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- JANUS 2003 -

Janus 2003



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Os “media” e a nova conjuntura internacional no pós–11 de Setembro

Pedro Pinto *

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O relacionamento entre os meios de comunicação social e a defesa é a priori antagónico, devido à divergência de interesses de ambos: a divulgação, no caso da primeira, e a confidencialidade, no caso da segunda. O papel dos media foi reequacionado após os ataques de 11 de Setembro de 2001, em particular no que respeita à própria natureza dos ataques, cujos protagonistas dependem da divulgação para atingirem os seus objectivos. A guerra ao terrorismo no Afeganistão trouxe de novo para o centro do debate o papel dos meios de comunicação como instrumentos de hegemonia e de controle da opinião pública.

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Explica Noam Chomsky que ao jornalismo cabe um papel fundamental na percepção do Mundo: “Revela o passado, reflecte o presente e dá pistas para o futuro”. Ora, como lidar a comunicação com uma nova realidade, onde a divulgação de um acto terrorista e o veicular das suas exigências se torna fundamental para o atingir dos objectivos da própria organização que o desencadeia? Porque, sem dúvida, se a acção não for conhecida perde todo o efeito de pressão e o respectivo medo que procura suscitar.

Mas será isso suficiente para que o jornalismo ignore a realidade, só porque favorece as exigências e os propósitos de organizações no tempo presente apelidadas de terroristas? Provavelmente, não. No acordar do ataque que mudou a percepção das fraquezas e forças deste mundo global, numa altura em que os Estados se confrontam com um novo tipo de inimigo – invisível, quase intangível – do pânico do antraz à denúncia das falhas de segurança em aeroportos e outros locais públicos, o papel dos media balançou entre a luta pela verdade e exposição e a defesa do interesse nacional. Entre uma e outra margem, uma certeza: a guerra ao terrorismo ficou marcada pelas mais fortes limitações e constrangimentos das últimas décadas.

 

Uma guerra especial, uma especial gestão da informação

Em termos de comunicação, o combate ao terrorismo no Afeganistão foi uma guerra asséptica: nada de imagens fortes de destruição, morte ou massacres. No limite, apenas “registos limpos” gerados por câmaras nocturnas de alta tecnologia, mostrando mísseis teleguiados por computador a atingirem alvos cirurgicamente escolhidos. No fundo, uma guerra virtual, em que as baixas civis, à imagem do que aconteceu na Jugoslávia, eram danos colaterais no âmbito da destruição de importantes objectivos estratégicos.

As expectativas de uma invasão americana, confrontação directa entre exércitos, luta palmo a palmo pela conquista de território, foram rapidamente substituídas por uma outra realidade: o avanço dos homens da Aliança do Norte, progredindo à medida que, uma após outra, as resistências taliban compreendiam ter muito mais a ganhar em se render e passar a combater do lado contrário, muitas vezes depois de subornadas pelos próprios comandantes adversários.

E neste contexto, ainda que longe de uma guerra real – com milhares de baixas e imagens assustadoras de devastação, morte e sofrimento – os jornalistas viram limitada a sua presença junto de tropas no Afeganistão a um nível sem precedentes, num grau ainda mais restritivo que durante a Guerra do Golfo.

Foi preciso uma enorme pressão por parte dos media americanos – queixavam-se de que queriam reportar uma guerra americana, feita por americanos, mas que até aí não tinham visto nenhum, apenas contactado com a Aliança do Norte e até, nalguns casos, com os taliban – para que a estratégia mudasse ligeiramente e permitisse uma pequena abertura: um pool para acompanhar, ainda que de forma restrita e um mês e meio depois do início dos bombardeamentos, mais de 1.000 marines no sul do Afeganistão.

Foi a excepção que confirmou a regra.

Daí até à queda de Kandahar, pouco ou nenhum relacionamento. A guerra era gizada por tropas americanas, mas o que chegava à opinião pública, na grande maioria das vezes, eram as imagens e os testemunhos de um exército mal preparado, dividido e pejado de rivalidades que dava pelo nome de Aliança do Norte. Até porque do lado taliban, com excepção da Al-Jazeera, primeiro, e da CNN quase já no final, nenhumas informações ou imagens eram conhecidas quanto à destruição das estruturas militares e às consequências dos bombardeamentos ao nível da população civil.

No fundo, a guerra ao terrorismo em terras do Afeganistão acabou por se transformar numa guerra “asséptica” – porque de “baixas zero” – e “virtual“, feita quase exclusivamente por computador, actualizada por sucessivos briefings a milhares de quilómetros de distância, em Washington, no Pentágono. O controlo da informação foi sempre total e a liberdade de movimentos para os media extremamente diminuta.

Mesmo do lado da Aliança do Norte era impossível fazer uma reportagem sem prévio consentimento. Qualquer saída era acompanhada por um motorista e um tradutor, capazes de transformar um simples “sim” em língua dari numa complexa resposta anti-taliban.

Uma verdadeira encenação, muitos disseram sobre a guerra no Afeganistão, embora desde o início as autoridades americanas tivessem frisado que a actual guerra ao terrorismo seria diferente de todas as outras.

