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Janus 2003



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Israel: uma sociedade complexa

Fernando Amorim *

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Existem quatro grupos distintos de judeus em Israel: os Sabras, que nasceram e permaneceram na Palestina, os Askenazi, que se fixaram na Europa Central e de Leste, e que nos séculos XIX e XX emigrariam para os EUA; os Sefarditas, que sendo expulsos da Peninsula Ibérica no séc. XV, se difundiram por varios países europeus, Norte de África e Médio Oriente; por último, os Falashas, ou “sem pátria”, originários da Etiópia. A maioria sefardita esteve na origem da subida ao poder do bloco Likud, mas prevê-se que em 2003 os “askenazi” sejam maioritários, com efeitos sobre o equilíbrio direita/esquerda.

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No dia 14 de Maio de 1948, véspera do fim do mandato britânico sobre a Palestina, o Conselho Nacional dos Treze, organismo que substituíra a Agência Judaica como governo provisório judeu, aprovou, por apenas um voto de vantagem, a proclamação em Telavive de Medinat Ysra’el (Estado de Israel). Os árabes partiram para uma guerra que não mais se extinguiu e incendiou Yerushalayim, “a cidade da Paz”, a Terra Santa, o Médio Oriente e o mundo árabe. Passados mais de 50 anos sobre o início do conflito, aproximando-se a “hora da decisão” sobre o rumo a prosseguir, nunca como agora a sociedade israelita viveu refém dos dilemas e desafios tecidos pela sua própria história, marcada pela divisão e por lutas fratricidas.

A Diáspora ajudou a cimentar a identidade cultural e religiosa judaica, mas conduziu à emergência de comunidades diferenciadas, com leis, costumes e línguas distintas, que muito têm contribuído para o acentuar das clivagens e tensões no mosaico étnico -cultural que é a sociedade israelita de hoje, composta de 80,1% de judeus em 5.938.000 habitantes (32,1% naturais da Europa e EUA, 20,8% naturais de Israel, 14,6% de África, 12,6% da Ásia, provenientes de mais de 100 países e falando 85 línguas ou dialectos diferentes) maioritariamente agrupados em 4 grupos.

De um lado os judeus Sabras que nasceram e permaneceram na Palestina em pequenas colónias em Safed, Tiberíade e na Galileia, ou descendem da colonização tolerada pelos turcos e que o califa Omar trouxera de volta para Jerusalém, constituindo a base de recrutamento dos mais fanáticos guardas da ortodoxia religiosa, os judeus da seita hassidim. Hoje designa também os nascidos em Israel.

De outro, os judeus da Diáspora: os Askenazi (nome hebraico para a Alemanha) que se fixaram na Europa Central e de Leste, falantes de Yiddish (mescla de hebraico e alemão) e que nos séculos XIX e XX emigrariam em largo número para os EUA, e após a 2ª Guerra Mundial, para Israel, representando 85% dos judeus no mundo e que constituíram o núcleo fundador populacional, e a elite política e técnica do movimento sionista e do Estado de Israel; os judeus Sefarditas (do hebraico Seffarad, que designava a Península Ibérica) falantes de Ladino (mescla de português, castelhano e hebraico) e que, expulsos de Espanha e Portugal (1492-1496), espalharam-se por numerosos países europeus e, mercê da tolerância otomana, para a Turquia, Norte de África e Médio Oriente e que, ao longo dos anos 60, imigraram do Médio Oriente para Israel, sendo os seus antigos rancores e ressentimentos anti-árabes aproveitados pelos partidos ultranacionalistas de direita.

Nos finais da década de 70 os judeus sefarditas, com uma bagagem cultural bem diversa e menos rica que a dos askenazis, por força dos índices de natalidade mais elevados, representavam já mais de metade da população judaica de Israel mas ocupavam os estratos mais baixos da sociedade, sendo responsáveis pela chegada ao poder do bloco Likud de direita (1977).

