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- JANUS 2003 -

Janus 2003



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Multiculturalidade e multiculturalismo no pós–11 de Setembro

João Maria Mendes *

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Multiculturalidade e multiculturalismo eram termos relativamente novos nos vocabulários da ética e da filosofia política, adquirindo novos contornos, em consequência das alterações provocadas pelos atentados de 11/09.

Estados como a França e a Grã-Bretanha, que sempre albergaram grandes comunidades islâmicas, têm vindo a reformular as suas relações com estes grupos, atingindo-se nalguns casos situações de “demagogia securitária”. A Europa não pode escapar à multiculturalidade, mas tomou consciência que no seu caldo de cultura se podem apoiar os mais diversos extremismos.

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Multiculturalidade e multiculturalismo eram termos relativamente novos na ética e na filosofia política, quando se entrou na nova época das relações internacionais marcada pelos atentados de 11 de Setembro de 2001. Multiculturalidade designava um estado de coisas onde um conjunto de populações de diversas origens étnicas, religiosas, raciais, nacionais, coabitam num mesmo território; multiculturalismo designava uma política ou um conjunto de políticas específicas que têm por objectivo gerir essa coexistência ou coabitação, desconflitualizando-as.

Pertenciam ao vocabulário de um mundo relativamente “feliz”, anterior ao desafio que o 11 de Setembro representou.

A retórica que lhes estava associada, e os autores que a cultivavam, eclipsaram-se dos media ocidentais ao longo de 2002. Das páginas de opinião e de debate, a questão multicultural emigrou para as páginas dos casos de polícia, transformada em dano colateral da guerra contra o terrorismo. Ao longo do último quartel do século XX, foi sobretudo na UE que ganharam peso as questões de governança suscitadas pela coexistência de populações muito diversas nos mesmos territórios, devido à crescente importância dos movimentos migratórios convergentes (de Sul para Norte e de Leste para Oeste) e à necessidade/capacidade revelada pela Europa para aceitar um número cada vez maior de imigrantes.

Portugal, país tradicionalmente exportador de emigrantes, não escapou à nova tendência: primeiro acolhendo mão-de-obra oriunda das suas ex-colónias africanas, depois absorvendo o novo afluxo de brasileiros e de trabalhadores do Leste europeu. Ainda desconhece a pressão magrebina, que se exerce sobretudo sobre o Sul espanhol e francês.

 

Proliferação de Estados

A multiculturalidade, fenómeno típico de grandes metrópoles urbanas fortes, sobrepôs-se a um pano de fundo dominado pela proliferação de Estados, na sua maioria fracos, e pela reivindicação de reactivadas identidades nacionais: nos anos 90 do séc. XX, esse pano de fundo foi dramatizado, na Europa, pelas consequências do desmantelamento do Estado soviético (criação, no território da antiga URSS, de 15 Estados, e posterior explosão da federação jugoslava em seis entidades nacionais).

O fenómeno não é particularmente novo nem europeu: a proliferação de Estados atravessou todo o séc. XX, desde o desmantelamento dos impérios austro-húngaro e otomano até ao surgimento de meia centena de Estados africanos resultantes da descolonização. Na Ásia ocorreu fenómeno semelhante. A seguir às descolonizações, a maioria dos novos Estados foram gerados por secessão, em confrontos violentos. A separação pacífica da República Checa e da Eslováquia é excepção, mas exprime um novo fenómeno – os ricos querem ver-se livres dos “seus” pobres para poderem enriquecer mais: os checos só se desfizeram dos eslovacos quando perceberam que, ao fazê-lo, melhoravam a sua candidatura à UE.

No que toca ao mundo islâmico (hoje um quinto da população mundial), o 11 de Setembro enfatizou um problema menorizado pelo multiculturalismo: nos EUA como na UE, os imigrantes provenientes do mundo islâmico, a começar pelos árabes, passaram a ser vistos como potenciais extremistas religiosos e/ou políticos, suscitando medo.

