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Onde estou: | Janus 2003 > Índice de artigos > A convulsão internacional > O “arco de crise” (II): Israel, Palestina, Iraque > [A Grã-Bretanha face aos EUA] | |||
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Relê-las permitir-lhes-ia entender igualmente a atrelagem da Grã-Bretanha de Margaret Thatcher e de John Major aos EUA de Ronald Reagan e de Bush pai, respectivamente – para não falarmos senão de exemplos do passado mais recente. É provavelmente verdade que Blair se sentia, por razões geracionais e de cultura política, muito mais próximo de Bill Clinton – com quem partilhou a liderança ideológica da “terceira via” nos anos 90 – do que do actual presidente conservador dos EUA. Mas Brzezinski tem o mérito de pôr em evidência os factores estruturais que determinam o posicionamento britânico entre os EUA e a Europa, em detrimento do empolamento mediático das afinidades electivas pessoais. Ao identificar, na vasta Eurásia ovalóide que se desenvolve de Lisboa a Vladivostok, os actores geoestratégicos que têm uma visão para o conjunto desse território e do mundo, e que por isso podem constituir um desafio para os EUA, Brzezinski lista a França, a Alemanha, a Rússia, a China e a Índia como protagonistas principais, enquanto a Grã-Bretanha, o Japão e a Indonésia não relevam dessa categoria. Repare-se que o autor refere a França e a Alemanha e não a Comunidade ou a União Europeia, como se esta fosse, apesar da sua inegável importância, um fenómeno relativamente “mole” e reversível. Numa segunda posição, a de “pivots” políticos cruciais, o autor lista a Ucrânia, o Azerbeijão, a Coreia, a Turquia e o Irão, atribuindo a estes dois últimos um papel próximo do geoestratégico. Mas limitemo-nos à sua avaliação do extremo ocidental da Eurásia, constituído pela Europa da UE e pelo seu Leste. Aqui, as duas potências capitais são, para ele, e como vimos, a França e a Alemanha, cada um delas movida por visões próprias da unificação europeia e pela ambição de realizar esse projecto.
A França e a Alemanha Para além do seu papel central no percurso da unificação europeia, quer a França quer a Alemanha projectam a sua influência regional mais longe do que nas suas vizinhanças imediatas: a primeira, diz Brzezinski, vê-se a si própria como o núcleo duro de um conjunto de Estados mediterrânicos e norte-africanos que partilham interesses comuns; a segunda, principal potência económica europeia e locomotiva da UE, sente-se responsável pelos países da nova Europa Central, o que recorda a ideia de uma “Mitteleuropa” sob a égide alemã. Além disso, quer a França quer a Alemanha têm, dado o seu dinamismo e peso histórico e demográfico na região, tendência a falar, cada uma de per si, em nome de toda a Europa, sobretudo com a Rússia – com quem a Alemanha admite ciclicamente o estabelecimento de acordos bilaterais. Vista de Washington, a Europa, enquanto extremo-ocidente da Eurásia, não é feita apenas de UE, seus irmãos relutantes e respectivos “pátios das traseiras”: ela inclui os não-membros dos 15 na sua área ocidental e o cinto de Estados que desce da Polónia à Turquia (República Checa, Eslováquia, Hungria, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Jugoslávia, Roménia, Albânia, Macedónia, Bulgária); uma segunda fronteira de destino mais incerto é desenhada pelo arco da Estónia, Letónia, Lituânia, Bielorússia, Ucrânia, Moldávia, nascido da desagregação da ex-URSS e que redobra, para Oriente, o anterior. Mas antes mesmo do estabelecimento deste novo contexto, a Grã-Bretanha já deixara, diz Brzezinski, de desempenhar um papel geoestratégico maior: não defende nenhum projecto ambicioso para o futuro da Europa, e o seu declínio relativo, desde o fim da Segunda Guerra Mundial e do desmantelamento final do seu império, torna-lhe mais difícil influenciar a dinâmica continental dos equilíbrios europeus. Nos termos do autor: “A sua ambivalência em matéria de unificação europeia e a sua fidelidade a uma relação privilegiada com os EUA excluíram-na das grandes decisões sobre o futuro da Europa. Londres escolheu manter-se fora do jogo europeu”. A recusa de adesão à UEM e ao euro exprimem claramente, para Brzezinski, a falta de vontade britânica para ligar o seu