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Onde estou: | Janus 2003 > Índice de artigos > A convulsão internacional > O “arco de crise” (I): o Afeganistão e a Ásia Central > [A intervenção estrangeira no Afeganistão e o Direito Internacional] | |||
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Parece evidente que neste caso não se tratou inicialmente de uma “guerra” propriamente dita, apesar de assim ter sido qualificado pela Administração americana, mas sim da resposta a um ataque terrorista extremamente grave praticado por uma organização não-estatal contra um Estado, que pode eventualmente ser considerado como um crime contra a humanidade. Que tipo de resposta a estes actos poderia ser permitida pelo direito internacional, contra quem e com que meios? O direito internacional contemporâneo, cuja pedra basilar é a Carta das Nações Unidas, concluída em São Francisco em 26 de Junho de 1945 (ver caixa ao lado), proíbe o uso ou a ameaça do uso da força. O artigo 2º/4 da Carta estipula que os membros da Organização se deverão abster nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força. As represálias armadas praticadas unilateralmente por Estados encontram-se assim proibidas actualmente pelo direito internacional. Neste ponto é também claro o projecto de artigos adoptado recentemente pela Comissão do Direito Internacional sobre a Responsabilidade dos Estados, que proíbe as contramedidas com recurso à força. Isto significa que o uso unilateral e não autorizado da força nas relações internacionais é um acto ilícito e gerador de responsabilidade internacional do(s) seu(s) autor(es). Apenas no caso de uma autorização colectiva por parte do Conselho de Segurança – este órgão das Nações Unidas detém o monopólio do uso da força na ordem jurídica internacional vigente – ao abrigo do Capítulo VII da Carta da Organização, podem ser tomadas medidas coercivas que envolvam o uso da força armada, e estas medidas devem ser utilizadas apenas no caso de ameaças ou rupturas da paz ou actos de agressão e têm por fim manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. Ora, no caso dos ataques terroristas de 11 de Setembro, não houve qualquer resolução das Nações Unidas a autorizar o uso da força em sua resposta (1). O Conselho de Segurança adoptou duas resoluções – a 1368 (2001), em 12 de Setembro e a 1373 (2001), em 28 de Setembro – em que condena os ataques terroristas nos Estados Unidos e os considera como ameaças à paz e segurança internacionais, o que foi confirmado na Resolução 1377 (2001)(2) que declarou que actos de terrorismo internacional constituem uma das mais sérias ameaças à paz e segurança internacionais no século XXI. Na primeira resolução, o Conselho de Segurança expressa a sua disponibilidade para tomar todas as medidas necessárias para responder aos ataques terroristas de 11 de Setembro e para combater todas as formas de terrorismo, de acordo com as suas responsabilidades ao abrigo da Carta das Nações Unidas. Mas tal não foi seguido de qualquer autorização do uso da força na segunda resolução. Nesta apenas se refere a necessidade de combater por todos os meios, de acordo com a Carta das Nações Unidas, as ameaças à paz e segurança internacionais causadas por actos terroristas. A Resolução 1377 vem reafirmar que uma abordagem global e sustentada, envolvendo a participação e colaboração activa de todos os membros das Nações Unidas e de acordo com a Carta da Organização e com o direito internacional é essencial para combater o terrorismo internacional. O caso do Kosovo, em que a utilização da força pela NATO em 1999 contra a ex-Jugoslávia não foi igualmente precedida por uma autorização expressa do Conselho de Segurança, suscitou também um grande debate sobre a sua legitimidade face ao direito internacional, embora nesse caso pudesse existir um forte argumento em favor da intervenção humanitária, sendo certo também que o Conselho de Segurança se encontraria paralisado face ao provável veto da Rússia e/ou da China.