Finalmente, os judeus Falashas, i.e, “exilados” ou “sem pátria” na língua Amharica da Etiópia de onde são originários, e que remontam as suas origens a Menelik, filho do rei Salomão de Israel e da rainha de Sabá, designando-se a si próprios Beta Esrael (Casa de Israel). Observantes de um judaísmo sem rabinos, não influenciado por desenvolvimentos pós-bíblicos, praticam os sacrifícios rituais, a festa de Abraão, as regras do Sabbath, a mono e endogamia, sendo a masjid (sinagoga) o centro da sua religião. Após a queda do imperador Hailé Selassié da Etiópia (1974), foram perseguidos e expulsos de posições proeminentes que detinham no governo e educação. Em 1984, uma ponte aérea permitida pelo regime marxista etíope transportou 12.000 Falashas para Israel, 3.500 em 1990 e 14.000 em Maio de 1991.

Recebidos com desconfiança por largos sectores da sociedade que não os reconhecem como o elo perdido do judaísmo, a profunda distinção histórico-cultural e étnica colocou-lhes enormes dificuldades de integração, relegando-os para lugares menos representativos na sociedade e profissões de pouco reconhecimento social.

O fim do bloco soviético conduziu ao recomeço da imigração de 750.000 judeus Askenazi da ex-URSS na década de 90, os quais, estima-se, sejam de novo a maioria sociológica em Israel em 2003, com óbvias repercussões nos equilíbrios entre uma direita confessional e nacionalista, marcadamente sefardita e um centro-esquerda mais laico, trabalhista e moderado. Contudo, a Aliya ou imigração, proclamada por Ben-Gurion como o único objectivo do sionismo político é um processo em acentuada perda: actualmente, 2/3 dos 5.561.000 judeus residentes nos EUA, sustentáculo económico e humano do Yishuv (colonização de Israel) casam fora do grupo e da religião judaica. A recusa da influência na política israelita dos líderes sionistas que preferiram permanecer na Diáspora tem acelerado os riscos de cisma entre Israel e as estruturas da diáspora judaica: a maioria dos judeus espalhados pelo mundo não querem “regressar” a Israel.

Por outro lado, o movimento sionista, na origem constituído como reacção às teses da assimilação europeia do povo judeu e repudiado pelos ortodoxos por defender a criação na Eretz-Ysra’el de um “Lar” e um “Estado” pela acção dos homens e sem intervenção divina, é cada vez mais abertamente contestado no seio das elites e da sociedade como movimento etnocentrista e intolerante, instrumento do fundamentalismo judaico, não representativo do judaísmo no seu todo, mas influente em Israel como base ideológica do movimento de colonização da Cisjordânia e Faixa de Gaza.

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Tsahal: a sociedade armada

Desde a sua criação, o Estado de Israel vive em permanente situação de guerra. O militarismo e a insegurança domina e vicia toda a sociedade israelita. Contudo, uma revisão da História, permitida pela recente desclassificação de relevante material de arquivo, tem permitido aos novos historiadores israelitas refutar os mitos da fundação do Estado e da doutrina de segurança em que assenta a missão do Tsahal – o povo em armas – isto é da IDF (Israel Defense Force): o mito da aniquilação, que segundo a historiografia oficial ameaçava a comunidade judaica na Primavera de 1948, é desafiado pela documentação que revela um mundo árabe dividido, submerso na confusão e desnorte, bem como uma comunidade palestiniana sem capacidade militar para ameaçar os judeus; a responsabilidade israelita na questão dos refugiados é uma evidência resultante da vantagem militar judaica, traduzida em actos de expulsão em massa de mais de metade da população palestiniana, em alguns casos acompanhada do massacre de civis, como ocorreu em Lydda, Ramleh, Dawimiyya, Sa’sa ou Ein Zietun; o mito da intransigência árabe é contestado pela forte oposição de Ben Gurion a quaisquer negociações de paz com base na Resolução 194 da ONU (11.12.1948), que substituía a da partilha da Palestina (29.11.1947) e estabelecia o retorno incondicional dos refugiados (inaceitável a Israel porque alterava a natureza fundamental do Estado judeu), a internacionalização de Jerusalém (inaceitável porque equivalia à ressurreição “da sua carne [o Estado] mas não da sua alma”), e a partilha da Palestina em dois Estados (inaceitável porque o exército israelita, Ein Breira [sem alternativa] avançava em todas as frentes, excepto em Jerusalém).