destino ao destino da Europa. Citando Robert Skidelski (Great Britain and New Europe, 1992), o autor sintetiza do seguinte modo as posições de Londres sobre a Europa: a Grã-Bretanha rejeita a perspectiva de uma união política, preferindo-lhe uma ideia de Europa limitada a uma zona económica de comércio livre; favorece a coordenação de políticas externas, de segurança e de defesa fora do âmbito da UE; e raramente viu a sua influência acrescida graças à Comunidade Europeia, contrariamente aos efeitos da sua ligação aos EUA. Particularmente atento às potências que podem constituir um desafio regional para os EUA, Brzezinski admite que a Grã-Bretanha é um parceiro importante de Washington, fiel aliado militar e em termos de serviços de informações, que mantém uma influência difusa via Commonwealth, “mas o seu poder é reduzido, a sua visão perdeu ambição, e nada na sua política reclama uma atenção sustentada e contínua”. A síntese final que o antigo conselheiro de Carter propõe sobre o papel da Grã-Bretanha no mundo é ostensivamente depreciativa: “Actor geoestratégico na reforma, a Grã-Bretanha repousa sobre os seus ilustres louros, a respeitável distância da grande aventura europeia conduzida pela França e pela Alemanha”.
A indústria militar A mediatização americana dos contornos logísticos concretos da aliança militar Washington-Londres, quer durante a Guerra do Golfo de 1991, quer durante a década de raids aéreos contra o Iraque que se lhe seguiu, quer na campanha contra o Afeganistão dos taliban em 2001-2002, evitou, geralmente, referências detalhadas à participação britânica em matéria de efectivos, equipamentos e tecnologias. Salvo no caso, óbvio, do tipo de navios e aviões envolvidos, e no relevo dado a destacamentos que ganharam nome e prestígio em antigos teatros de operações – mas a estes trata-os como peças de museu ressuscitadas. Mas a importância, para os EUA, da indústria militar britânica é maior do que a Casa Branca e o Pentágono gostam de reconhecer. A indústria de defesa britânica é a segunda no mundo a seguir à dos EUA, e os seus investimentos e vendas duplicaram na América nos últimos anos. A BAE Systems (ex-British Aerospace) vende mais ao Pentágono do que ao Ministério da Defesa do seu país, e é a primeira das seis empresas líderes da defesa aeroespacial britânica (a seguir vêm a Rolls-Royce e o Smith Group, a GKN, a Meggitt e a Cobham). Os EUA compram hoje metade dos 200 mil milhões de dólares de armamento anualmente produzido em todo o mundo, e o 11 de Setembro disparou a tendência para que comprem ainda mais. A aliança entre os dois países leva o Pentágono a preferir comprar à Grã-Bretanha em vez de a outros grupos europeus, com maior envolvimento francês ou alemão (caso da Thales e da European Aeronautics Defence and Space, EADS. A Thales adquiriu um pequeno grupo britânico, o Racal, para poder, através dele, “entrar” nos EUA). Mas não se trata tipicamente de um sucesso de exportação, porque os EUA exigem que parte, por vezes metade, do que compram seja localmente produzido, pelas empresas britânicas ou por suas subsidiárias nos EUA: o princípio é o de que seja produzido lá um valor equivalente ao que é importado da Grã-Bretanha. Significativamente, ao longo do Verão de 2002, diversos editoriais da revista inglesa “The Economist” chamaram ressentidamente a atenção para o facto de Tony Blair e a Grã-Bretanha não estarem a beneficiar de contrapartidas americanas suficientes pelo seu comprometimento internacional ao lado de George W. Bush. Blair é, decerto, o líder britânico dos últimos 20 anos mais ambivalente em matéria europeia, tentando manter o futuro aberto ao euro e à participação de Londres em projectos industriais e técnico-científicos europeus de maior envergadura. Mas o peso da doutrina tradicional e da postura histórica do Reino Unido face à Europa, por um lado, e aos EUA, por outro, levaram-no a optar inexoravelmente pelos segundos em detrimento da primeira. Destino paradoxal, para um homem que se fez eleger em 2 de Maio de 1997 prometendo “reinventar a esquerda para o século XXI”, e alcançou a reeleição a 7 de Junho de 2001, sem que os conservadores liderados por William Hague se tenham chegado a ver a si próprios como alternativa credível à governação trabalhista.