Países onde a população islâmica constitui uma componente relevante desde há três ou mais décadas, como a França ou a Grã-Bretanha, tomaram subitamente consciência de que o labirinto de interesses islâmicos com que conviviviam albergava impunemente o microcosmos do extremismo islamista armado.

 

França

A questão do uso do chador nas escolas públicas francesas incendiou uma década de polémicas em torno dos deveres do Estado laico, da tolerância pelas identidades, do respeito pelo “outro” e pelo “diferente”. Toda uma cultura de centro-esquerda alimentou-se, desde os anos 70, e entre outras, destas ideias.

A seguir ao 11 de Setembro, e pela primeira vez, o Estado francês apressou-se a “judiciarizar” as suas relações com a sua população de origem islâmica, e, através desta, com o conjunto das populações imigrantes. Promulgada a 15 de Novembro de 2001 no quadro da luta contra o terrorismo, a “Lei sobre a Segurança Quotidiana”, por exemplo, foi imediatamente criticada como “liberticida” pelo Sindicato francês da Magistratura, por muitas das suas disposições poderem ser arbitrariamente aplicadas. Visada, também, a “demagogia securitária” da lei, descrita como “fábrica de ódio”.

A lei em questão previa, por exemplo, penas de seis meses de prisão para os utentes de transportes colectivos não munidos de bilhete, e reforçava as medidas de segurança nos espaços públicos dos edifícios – atingindo em primeira linha comportamentos dos jovens das banlieues, sobretudo oriundos da imigração.

É apenas um exemplo da mudança de política: o Estado francês, que hesitou sobre os limites da laicidade na questão do chador, deixou de entender a especificidade cultural imigrante como algo que deve ser reconhecido e respeitado até ao ponto de se admitir a prática da charia em bairros maioritariamente islâmicos. Se o Estado é francês, laico e republicano, porquê prescindir do suporte jurídico-político dessa identidade a favor de uma “comunitarização” teocrática, não só da moral e dos costumes, mas também do direito, da educação e da saúde pública, por exemplos? Sinal dos tempos: em França, a tendência jurídica para a comunitarização destes domínios, em detrimento da autoridade do Estado, quase desapareceu depois do 11 de Setembro. A tolerância de uns tem como limite a intolerância dos outros.

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Grã-Bretanha

Na Grã-Bretanha, mais tolerante do que a França com a sua população muçulmana, Londres, desde há vinte anos capital do islamismo internacional, descobriu-se subitamente como um Londonistan, invadido por 4.000 organizações caritativas e 50 bancos islâmicos, e por onde tinham passado metade dos kamikazes do 11 de Setembro.

Toda a actividade de oriundos do Islão passou a estar sob maior atenção policiária – e a interacção entre polícias e sistemas jurídicos nacionais disparou com esse objectivo (no âmbito da Europol e Eurojust, e sua articulação com as autoridades dos EUA).

A polícia britânica distingue, no vasto e diverso mundo do extremismo islâmico, sobretudo três tipos de suspeitos: os membros activos da Al-Qaeda, em princípio não-residentes no país; os simpatizantes da organização, que podem ter recebido formação terrorista (caso de Abu Qatada, ou Abu Doha, argelino detido em Londres e depois desaparecido); e os solitários imprevisíveis (Richard Reid, o homem dos explosivos nos sapatos). Enquanto, porém, os franceses “judiciarizaram” os extremistas, e com eles o conjunto da população islâmica e imigrada, os britânicos têm preferido “santuarizá-los”, deixando ao activismo islamista o espaço vital sem o qual ele facilmente adopta a clandestinidade.

O Londonistan herda o modelo afegão do salafismo jihadista, popularizado nos anos 80 pelo palestino Abdallah Azzam, mas também é caracterizado pela diversidade e pela ausência de liderança reconhecível. Bin Laden e o tchecheno Ibn Khattab são líderes transnacionais típicos do salafismo jihadista. Precisaram cada vez mais de extensões no Ocidente para consolidarem a sua rede financeira e o “caldo de cultura” que protege a jihad (a colecta do zakat, imposto muçulmano obrigatório, atinge na Grã-Bretanha os 4,5 milhões de euros/ano, a que se juntam as receitas do sadaqa, donativos voluntários).