Formado na sua maioria por civis que prestam serviço de reserva várias semanas por ano, e um núcleo menor de soldados convocados por três anos, além de uma quantidade de oficiais de carreira, o Tsahal absorveu (1948) a Haganah, força militar secreta e semi-autónoma, politicamente centrista, e o seu corpo de elite, o Palmach (força bruta) de inspiração marxista, que se tornaram no âmago da Força de Defesa de Israel (IDF), e as facções direitistas Irgun (Etzel) dirigido por Menahem Begin, e o Stern Gand (Lehi – Combatentes da Liberdade de Israel), dirigido primeiro por Abraham Stern e subsequentemente por Yitzchak Shamir, ambas organizações terroristas judaicas ou revisionistas, que disputavam a liderança do sionismo prático oficial do Yishuv durante a 2ª Guerra Mundial.

O militarismo latente traduz-se, também, na existência dos Gadna (G’dudei Noar) ou batalhões pré-militares constituídos por jovens de 15-17 anos; pelo Nachal (Juventude Pioneira Combatente); no corpo autónomo feminino Chen; na Guarda Fronteiriça e, em 1947-48, no Machal (Mitnadvei Chutz L’Aretz) ou corpo de voluntários estrangeiros.

A decisão militar de conservar a Margem Ocidental e a Faixa de Gaza conduziu o Tsahal para uma guerra colonial, suja e crescente, que não é um projecto atraente para os soldados israelitas ou para a sociedade e que ameaça a sobrevivência de Israel como Estado Judaico.

A alternativa entre anexar territórios, como querem os ultranacionalistas de direita, ou trocá-los pela paz, passou a representar o grande pomo de discórdia que divide cada vez mais o povo israelita e faz recear uma guerra civil entre judeus no momento em que se tentar tomar uma decisão a esse respeito.

 

Histadrut: sindicalismo nacional

Nos sionistas-trabalhistas, um conflito insolúvel emergiu entre o ideal da cooperação entre classes, com os trabalhadores árabes, e o objectivo nacional de consolidação de uma nova classe trabalhadora judaica na Palestina. Os pioneiros da colonização hebraica (Yishuv), decididos a formar uma verdadeira classe operária, esforçaram-se em promover uma mão-de-obra judia ao serviço dos seus empreendimentos. Deste modo, a Histadrut – Confederação Geral dos Trabalhadores Judeus na Palestina, obrigou as sociedades judaicas a empregar apenas operários judeus.

Nos anos 90, integrava 85% de todos os trabalhadores israelitas, (através da organização principal, organizações laborais religiosas filiadas e ramo da juventude trabalhadora), mercê de uma notável capacidade de organização e controle de importantes participações em empresas comerciais e industriais, que a tornam num dos maiores empregadores de Israel.

A primazia ao operariado judeu potenciou o êxodo e diáspora palestiniana árabe. Em 1948, apenas 150.000 – cristãos, muçulmanos e drusos – permaneceram no Estado de Israel, reconhecendo-se-lhes a cidadania israelita, embora, na prática, como cidadãos de segunda classe: à excepção dos drusos, foram isentos do serviço militar; até 1965 não lhes foi permitido ingressar como membros de pleno direito na Histadrut; até 1966 estiveram sujeitos a um governo militar que lhes restringiu os movimentos e os direitos de expressão e associação, sendo, ainda hoje, considerada subversiva qualquer manifestação de sentimento árabe ou palestiniano.

Actualmente, a mão-de-obra israelita está sendo progressivamente substituída pela dos palestinianos, menos remunerados, que passaram a depender dos salários ganhos em Israel para subsistir, enquanto, na Alta Galileia, a maioria dos imigrantes judeus que ali se estabeleceram, ao abrigo da “Lei do Retorno”, recusaram permanecer longe dos centros da vida urbana israelita de Telavive, Haifa e Jerusalém. Naqueles antigos campos palestinianos trabalham agora tailandeses e romenos, desejosos de regressar aos seus países no final dos seus contratos, num país com uma força laboral de 2,4 milhões, mas em que apenas 2,6% se ocupa da agricultura e pescas.

Do outro lado, uma verdadeira bomba demográfica: 3 milhões de palestinianos vivem no território da Palestina, conforme definido pelo Mandato Britânico, compreendendo o Estado de Israel, a Margem Ocidental e Gaza, estas últimas áreas ocupadas por Israel desde 1967. Hoje, uma minoria, mais de 700.000 palestinianos são cidadãos de Israel, vivendo dentro das fronteiras estabelecidas no armistício de 1949. Cerca de 1,2 milhões vivem na Margem Ocidental, incluindo 200.000 em Jerusalém Leste, e cerca de 1 milhão na Faixa de Gaza.