Legítima defesa? Comum a ambas as resoluções acima referidas é, no entanto, o reconhecimento do direito inerente de legítima defesa individual ou colectiva, tal como consagrado na Carta das Nações Unidas. Mas tal não parece poder ser interpretado de per se como uma autorização de uma acção militar contra o Afeganistão, nem uma aprovação da aplicabilidade do artigo 51º da Carta. A única verdadeira excepção à proibição do recurso à força é hoje provavelmente o direito de legítima defesa. Este direito encontra-se consagrado no artigo 51º da Carta das Nações Unidas. Este direito foi também reafirmado recentemente pela Comissão do Direito Internacional nos seguintes termos: um acto praticado por um Estado deixa de ser ilícito se esse acto constituir uma medida lícita de legítima defesa em conformidade com a Carta das Nações Unidas. O direito de legítima defesa é tradicionalmente entendido como um direito que surge no caso de um ataque armado de um Estado contra outro Estado, enquanto o Conselho de Segurança não reage ou no caso de ausência de reacção por parte deste órgão. Para além disso, o recurso à força em legítima defesa deve ser exercido dentro de condições restritivas: impossibilidade de reagir por outros meios, uso proporcional da força, no respeito pelo direito humanitário e apenas para afastar o ataque armado e enquanto durar a agressão ou até o Conselho de Segurança tomar as medidas necessárias. A resposta internacional aos eventos do 11 de Setembro parece, no entanto, constituir uma alteração dramática a este quadro jurídico. Para considerar que haveria lugar à legítima defesa, era preciso definir o ataque em questão como um “ataque armado” contra os Estados Unidos. Este parece ter sido o entendimento dos Estados Unidos e também da NATO ao, pela primeira vez na sua história, invocar o artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte, que requer aos Estados membros desta organização de defesa e segurança que auxiliem outro Estado membro no exercício do seu direito de legítima defesa contra um ataque armado vindo do exterior. Os Estados Unidos, numa Carta dirigida ao Conselho de Segurança em 7 de Outubro de 2001 (documento S/2001/946), data em que começaram os ataques ao Afeganistão, invocaram o artigo 51º da Carta das Nações Unidas e o seu direito de legítima defesa individual e colectiva contra os ataques armados contra o seu território em 11 de Setembro. O Congresso americano havia já autorizado em 18 de Setembro o Presidente norte-americano a recorrer à força militar, em autodefesa preventiva contra as nações, organizações ou pessoas que planearam, autorizaram, cometeram ou protegeram tais organizações ou pessoas, para prevenir futuros ataques. A União Europeia apoiou também a acção militar desencadeada pelos Estados Unidos no âmbito do seu direito de legítima defesa, que considerou conforme à Carta das Nações Unidas e à Resolução 1368 do Conselho de Segurança. Porém, o Conselho de Segurança não qualificou os ataques terroristas como ataques armados, mas sim apenas como ameaças à paz e à segurança internacionais, apesar de reconhecer, em geral, o direito à legítima defesa dos Estados. Para além disso, o Conselho de Segurança expressou a sua disponibilidade para autorizar o recurso à força (sem, no entanto, o fazer). Noutras ocasiões, o argumento em favor da legalidade da legítima defesa foi rejeitado pelo Conselho de Segurança (cf., por exemplo, a Resolução 573 (1985) deste órgão, que condenou o bombardeamento por aviões israelitas da sede da OLP na Tunísia, alegadamente por este Estado ter dado guarida a terroristas que tinham atacado Israel, considerando-o como um acto de agressão armada contra o território tunisino em flagrante violação da Carta das Nações Unidas e do direito internacional). E será que se pode considerar como alvo legítimo o Afeganistão? A Resolução 1373 (2001) reafirmou o princípio, consagrado já em resoluções deste órgão e da Assembleia Geral, designadamente na sua Resolução 2625 (1970), segundo o qual todos os Estados têm o dever de se abster de organizar, instigar, auxiliar ou participar em actos terroristas noutros Estados ou de aquiescer em actividades organizadas dentro do seu território que visem a prática de tais actos. A questão que se suscita é a de saber se o recurso à legítima defesa é lícito contra um Estado, apenas por alegadamente este dar guarida aos responsáveis pelos actos terroristas, actos estes que não são directamente imputáveis a nenhum Estado, mas sim a uma rede ou organização terrorista, a Al-Qaeda. O Conselho de Segurança não atribuiu em nenhuma ocasião a responsabilidade – ainda que indirecta – dos ataques terroristas ao regime taliban, que para além disso nunca reconheceu como o governo oficial do Afeganistão. Não era certamente este tipo de situações que os autores da Carta das Nações Unidas tinham em mente ao redigirem o artigo 51º, pois trata-se evidentemente de novas realidades. No entendimento dos Estados Unidos, porém, não havia que fazer qualquer distinção entre os responsáveis pelos actos terroristas e os Estados que os protegem. Pode argumentar-se que o arsenal jurídico actual está pouco adaptado aos novos desafios com que a comunidade internacional se depara. Como disse recentemente um consagrado professor de direito internacional, Alain Pellet: “Lawyers are like les carabiniers – always late for a war”. Contudo, algumas regras essenciais têm de ser respeitadas. Assim, mesmo admitindo que os ataques terroristas constituíram um ataque armado e que são legítimas as represálias contra o Afeganistão – o que parece uma interpretação bastante lata da Carta das Nações Unidas – o recurso à força em legítima defesa deve ser sempre proporcional aos seus objectivos, que neste caso seriam a detenção das pessoas alegadamente responsáveis pelos ataques terroristas de 11 de Setembro e a destruição de objectivos militares tais como infraestruturas, bases de treino e outras instalações utilizadas pelos terroristas. Desta forma, os actos para além destes objectivos poderão eventualmente ser considerados como ilícitos, mesmo em sede de legítima defesa, sendo igualmente duvidoso que exista uma legítima defesa preventiva.
