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Onde estou: | Janus 2004 > Índice de artigos > Conjuntura internacional e nova Europa > Turbulências no mundo contemporâneo > [Afeganistão pós-“taliban”: entre o medo e a esperança] | |||
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AQUI! Independentemente das críticas possíveis, a intervenção americana lançada a 7 de Outubro de 2001 constituiu-se na melhor oportunidade das últimas décadas para o país. Hoje, depois de 23 anos de guerra ininterrupta, o Afeganistão está oficialmente em paz, ainda que várias guerras continuem a ser travadas nos seus 650.000 quilómetros quadrados de território, ensanduichado entre o Médio Oriente, a Ásia Central e o subcontinente indiano. Transformar a designação oficial na experiência quotidiana dos mais de 20 milhões de afegãos (entre 22 e 25 milhões, o último recenseamento nacional aconteceu em 1979) não é impossível. Consegui-lo implica que a comunidade internacional mantenha os compromissos assumidos há dois anos, quando os repressivos islamistas taliban, então no poder há cinco anos, combatidos pela coligação de diferentes forças étnicas reunidas na Aliança do Norte, foram afastados por recusarem abdicar do abrigo dado a Osama bin Laden, considerado por Washington instigador dos ataques terroristas de Setembro. A América e os seus aliados prometeram, na altura, que a guerra seria travada não apenas em nome da segurança global, mas também pelos afegãos, em nome da sua libertação e do seu futuro. Quando a conferência de Bona, que reuniu representantes das várias facções e etnias afegãs sob a égide da ONU, escolheu como líder interino o pashtun Hamid Karzai, o Afeganistão era um país destroçado. A ONU estimava que seriam precisos 10 mil milhões de euros para os primeiros cinco anos de reconstrução, o Banco Mundial calculava que desminar o país custaria 600 milhões e a UNESCO avaliava em pelo menos 10 anos o período necessário para reconstruir o sistema educativo. No papel, e até certo ponto, também na prática, muito foi feito desde então. Segundo dados da UNICEF, 18 escolas femininas foram atacadas entre Janeiro de 2002 e Agosto de 2003 por todo o país. Apesar disso, há 4,2 milhões de crianças a estudar em 7.000 escolas diferentes e registou-se um aumento de 37% no número de raparigas a frequentar o ensino (400.000 mil em 2003). De acordo com os últimos dados do Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR, “Afghanistan Humanitarian Update N.º 68”, 15 de Agosto de 2003), 390.000 afegãos regressaram ao país nos primeiros meses do ano. Desde 2001, mais de 2,3 milhões voltaram a casa no âmbito do programa conjunto do ACNUR e do Governo transitório. Quando os taliban caíram calculava-se que existissem mais de 5 milhões de refugiados, a maioria no Paquistão e no Irão. A estes juntavam-se 1,5 milhões de deslocados internos, reduzidos agora a cerca de 210.000.
As dificuldades em garantir segurança Os sucessos, explica a agência da ONU, “foram perturbados por uma torrente de ataques que mataram trabalhadores humanitários e muitos outros afegãos, obstando à distribuição de ajuda em algumas áreas” e levando mesmo ao encerramento temporário de várias delegações da ONU em províncias do Sul e do Leste. Dos 185 milhões de dólares do orçamento do ACNUR para 2003, até Agosto a agência tinha recebido 115 dos dadores. Alguns dos grandes projectos de reconstrução estão em curso, ainda que com atrasos. O túnel Salang, que iga Cabul ao Norte, deteriorado pela guerra, está a ser reparado. Mais a sul, engenheiros americanos esperam terminar a repavimentação da estrada Cabul-Kandahar até ao fim do ano, diminuindo para um terço o tempo de uma viagem que dura dezoito horas. Segundo um relatório do Center on International Cooperation, da Universidade de Nova Iorque, dos 5 mil milhões de dólares pedidos para a reconstrução, menos de mil milhões estavam de facto a ser gastos em programas lançados até 31 de Maio. E apesar dos pequenos negócios visíveis nas principais cidades, de acordo com a mesma fonte, sectores como a energia, as telecomunicações ou o desenvolvimento do sector privado receberam praticamente nada. Uma das raras reformas preconizadas pelos taliban a receber aplausos da comunidade internacional foi o combate à cultura do ópio. Antes a principal receita do país, a milícia islâmica fez a produção decrescer em 90%, condenando à falência milhares de agricultores. Assim que o regime caiu estes recomeçaram a plantar e o país é de novo o principal fornecedor mundial. Para combater este problema, tal como para assegurar