Informação complementar O arsenal iraquiano segundo o IISS e o UNSCOM O Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), sediado em Londres, divulgou a 9 de Setembro de 2002 um relatório de cem páginas sobre o arsenal iraquiano de armas de destruição maciça, onde afirmava que Bagdad poderia produzir uma arma nuclear se obtivesse matéria fissurável de origem estrangeira, embora, no estado actual do seu desenvolvimento tecnológico, fosse improvável que dispusesse dela ou pudesse produzi-la “nos próximos anos”. Porém, o Iraque dispunha de capacidade industrial suficiente para conceber e produzir armas biológicas em quantidade, e também armas químicas – gás de mostarda e sarin – em instalações civis. O IISS considerava também que o Iraque pode ter conservado uma dúzia de mísseis Al-Hussein, que lhe permitiriam atingir alvos em todo o Próximo Oriente. O relatório admitia ser impossível inventariar exaustivamente as capacidades iraquianas, dada a eficácia do sistema de camuflagens, mentiras e meias-verdades em que o regime de Saddam Hussein se revelou mestre, e apesar da importância de informações fornecidas por trânsfugas ou exilados como o general Hussein Kamel, ex-chefe dos serviços secretos iraquianos, fugido para a Jordânia em Agosto de 1995. O documento veio engrossar o conjunto de informações divulgadas imediatamente antes do primeiro aniversário dos atentados de 11 de Setembro de 2001, e antes do discurso do presidente dos Estados Unidos na Assembleia Geral da ONU, a 12. “Tentámos inventariar com a precisão possível e sem paixão o arsenal iraquiano actual”, dizem os investigadores do IISS, que se apoiaram sobretudo no trabalho dos inspectores da Comissão Especial da ONU para o desarmamento iraquiano (Unscom) e da Agência Internacional da Energia Atómica (AIEA), encarregados de identificar e destruir o arsenal iraquiano entre Junho de 1991 e Dezembro de 1998, e “perceber quais os programas de rearmamento prosseguidos por Badgad” depois da expulsão dos inspectores. Também a Casa Branca divulgou a 12 de Setembro de 2002 um livro branco de 20 páginas, intitulado “A Decade of Deception and Defiance”, visando sustentar o discurso de George W. Bush na ONU, que recorda as violações sistemáticas, pelo Iraque, de 16 resoluções da ONU durante a última década. Durante as suas investigações, a Unscom concluiu que o programa nuclear de Bagdad visava produzir uma arma de 20 quilotoneladas com base na separação isotópica por procedimentos electromagnéticos, porque o Iraque estava atrasado no tocante a outros processos de enriquecimento de urânio – centrifugação, método químico, laser e difusão gasosa. Mas, a 8 de Setembro de 2002, o vice-presidente americano Dick Cheney afirmou na NBC que os EUA tinham interceptado equipamentos destinados ao Iraque que poderiam servir para a concepção de armas nucleares, e a conselheira Condoleezza Rice acrescentou tratar-se de tubagens de alumínio para centrifugadoras. Os autores do relatório do IISS sublinhavam não apoiar a tese segundo a qual a posse de armas de destruição maciça pelo Iraque constituiria em si mesma um “casus belli”; mas, apesar de o IISS ser um centro de estudos independente do governo britânico, usavam um argumento de Tony Blair para apresentar as suas conclusões de forma dilemática: “Esperemos, e a ameaça crescerá”, diz Blair. “Ataquemos, e a ameaça pode realizar-se”, acrescentavam eles. Em pano de fundo deste dilema, estava a mudança de objectivos americanos no Iraque: em 1991, no termo vitorioso da “Tempestade do Deserto”, George Bush pai não pôde, ou não quis, desalojar Saddam Hussein de Bagdad, por temer uma sucessão instável e errática do ditador. Agora, em 2002, seu filho visa provocar uma mudança de regime em Bagdad, dada a importância das reservas iraquianas de petróleo, e para impedir que o regime iraquiano consiga, mediante uma permanente vitimização entre os árabes, tornar-se em potência