 

As relações “media”/defesa

Razões para tanta cautela? A incómoda relação entre media e defesa, mesmo numa guerra onde, nunca como antes, a opinião pública se encontrava tão ao lado do poder político, depois de um violento ataque ao coração da nação americana.

Controlar a informação de uma guerra – e não se trata aqui de propaganda – representa, sobretudo no Ocidente, a limitação dos estragos provocados por uma sociedade civil exigente e avessa a excessos de violência e sacrifícios por parte dos seus militares. Uma realidade agravada no Afeganistão pela presença de civis já de si vítimas da fome, da pobreza e da opressão de um regime arcaico e a roçar o demente.

Ao contrário do que aconteceu na Jugoslávia – em parte no próprio Iraque – este foi talvez o aspecto mais fácil com que a hierarquia militar americana teve de lidar, até porque os taliban, na sua arrogância primitiva, nem isso souberam aproveitar.

Começaram por expulsar os estrangeiros do país, recusaram a entrada de jornalistas, consideraram-nos alvo a abater e só já muito perto do final deixaram a CNN brilhar em Kandahar, depois de uma escolta paga a peso de ouro.

A guerra do Afeganistão trouxe de novo para o centro do debate a visão dos meios de comunicação social como instrumentos de hegemonia e controlo da opinião pública: a comunicação é uma peça fundamental para a própria guerra, influenciando o seu decurso e, logo, o resultado final. Uma influência que começou por se fazer sentir na Crimeia, ganhou enorme peso na Primeira e Segunda Guerras Mundiais e tornou-se decisiva no desenlace do Vietname.

De fundo, resiste entre ambos uma divergência estrutural e inultrapassável: ao secretismo e confidencialidade opõe-se a divulgação pública. A defesa pretende utilizar os media para congregar a seu lado o apoio da opinião pública e concretizar o seu objectivo militar, preservando a sua margem de manobra; os media pretendem informar a população das actividades dos militares e quanto mais secretas melhor.

Representam, nesse contexto, um “furo”, uma informação única, a singularidade de um dado de que mais ninguém dispõe.

A relação está, por isso, à partida, condenada a uma forte e permanente fricção, agravada, como no caso do Afeganistão, pela emergência de um novo tipo de “inimigo” e de ameaças.

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A guerra ao terrorismo: autocensura e patriotismo

Os contornos da relação entre media e defesa vividos no Afeganistão – no fundo, um apurar da estratégia desenvolvida no Golfo e na Jugoslávia – reuniu ainda outros ingredientes polémicos. A maioria das estrelas da televisão americana acabou por adoptar um discurso a raiar o patriotismo, num comportamento em tudo alinhado com as exigências patrióticas de uma opinião pública que, em sondagem, atribuía um claro apoio à censura.

A administração americana chegou até a pedir aos grandes meios de comunicação que não divulgassem as mensagens gravadas em vídeo por parte de Osama Bin Laden. Argumentava, esquecendo-se que a censura nunca seria mundial, que os terroristas poderiam utilizar esses discursos para passar instruções codificadas destinadas a novos ataques e que os apelos à guerra santa corriam o risco de desenvolver um perigoso e violento sentimento anti-americano entre os países de maioria muçulmana.

Nas redacções discutiu-se a autocensura e se Bin Laden fazia ou não propaganda.

O pedido foi aceite e as cinco maiores estações do país obedeceram à Casa Branca, prontificando-se a mostrar apenas as frases menos violentas do líder da

Al-Qaeda. Um comportamento apelidado de patriótico pelo próprio presidente Bush.

Mas sobra a questão: deve o jornalismo ser patriótico? Podem os jornalistas colocar o dever da imparcialidade entre parênteses em períodos de conflito armado ou de grave perigo para a segurança do país? Ou, pelo contrário, compete aos media manter um olhar independente sobre as opções e os actos dos governos e militares? Pessoalmente, inclino-me para a segunda hipótese; tudo o mais arrasta-nos para um campo perigoso: o da subjectividade.

 

Informação complementar

O Fenómeno “Al-Jazeera”

Se a Guerra do Golfo consagrou a CNN, o conflito do Afeganistão deu a conhecer a Al-Jazeera. No fundo, a versão islâmica da conhecida estação americana, o primeiro canal árabe de informação 24 horas por dia, de um momento para o outro, mundialmente conhecido por transmitir as primeiras imagens dos bombardeamentos no Afeganistão e as sucessivas declarações de Osama Bin Laden.

As suas origens remontam a 1996, na sequência da mudança de regime no Qatar, quando o actual emir derrubou o pai e fundou a Al-Jazeera – A Península – contratando a equipa de jornalistas dos anteriores escritórios da BBC. Num panorama de comunicação marcado por uma permanente bajulação aos poderes instituídos, a estação assumiu desde cedo uma estratégia de ruptura: deram voz às oposições políticas no Egipto, Síria, Arábia Saudita e Iraque e abordaram temas tabus no mundo árabe como a poligamia, relações sexuais fora do casamento, tráfico de droga e corrupção económica. Perderam a conta à quantidade de queixas e pressões recebidas, causaram incidentes diplomáticos, mas ganharam uma sólida reputação de independência e luta pela democracia nos países árabes.