o cumprimento de todas as reformas, há que enfrentar a dificuldade que ensombra todas as outras – a continuada falta de segurança. Dois projectos essenciais com atrasos consideráveis são a criação do novo exército nacional e o programa de desarmamento, desmobilização e reintegração (DDR) dos estimados 100.000 combatentes leais a diferentes senhores da guerra. O Governo quer criar um exército de 70.000 soldados e uma força policial de 50.000 agentes. Até Junho, apenas 4.000 soldados estavam treinados. O arranque do desarmamento foi adiado várias vezes, depois de se ter concluído não ser exequível sem uma reforma do Ministério da Defesa. Principal exemplo do desequilíbrio étnico no Governo, este Ministério, liderado pelo tajique Mohammad Qasim Fahim, enfrenta a desconfiança de grande parte da população, de maioria pashtun. Karzai anunciou a intenção de o reformar, processo que estava em curso em Setembro. No mesmo mês, as instalações especiais da ONU para implementar o DDR estavam prontas a iniciar a fase piloto do programa em seis das 32 províncias do país. Combates entre os exércitos privados dos vários senhores da guerra que, na prática, controlam o país no exterior de Cabul, foram permanentes ao longo dos últimos dois anos. Nos últimos meses um ressurgimento dos taliban no Sul e no Leste veio complicar mais ainda a precária situação. Apesar da presença de 11.500 soldados da coligação liderada pelos EUA que continua a combater na região suspeitos terroristas e taliban, estes conseguiram reagrupar-se, em parte no lado paquistanês da fronteira, lançando em Agosto ataques com centenas de combatentes.
Riscos de nova guerra civil Sem capacidade para derrubar o Governo de Karzai, estas forças de desestabilização perturbam a reconstrução e a distribuição da ajuda e minam a confiança dos afegãos. Ao mesmo tempo, como admitem responsáveis governamentais, a violência provocada pelos senhores da guerra e a ausência de progressos, mais significativa em algumas regiões, arrisca-se a contribuir para a emergência de um apoio popular aos membros do antigo regime. A comunidade internacional assegura a segurança às instituições do Governo na capital, através da Força de Assistência e Segurança mandatada pela ONU. Os seus 5.000 soldados passaram a 1 de Agosto para o controlo da NATO e a organização anunciou já em Setembro estar a considerar o alargamento da missão às províncias, uma medida há muito reclamada pelo Governo e pela ONU. Por enquanto, fora da capital, funcionam em Bamian, Kunduz, Gardez e Mazar-i-Sharif Equipas de Reconstrução Provisionais – grupos de 60 a 100 soldados com uma função híbrida, passando pela segurança aos agentes humanitários, trabalho de reconstrução e intermediação entre as autoridades locais e o Governo central. Apesar de liderado por um pashtun (38% da população), o Executivo interino padece desde o início de um desequilíbrio a favor da etnia tajique (segundo grupo em número, cerca de 25%). Independentemente da concretização das eleições na data prevista, estas arriscam-se a não serem reconhecidas pela maioria pashtun, alerta o International Crisis Group (“The Problem of Pashtun Alienation”, 5 de Agosto de 2003). Centrado nas áreas onde a coligação militar combate os taliban, membros da mesma etnia, é a este grupo da população que menos tem chegado a ajuda humanitária e a reconstrução. E depois das eleições, avisa o grupo independente, há riscos de uma guerra civil como a que marcou o país no início dos anos 90. Um Estado pode subsistir sem muitas coisas, mas não sem um exército e uma polícia profissionais ou sem um sistema de justiça. Mesmo com eleições. Em Agosto, num relatório ao Conselho de Segurança da ONU, Lakhdar Brahimi, o representante especial da organização para o país, defendeu que sem um aumento da segurança e um fortalecimento das instituições governamentais as eleições serão inúteis. Entre os que temem os comandantes regionais que fazem a lei há décadas e os que receiam os taliban, a esperança começa a esmorecer. Como descreveu em Setembro numa conferência memorial Massood Khalili, antigo colaborador de Ahmed Shah Massoud, lendário líder na luta contra a ocupação soviética (1980-1989) e o regime taliban, assassinado a 9 de Setembro de 2001: “As pessoas vivem entre o medo e a esperança. A esperança é que tenhamos um governo, apoio internacional e um roteiro para a reconstrução começada. O medo é que vemos a emergência de um inimigo que há seis meses todos pensavam estar completamente destroçado. Talvez as esperanças fossem muito altas na altura, mas são muito menores agora”.