Um conflito armado internacional? Independentemente da discussão sobre a legitimidade da intervenção estrangeira no Afeganistão (uma questão de jus ad bellum), esta deu lugar a um conflito armado internacional, que dá origem por sua vez à aplicação do direito humanitário (jus in bello). Apesar de a guerra ser hoje interdita, ela é uma realidade e, por isso, há que proteger as pessoas que sofrem os seus efeitos, designadamente as populações civis. O direito internacional humanitário é pois silencioso quanto à questão de saber se um Estado tem direito ou não de recorrer à força, mas aplica-se assim que se verifica esse recurso à força, ou seja, “desde o primeiro tiro de espingarda”. Assim, verificou-se um conflito armado internacional entre os Estados Unidos e seus aliados e o Afeganistão, o regime taliban como governo de facto e a Al-Qaeda, no qual deve respeitar-se o direito internacional humanitário aplicável.
Informação complementar Disposições relevantes da Carta das Nações Unidas Artigo 2º/4 – “Os membros deverão abster-se nas suas relações internacionais de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado, quer seja de qualquer outro modo incompatível com os objectivos das Nações Unidas.” Artigo 24º/1 – “A fim de assegurar uma acção pronta e eficaz por parte das Nações Unidas, os seus membros conferem ao Conselho de Segurança a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais e concordam em que, no cumprimento dos deveres impostos por essa responsabilidade, o Conselho de Segurança aja em nome deles”. Artigo 25º – “Os membros das Nações Unidas concordam em aceitar e aplicar as decisões do Conselho de Segurança, de acordo com a presente Carta.” Artigo 39º – “O Conselho de Segurança determinará a existência de qualquer ameaça à paz, ruptura da paz ou acto de agressão e fará recomendações ou decidirá que medidas deverão ser tomadas de acordo com os artigos 41º e 42º, a fim de manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais.” Artigo 51º – “Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou colectiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e segurança internacionais. As medidas tomadas pelos membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer momento, a acção que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais.”
Alguns dos princípios essenciais de direito internacional humanitário aplicáveis aos conflitos armados. As partes em conflito e os membros das suas respectivas forças armadas não têm direito ilimitado no que diz respeito à escolha dos métodos e meios de guerra. É proibido usar armas ou métodos de guerra de natureza tal que venham causar perdas desnecessárias ou sofrimento excessivo. As partes em conflito deverão sempre distinguir a população civil dos combatentes, poupando a população e os bens civis. Não serão objecto de ataque nem a população civil como tal, nem as pessoas civis. Os ataques devem ser dirigidos contra objectivos militares. Todos terão o direito de beneficiar das garantias judiciais fundamentais. Ninguém poderá ser julgado responsável por acto que não tenha cometido. Ninguém será submetido à tortura física ou mental, a castigo corporal ou a tratamento cruel ou degradante. Os combatentes capturados e civis que estejam em poder da parte inimiga têm direito ao respeito da sua vida, dignidade e direitos e convicções pessoais. Serão protegidos contra todos os actos de violência e represálias. Terão o direito de se corresponder com as suas famílias e de receber socorro.
Que respeito pelo direito internacional humanitário? Existe um mínimo de regras elementares que devem ser respeitadas no caso de uma intervenção militar num Estado estrangeiro (ver caixa em baixo). Encontram-se claramente proibidos em qualquer conflito armado os ataques indiscriminados, os ataques a civis, as armas de destruição maciça que possam causar danos desnecessários, indiscriminados ou um sofrimento excessivo, a recusa do estatuto de prisioneiros de guerra, etc. Desta forma, certas condutas levadas a cabo pelas forças militares americanas suscitam dúvidas, como por exemplo: • o tratamento conferido aos membros dos taliban e Al-Qaeda capturados no Afeganistão e detidos na base de Guantanamo, que se forem considerados como combatentes regulares têm direito ao estatuto de prisioneiros de guerra e, em todo o caso, a ser tratados como tal em caso de dúvida até o seu estatuto ser determinado por um tribunal; • o uso desproporcionado e excessivo da força, resultando num número elevado de vítimas civis; • o recurso a bombas cluster, lançadas pela aviação militar americana
e que se encontram espalhadas pelo Afeganistão, que por se encontrarem
por explodir e serem altamente voláteis se transformam praticamente em
minas antipessoal, do tamanho de latas de refrigerante e da mesma cor
do que os pacotes de ajuda humanitária largada também pelos Estados Unidos,
o que constitui um perigo para a população civil e que permanecerá durante
anos.
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