Ainda antes do 11 de Setembro, a par da CNN, eram das poucas cadeias a operar no país dos taliban. Porque nada de extraordinário aí se passava, a CNN decidiu retirar-se e a Al-Jazeera preparava-se para fazer o mesmo quando aconteceu o ataque às torres gémeas em Nova Iorque. Foram acusados de relações privilegiadas com o regime taliban e, sobretudo, com a Al-Qaeda, exprimindo o ponto de vista de fanáticos islâmicos. Garantem que não, que apenas beneficiaram de estar no terreno, e quanto a Bin Laden, asseguram nunca com ele ter falado: as cassetes chegavam prontas aos escritórios em Cabul e assim eram emitidas.

Sendo muitas vezes uma prova contrária à informação veiculada pelo Pentágono, sofreram enormes pressões para deixarem de emitir. A Casa Branca chegou mesmo a pressionar o próprio emir do Qatar, responsável por metade do financiamento da estação. Para o director da Al-Jazeera, nada a que não estivessem habituados: “Já fomos acusados de ser pró-israelitas, pró-americanos, pró-palestinianos e agora pró-taliban. Não mudaremos a nossa estratégia de cobertura e os telespectadores são o nosso único júri”.

E foram-no, de facto. Acrescentam, com alguma dose de ironia, que as cassetes de Bin Laden todas as televisões queriam, agora as imagens, também exclusivas, das vítimas e dos estragos provocados pelos bombardeamentos americanos – supostamente cirúrgicos e a alvos militares – poucos compravam, e quando usadas, eram logo colocadas em dúvida. Sobre a polémica difusão das opiniões, ameaças e apelos a um levantamento muçulmano por parte de Bin Laden, refutam qualquer reparo: “Ele não é considerado o inimigo público número um? Então, interessa ouvir o que ele diz”. Passada então a primeira prova de fogo, “A Península” segue segura.

 

Comunicação e Defesa: um longo e difícil “tango”

Crimeia – 1834 – Pela primeira vez, a presença de jornalistas e uma maior rapidez na difusão da informação permitem fazer eco do que se passa nos campos de batalha. A descrição das carências e desorganização do sistema logístico britânico, a par da exposição da conduta pouco profissional das altas patentes militares, geram na população inglesa uma reacção largamente contrária ao envolvimento das potências aliadas na guerra.

Brasil, Argentina e Uruguai – 1865 – Relato das batalhas e impressão negativa da estratégia militar adoptada leva a opinião pública a forçar uma paz negociada.

1ª Guerra Mundial – 1914 – Divulgação pormenorizada de uma operação onde as tropas britânicas estacionadas em França perderam mais de 1500 homens em poucos dias lançou uma enorme situação de pânico entre a população da região e a revolta da opinião pública britânica.

2ª Guerra Mundial – 1939 – Um gabinete de censura colocava a pergunta e dava a resposta: “Quanto é que o povo americano deveria saber, através da imprensa, acerca da guerra? Não lhes contamos nada até tudo estar acabado e depois dizemos-lhes quem é que ganhou”. A melhoria das comunicações aumenta brutalmente o fluxo de informação, a propaganda torna-se um decisivo instrumento de guerra.

Vietname – 1964 – Jornalistas circulam sem restrições. Acompanham tropas e exibem livremente imagens, testemunhos e horrores da guerra, quer entre a população quer entre os militares americanos. A opinião pública exige o fim da intervenção. O general Westmoreland diria mais tarde: “O verdadeiro inimigo americano, e responsável pela derrota, não foi o exército vietcong, mas sim a imprensa”.

Malvinas – 1982 – Primeiro palco onde é aplicada a estratégia pós-Vietname: os jornalistas “circulam” em pools organizadas pelo Ministério da Defesa. Critérios previamente estabelecidos determinam a difusão de imagens e os locais a visitar.

Golfo – 1991 – O primado da “guerra limpa”. Imagens nocturnas de bombardeamentos reduzidas a clarões num ecrã esverdeado, sem vida e, claro, sem mortos. Testemunhos visuais de tropas iraquianas a serem dizimadas no terreno e até de baixas americanas surgem, apenas, após a libertação do Kuwait.

Somália – 1993 – Imagens de soldados americanos a serem arrastados pelas ruas da capital, Mogadiscio, determinam o fim da intervenção humanitária.

Jugoslávia – 1998 – Aperfeiçoamento da estratégia de informação: “baixas zero”, “bombardeamentos cirúrgicos” e “danos colaterais” são termos repetidos em infindáveis briefings que procuram substituir a presença dos jornalistas no terreno. Pools a locais determinados e pré-definidos. Rádio-televisão sérvia bombardeada, aniquilando estratégia de comunicação de Milosevic, que começou por expulsar os jornalistas estrangeiros para depois voltar atrás e convidá-los a estar em Belgrado.

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* Pedro Pinto

Licenciado em Relações Internacionais pela UAL. Mestre em Desenvolvimento e Cooperação Internacional pelo ISEG. Jornalista da TVI.

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