Informação Complementar Direitos Humanos continuam por respeitar Num país tão marcado pela guerra como o Afeganistão, só a conjugação de muitas vontades possibilita a paz. Apesar do radicalismo que marcou a passagem dos taliban pelo poder e dos ataques que membros da milícia fundamentalista protagonizaram nos últimos meses, muitos afegãos consideram-se mais ameaçados por líderes de diferentes facções tribais, incluindo responsáveis provinciais e mesmo do Governo central, do que pelos estudantes de teologia que estes se aliaram para derrotar há dois anos. A designação “senhores da guerra” refere-se, segundo uma definição do United States Institute of Peace (“Unfinished Business in Afghanistan”, Abril de 2003), “a indivíduos que exercem uma combinação de poder militar, político e económico fora de um quadro legal ou constitucional.” Antigos comandantes da Aliança do Norte (coligação de forças uzbeques, tajiques e hazaras, formada para resistir aos taliban, da etnia maioritária no Afeganistão, os pashtun), colaboraram de perto com os Estados Unidos para derrotar o regime. Apoiados financeira e militarmente antes do derrube dos taliban, alguns continuam a receber dos americanos este apoio para colaborarem na captura de membros da Al-Qaeda. Num relatório publicado a 29 de Junho de 2003, a Human Rights Watch (HRW) documenta uma série de abusos de direitos humanos levados a cabo por senhores da guerra ou com a sua conivência no Sudeste do Afeganistão, uma das áreas mais densamente povoadas do país. A investigação, desenvolvida entre Janeiro e Junho, centrou-se nesta região, mas o relatório, intitulado “Matar é muito fácil para nós” (frase dita por homens armados a um editor afegão de Cabul que publicou uma caricatura do Presidente Hamid Karzai e do ministro da Defesa, Mohammed Fahim), sustenta que as violações documentadas se sucedem em todo o território. Os três principais tipos de abuso são ofensas criminosas violentas (roubo, extorsão e rapto); ataques governamentais a membros de instituições políticas ou mediáticas; e violações dos direitos humanos de mulheres e raparigas, com as consequentes repercussões ao nível da segurança, liberdade de expressão e actividade política. Os abusos descritos, sublinha a organização, “foram ordenados, cometidos ou permitidos por responsáveis governamentais”. Pior, continua o relatório, são cometidos por “pessoas que não teriam chegado ao poder sem a intervenção e o apoio da comunidade internacional”. Trata-se então de uma situação que não era inevitável e que se deve, em grande parte, “a decisões, actos e omissões dos EUA, dos governos de outros membros da coligação e de parte do próprio Governo transitório”. “A continuação de financiamentos, operações conjuntas e confraternização com os senhores da guerra enviou, no mínimo, mensagens contraditórias sobre os seus objectivos e intenções”, acusa o grupo. Inverter esta situação é possível, sustenta a organização não-governamental. Para isso, entre outras medidas, é urgente expandir o mandato da Força Internacional de Assistência e Segurança (limitado ainda à capital), acelerar a criação de um exército nacional e o programa de desarmamento, proibir os partidos políticos (cuja formação foi autorizada num decreto de Agosto) de organizarem milícias armadas, promover a investigação das queixas de abusos, incluir no mandato militar das forças americanas no país a protecção dos direitos humanos e no da Missão de Assistência da ONU a emissão periódica de relatórios e recomendações sobre a situação dos direitos humanos. Se as recomendações forem ignoradas pelos vários actores da comunidade internacional envolvidos no Afeganistão, o processo de Bona pode ainda assim prosseguir, mas, avisa a HRW, no que diz respeito às violações dos direitos humanos, “depois das eleições, pode ser tarde de mais” para actuar.
Um recomeço incerto 2001 2002 2003
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