimento, teste e montagem de defesas efectivas contra ataques de mísseis.

O sistema será capaz de interceptar os mísseis, uma vez lançados, em três níveis, implicando três tipos distintos de defesa: “boost phase defense” ou fase de aceleração, em que o míssil é destruído nos primeiros minutos de voo, “midcourse defense”, em que o míssil é destruído a grande altitude, muitas vezes fora da atmosfera (“upper-tier”), e “terminal defense”, em que a intercepção se dá na fase final do voo, após a reentrada do míssil na atmosfera (“lower-tier”).

Em 16 de Junho, em Fort Greeley, no Alasca, os EUA deram início à construção de um centro de testes para o BMDS, composto por seis silos subterrâneos de mísseis interceptores, no caso concreto, a grande altitude (“Ground-based Midcourse Defense System”). Embora na sua fase inicial venha a ser utilizado para testes, o Pentágono pretende que, em Setembro de 2004, Fort Greeley (cujo custo total previsto é de 325 milhões de dólares) funcione já como um sistema de emergência antimíssil.

Ao contrário da IDE e do sistema proposto pela administração Clinton, o BMDS, porque capacitado para interceptar o míssil inimigo nos primeiros minutos de voo, está vocacionado para a defesa não só dos EUA, como dos seus aliados e de qualquer outro Estado/território que aqueles entendam proteger. Aliás, a destruição do míssil na sua fase de aceleração impede mesmo a identificação do seu destino/alvo final. Daí que a administração G.W. Bush tenha optado pela utilização da expressão “defesa antimíssil”, querendo com isso significar que o sistema que pretende desenvolver não se limita ao território nacional dos EUA.

 

Outras considerações

Apesar de politicamente o 11 de Setembro tornar o BMDS imparável (a curto prazo pelo menos), as avultadas somas implicadas não constituem garantia de protecção contra um novo ataque com características similares, uma vez que o sistema não protege a população contra aviões desviados das linhas comerciais americanas ou malas carregadas com armas nucleares. A vulnerabilidade do território em termos de ataques com recurso às “bombas curtas” – contra pontes, túneis, refinarias, centrais eléctricas e nucleares, etc. – constitui igualmente uma preocupação cuja resposta assenta na mais radical reorganização dos serviços de segurança desde 1947, através da criação de um Departamento de Segurança Nacional.

O novo Departamento unificará o conglomerado de organismos e agências, entre eles os Serviços de Imigração, Alfândegas e Guarda Costeira, e passará a processar a informação antiterrorista elaborada pela CIA e FBI. Terá como missão assegurar a chamada “homeland defense” – protecção de portos, aeroportos, fronteiras, equipas de reacção rápida, desenvolvimento de vacinas, serviços de informação, etc. Será, em resultado, interessante acompanhar a coexistência destes dois patamares de defesa, na medida em que, no caso do BMDS, só o “Ground-based Midcourse Defense System”, que, para além de Fort Greeley, inclui também uma sofisticada estação radar “X-band” nas ilhas Aleutas e um novo sistema de satélites de detecção de lançamentos, as previsões de custo apontam para 64 mil milhões de dólares e, a nível da Segurança Nacional, falamos de um orçamento anual de 37 mil milhões de dólares.

Paralelamente a estas limitações defensivas, subsistem enormes dificuldades tecnológicas no desenvolvimento do BMDS, como aliás a situação dos programas de baixa e média altitude deixa transparecer. Actualmente, a defesa antimíssil de baixa altitude norte-americana é assegurada pelo PAC-3, uma versão entregue aos militares em 2002 de um programa com mais de 30 anos. Ao nível da defesa de média altitude, prevê-se que só em 2007/2008 esteja disponível um programa totalmente novo.

Na vertente externa, as atenções centram-se no impacte do BMDS na actual lógica de dissuasão. A resposta – reforço ou fragilização – depende da dimensão e do grau de eficácia do sistema assim como daqueles a quem se destina. O objectivo declarado do sistema é a defesa contra um número limitado de mísseis nucleares provenientes de Estados como a Coreia do Norte. Washington pretende com este sistema eliminar a destruição mútua como estratégia.

Porém, apesar da sua vocação e das tentativas por parte da administração norte-americana no sentido de tranquilizar os seus parceiros, o BMDS continua a suscitar dúvidas ao nível da garantia ou não das responsabilidades de defesa assumidas por Washington relativamente a países aliados e amigos.

O caso da Europa da UE é particularmente interessante na medida em que esta está em tudo dependente de Washington – a sua segurança, nos últimos cinquenta anos, tem sido baseada no pressuposto de que os EUA estão presentes para garantir as funções centrais necessárias à sua defesa. Por outro lado, persistem os receios de que o BMDS origine uma nova corrida aos armamentos e, nomeadamente, um aumento dos níveis de armas nucleares na China e no sul da Ásia em geral. Há, contudo, que fazer notar que países como a Índia, o Paquistão ou a Coreia do Norte têm vindo a desenvolver as suas capacidades em termos de mísseis, mesmo na ausência de tal programa. De referir igualmente que a implementação do BMDS, nos moldes em que está previsto, pode acarretar riscos a países terceiros. Referimo-nos aos riscos decorrentes da intercepção dos mísseis na fase de aceleração, ainda que com efeitos claramente diminutos se comparados com a detonação no alvo nos casos de armas químicas, nucleares ou biológicas.

__________
1 “Reagan proposes U.S seek new way to block missiles”, in The New York Times, 24 de Março de 1983, p. 20, in Henry Kissinger, Diplomacia, Gradiva, Lisboa, Março de 1996, p. 679.
2 Discurso de George W. Bush na National Defense University (Washington, DC), Maio de 2001.
3 Donald H. Rumsfeld, “News Transcript from the United States Department of Defense. DoD News Briefing, Secretary of Defense Donald D. Rumsfeld”, 25 de Outubro de 2001.

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* Elisabete Palma

Licenciada em Relações Internacionais pela UAL.

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