O remanescente do povo palestiniano, talvez outros 3 milhões, vive na diáspora, fora do seu Lar Nacional. O sistema de relacionamento político, económico e social que Israel criou nos últimos 50 anos na região colocou este Estado no lado errado da História.

 

Informação complementar

O “Kibutz”: o sonho de um modelo económico

Os primeiros sionistas, influenciados pelos teóricos do marxismo, sonhavam construir um estado em que a tradição judaica se conjugaria com a insti-tuição de uma autêntica democracia social, uma espécie de redenção da raça judia e de purificação da mentalidade dos guetos através do retorno ao trabalho manual. Os pioneiros, com a sua enxada e a sua espingarda, punham em prática a utopia com que tinham sonhado todos os socialistas do século XIX e rejeitando o mito do judeu errante, tornavam o kibutz ao mesmo tempo falanstério e yeshiva (mosteiro), respondendo às exigências da segurança e às aspirações do ideal, cultivando o desinteresse, o trabalho e a virtude. O kibutz tornou-se o mais conhecido dos três tipos de exploração económica em Israel.

Respondendo eficazmente às necessidades da população imigrante despojada e num ambiente hostil, nestas comunidades colectivas, dedicadas maioritariamente à agricultura, os seus membros vivem numa única comunidade partilhando as tarefas. A terra, as fábricas, os edifícios e o equipamento são detidos colectivamente pela comunidade, sendo o trabalho e os rendimentos igualitariamente repartidos. A integração nestas comunidades implicava a transferência para ela dos bens do novo membro. Igualmente as crianças eram mantidas e educadas comunalmente em grupos etários e afastados dos seus pais com quem viviam apenas aos fins-de-semana, por forma a libertá-los para a defesa e o trabalho, com óbvios custos para os valores familiares e o seu equilíbrio educativo.

Apesar do seu sucesso, os kibutzim, onde vive 3% da população judaica, cerca de 125.000 israelitas, em 270 kibutzs que albergam entre 200 a 2000 indivíduos, e produzem 50% dos bens agrícolas e 9% dos bens industriais, experimentam hoje problemas práticos e ideológicos. Contrastando com a insegurança urbana, os kibutzs desfrutam de segurança e altos padrões de qualidade de vida, sendo vistos pelo resto de Israel como “paraísos na terra” ou “comunidades de milionários”. Financiados ilimitadamente com capital obtido na Diáspora pela Agência Judaica (Sochnut), o seu sucesso económico volatizou o espírito pioneiro e comunitário e as suas motivações ideológicas. Actualmente os kibutzs possuem grandes unidades industriais, é o caso de Degania ou Afikim que são geridas por directores e pessoal técnico exterior, segundo critérios puramente capitalistas; bem como hotéis, restaurantes e outras actividades económicas não agrícolas, responsáveis pela quase totalidade dos seus rendimentos, o que conduziu ao desvirtuamento do originário processo organizativo e decisório, e a remune-rações altamente diferenciadas. Nalguns casos, as empresas industriais foram separadas das comunidades e do seu poder decisório por gestores e directores que progressivamente foram tomando o seu controle. Os seus membros, tornados proprietários e empregadores trabalham agora para o seu próprio benefício, substituindo o interesse comunitário pelo pessoal. Os voluntários, movidos pela ideologia, são agora largamente encarados como mão-de-obra barata pelo kibutz, o que tem provocado uma sangria de jovens membros desiludidos e em busca de melhores e gratificantes condições de vida no exterior.

Além do kibutz as unidades agrícolas israelitas são organizados segundo outros dois tipos: o Moshava, pequeno aldeamento agrícola mais ou menos auto-suficiente, explorado a título individual e como empresa privada pelo colono e sua família, e o Moshav Shittufi, comunidade cooperativa que combina a propriedade e o trabalho agrícola e fabril individual, familiar e separado (como no Moshava), com a distribuição e comercialização cooperativa da produção pelo colonato (como no kibutz).

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* Fernando Amorim

Mestre em História-História Moderna pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Docente na UAL.

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