O mujaedine árabe de hoje, e seus émulos, é um combatente profissional apátrida, formado no espírito do campo de treino afegão, e que muda indiferentemente de teatro de operações, lutando na Bósnia ou na Tchetchénia, no Kosovo, Uzbequistão ou Caxemira. Poucos deles são imigrantes de segunda geração, nascidos numa das metrópoles europeias onde o Islão é expressivo. No entanto, mais de 500 muçulmanos terão trocado o Reino Unido pelos campos da Al-Qaeda no Paquistão e no Afeganistão, nos últimos anos da década de 90.

 

Duas estratégias

Para Dominique Thomas, estudioso do extremismo islâmico, o Londonistan de hoje resulta do compromisso entre duas estratégias: “uma tende a consolidar oposições políticas no exílio aos regimes muçulmanos, em primeiro lugar árabes; a outra, a garantir a retaguarda das jihads armadas internacionalistas”.

A primeira é representada por homens como o dirigente egípcio do Observatório Islâmico Internacional, Yasser Tawfiq’Ali As-Sirri, o sunita iraniano Abu Muntassir Al-Baluchi ou os sauditas Saad Al Faquih e Mohammed Al-Mas’ari. Inclui activistas de grupos como os Irmãos Muçulmanos egípcios ou a Comunidade Argelina da Grã-Bretanha, que apoia a FIS.

A segunda exprime a dimensão internacionalista da jihad: trabalha para a revolução islâmica mundial sem distinguir comunidades, entendidas como prejudiciais à umma islamiyya (a comunidade muçulmana global).

A guerra pela Palestina é de primeira grandeza simbólica, mas, depois dela, as prioridades são circunstanciais. Segundo Thomas, todos os predicadores importantes do Londonistan (de Abu Hamza Al-Masri a Abu Qatada e a Omar Bakri) defenderam sucessivamente as causas islamistas da Argélia, Bósnia, Tchetchénia e Caxemira. A base logística exilou-se, não se desterritorializou. A jihad, sim.

Para os salafistas jihadistas, o Afeganistão taliban era o melhor exemplo de guerra santa bem sucedida, ponto de partida concreto do novo califado expansionista e modelo da comunidade islâmica unificada pela charia – modelo destinado a conquistar todo o mundo infiel.

A mudança de regime em Cabul, pela força das armas, não é, para eles, senão uma batalha perdida, mais um episódio da longa guerra de restauração contra a “humilhação islâmica”.

 

Pesadelo geopolítico

O mundo do século XX foi marcado, por um lado, pela tendência para a proliferação de novos Estados (eles são hoje cerca de 200), e, por outro, pela actividade de internacionais ideológicas que, precisamente, se sobrepunham à autoridade do Estado-Nação. O império soviético foi, a esta luz, o exemplo vivo da territorialização expansiva de um modelo societário imposto a “povos-detritos” (a expressão é de François Thual), esmagando a emergência de conflitos identitários.

A aceleração da tendência para a criação de novos Estados, na era pós-soviética, acentuou o regresso das guerras identitárias que têm sido o objecto principal da gestão de crises da última dúzia de anos. A subsequente globalização, mais notória em metade do hemisfério Norte do que mundialmente, deixou parte do mundo mais entregue a si própria – como mostraram os massacres no Ruanda (característicos da África pós-colonial, onde as nações são, antes de mais, conglomerados étnicos) e a lentidão da ONU na tentativa de os travar.

O que veio substituir as antigas internacionais ideológicas? Se, como sublinham numerosos autores, o “fim das ideologias” abriu as portas ao “regresso das religiões”, então a internacional jihadista islâmica é a primeira expressão dessa substituição, incrustada numa espiral de conflitos cujo cerne é a questão palestiniana, que se alarga à questão árabe, que por sua vez se alarga ao revanchismo da umma islamiyya. A internacional jihadista só desterritorializou a sua guerra para restaurar o sonho do antigo califado expansionista; a sua alma é, precisamente, o conflito identitário, o ressarcimento de uma nação humilhada – o Islão salafista sem fronteiras.