condicionante das políticas dos estados muçulmanos no Próximo e Médio Oriente. O relatório de 1999 São as seguintes as conclusões principais do último relatório de 20 especialistas internacionais mandatados pela ONU para controlar e desmantelar o armamento iraquiano de destruição maciça, datado de 30 de Março de 1999 – último divulgado antes desta edição do Janus: Armas nucleares – A AIEA conseguiu produzir uma representação “tecnicamente coerente do programa nuclear clandestino do Iraque”, que visava a produção de um pequeno arsenal, mas “não existe qualquer indício de que tenha alcançado esse objectivo”. A destruição dos materiais relativos a este programa foi concluída em finais de 1992, e em Fevereiro de 1994 a AIEA concluiu o transporte dos materiais nucleares utilizáveis para fora do Iraque. Armas químicas – Foram destruídos mais de 88 mil projécteis químicos, carregados ou vazios, mais de 600 toneladas de agentes químicos destinados a essas armas e cerca de quatro mil toneladas de produtos “precursores”. Foi desmantelada e encerrada a maior fábrica iraquiana de armas químicas. A Unscom identificou o projecto VX (gás letal) e a rede de fornecedores que o alimentava. Por resolver: a questão dos 550 obuses de artilharia armados com gás de mostarda, que Bagdad declarou perdidos pouco depois de terminada a guerra do Golfo; o destino de 500 bombas R-400; o eventual relançamento do projecto VX, através de produção local. Armas biológicas – A Unscom descobriu um projecto de produção de armas biológicas que foi inteiramente escondido até 1995. Foi possível destruir 22 toneladas de produtos destinados a esse programa, mas os inspectores admitem não ter obtido um “conhecimento exaustivo” da sua extensão.
Um “protectorado” americano Eis como Brzezinski refere, em The Grand Chessboard, o papel da Europa
no novo mundo globalizado depois da queda da URSS e do fim da gurra fria:
se a Europa conseguir a integração política, diz ele, criar-se-á uma
entidade de quase 400 milhões de habitantes, vivendo sob um tecto democrático
comum e beneficiando de um nível de vida cada vez mais comparável ao
dos EUA. Mas, acrescenta, “...hoje a Europa tem outra função. Ela é o
trampolim da expansão da democracia para Leste do continente (...). Se
tecesse uma rede de relações com os Estados situados mais a Leste, [a
Europa] passaria a exercer um formidável poder de atracção sobre a Ucrânia,
a Bielorússia e a Rússia (...). Graças a tal movimento, a Europa tornar-se-ia,
a prazo, num dos pilares vitais de uma grande estrutura de segurança
e de cooperação, colocada sob a égide americana e que se estenderia a
toda a Eurásia (...). O problema é que uma Europa verdadeiramente ‘europeia’
é coisa que não existe. É uma visão do futuro, uma ideia, uma finalidade;
não é uma realidade (...). Se fosse preciso prová-lo, a sua ausência
contínua em toda a guerra da ex-Jugoslávia seria a prova mais cruel.
Digamo-lo sem tergiversar: a Europa Ocidental permanece, em grande medida,
um protectorado americano, e os seus Estados fazem lembrar o que eram
outrora os vassalos e os tributários dos antigos impérios”. Brzezinski
considera que o claro domínio dos EUA nos sectores militar, tecnológico,
económico e cultural os transformou em “única potência global” do mundo
contemporâneo. E anota como o modelo dos líderes americanos é copiado
um pouco por todo o mundo: “Cada vez mais, homens políticos dos países
democráticos adoptam o estilo americano. (...) Personalidades tão distintas
como o recente primeiro-ministro japonês Ryutaro Hashimoto e o novo primeiro-ministro
britânico Tony Blair (notemos, de passagem, o diminutivo Tony, como ‘Jimmy’
Carter. ‘Bill’ Clinton e ‘Bob’ Dole) acham bem, apesar da disparidade
das suas culturas e preocupações, copiar as maneiras familiares de Bill
Clinton, a sua estudada simplicidade e as suas técnicas de relações públicas”.
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