A Europa da UE é, por definição, um território multicultural – quase tão assumidamente como os próprios EUA. Mas a Europa do mundo pós-soviético e em vias de globalização acentua essa multiculturalidade, por via do seu próximo alargamento e das novas migrações que tornam mais complexo e tendencialmente mais conflitual o seu melting pot humano. À semelhança dos EUA, a Europa não pode escapar à multiculturalidade, mas passou a saber que ela constitui o caldo de cultura onde se apoiam os extremismos da mais diversa natureza.

Associado à proliferação de novos Estados fracos, demasiado expostos à deriva política, e ao explosivo bloqueamento social e político do mundo árabe, este é, sem dúvida, um dos principais pesadelos do Ocidente desenvolvido no princípio do século XXI.

O pano de fundo da questão demográfica e multicultural é adensado por previsões que o JANUS já referiu na sua edição de 2002: a Divisão de População da ONU divulgara então um relatório, “Migrações de substituição: uma solução para as populações envelhecidas e em declínio”, onde se afirmava que, para manter o actual equilíbrio médio de quatro a cinco activos por cada reformado, a UE terá de receber, até 2025, 159 milhões de trabalhadores imigrados (contra 150 milhões, no mesmo período, a receber pelos EUA). Joseph Chamie, primeiro responsável do relatório, afirmava, no momento da sua divulgação: “Trata-se de números politicamente inaceitáveis para os europeus, mas, quando o problema é grande, mais vale enfrentá-lo sem hesitações: na Europa em especial, as populações estão a envelhecer a um ritmo alarmante, e as consequências socioeconómicas deste facto obrigam à reflexão”.

 

Informação complementar

Negociações UE–EUA dificultadas pelos direitos fundamentais

Um ano depois do 11 de Setembro, a ONG Statewatch garantia que os governos europeus desenvolviam “negociações secretas” com os EUA a coberto da cooperação antiterrorista, sem controlo democrático. A informação foi desmentida em Bruxelas e Washington, mas tudo indica que tais negociações existiam: “A haver acordo, e portanto tratado, ele será obrigatoriamente submetido ao Congresso americano e ao Parlamento Europeu”, comentou o Departamento de Estado. “As negociações resultam do mandato concedido pelo Conselho Europeu de 21.09.2001” – admitiram fontes da UE. Os Quinze decidiram ali acelerar a instituição (entre eles) de um espaço “de liberdade, segurança e justiça” e “intensificar a cooperação com os seus parceiros, em especial com os EUA”. Na mesa estava a preparação do acordo sobre cooperação penal em matéria de terrorismo, que substituísse os acordos bilaterais existentes entre Washington e cada um dos países da UE, e de um “interface operacional” com os EUA incluindo a criação do mandato de captura europeu, a definição comum do crime de terrorismo, a implementação da Eurojust, etc. Os Quinze insistiam com os EUA na necessidade de incluir no acordo cláusulas de protecção dos direitos fundamentais, dos dados pessoais, a garantia de não aplicação da pena de morte em caso de extradição, a discussão da prisão perpétua sem encurtamento de pena, das condições de detenção e das garantias jurídicas dos suspeitos. Também queriam garantias de que os extraditados suspeitos de crime de terrorismo não serão julgados, nos EUA, por tribunais especiais, e que, se condenados, poderão cumprir pena na UE. Os americanos, por seu turno, queriam reduzir a “excepção política”, e os europeus pareciam dispostos a aceitar uma lista de crimes que deixariam de beneficiar da definição de “infracção política”. Também em discussão: a adopção de equipas de investigação comuns e de procedimentos comuns em matéria de busca, apreensão, intercepção de telecomunicações e outras formas de produção de prova. Dado o melindre dos items em negociação, um eventual acordo transatlântico sobre estas matérias não deveria, porém, estar concluído antes de 2003.

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* João Maria Mendes

Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lovaina (Bélgica). Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Professor na ESCT. Subdirector do curso de Ciências da Comunicação na UAL. Sudirector do Observatório de Relações Exteriores

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