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Janus 2004



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A posição da Coreia do Norte

Luís Tomé *

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A posição da Coreia do Norte relativamente ao incumprimento de todos os acordos de não proliferação nuclear explica-se parcialmente como uma opção de dissuasão da intervenção norte-americana no país. A posição norte-coreana de retaliar com “tudo o que tem” face a qualquer ataque, a sua capacidade nuclear comprovada – no final de 2002 reactivou a central nuclear de Yongbyon e declarou a saída do tratado de Não-Proliferação Nuclear – assim como capacidade e meios militares, tornam uma possível intervenção militar na Coreia um “pesadelo a evitar a todo o custo”.

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A crise em torno do programa norte-coreano de armas nucleares e de exportação de tecnologia míssil afigura-se como um dos desafios político--estratégicos mais complexos para os EUA, e um teste crucial para os regimes de não proliferação. Este problema é ainda decisivo para a estabilidade da Península Coreana e de toda a Ásia Oriental, em particular do Nordeste Asiático, e pode representar uma séria ameaça à ordem e à segurança internacional, por via das suas múltiplas conexões com os regimes de não proliferação e os impactos que poderá ter na estratégia de outros países, qualquer que seja a evolução desta crise e as respostas para ela delineadas.

 

Razões da crise

No final de 2002 e início de 2003 (ver cronologia do texto seguinte), a Coreia do Norte admitiu ter um programa clandestino de enriquecimento de urânio para armas nucleares, suspendeu a moratória sobre testes de mísseis balísticos, desmontou o equipamento de selagem e vigilância da Agência Internacional da Energia Atómica (AIEA) destinado a monitorizar as suas instalações suspeitas, expulsou os inspectores da AIEA, reactivou a central nuclear de Yongbyon e anunciou a intenção de reabrir uma central de reprocessamento para começar a produzir plutónio para armamento, declarou a sua saída do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), renunciou aos acordos celebrados com a AIEA, ameaçou retaliar com armas nucleares a Coreia do Sul, o Japão e os próprios EUA se estes desencadeassem uma acção preventiva contra qualquer das suas instalações, prontificou-se a responder com um ataque preventivo a qualquer reforço militar americano na região, e lançou mísseis que sobrevoaram a Coreia do Sul e o Japão. Ou seja, Pyongyang violou todos os mecanismos destinados a contrariar a proliferação de armas nucleares e de tecnologia míssil, e aos quais a própria Coreia do Norte tinha previamente aderido ou dado o seu acordo: TNP, AIEA, Agreed Framework, Declaração Conjunta Norte-Sul sobre a Desnuclearização da Península Coreana, moratória sobre testes de mísseis balísticos. Entretanto, Pyongyang continuou a “esticar a corda” e outros incidentes paralelos contribuíram para aumentar a tensão: um carregamento de mísseis Scud norte-coreanos foi descoberto por americanos e espanhóis num navio interceptado a caminho do Iémen; caças norte-coreanos interceptaram e perseguiram um avião de reconhecimento americano em espaço aéreo internacional; a Coreia do Norte anunciou que “pode não ter outra opção” senão violar o armistício celebrado com a Coreia do Sul em 1953, e suspendeu os contactos militares com o comando da ONU encarregue de fiscalizar esse armistício e a Zona Desmilitarizada; e já em Abril de 2003, Pyongyang assumiu claramente possuir armas nucleares.

Por seu lado, os Estados Unidos suspenderam os fornecimentos petrolíferos gratuitos para a Coreia do Norte (que ascendiam a 500 mil toneladas por ano), e deslocaram vinte e quatro bombardeiros de longo alcance B-1 e B-52 para a sua base aérea em Guam, a 3.500 km de Pyongyang; o Korean Energy Development Organization (KEDO), consórcio internacional montado no quadro do Agreed Framework, suspendeu a construção dos dois reactores LWRs destinados a fornecer energia à Coreia do Norte; e os três maiores doadores – EUA, Japão e Coreia do Sul – para o projecto do Programa Alimentar Mundial (PAM) na Coreia do Norte reduziram radicalmente as suas doações: os EUA passaram de 340 mil toneladas em 2001 para 100 mil em 2002; o Japão, que doava mais de metade da ajuda alimentar em 2001, nada deu em 2002. Ora, tudo isto aconteceu num contexto marcado pela crise em torno do Iraque – também muito motivada pela questão da proliferação das armas de destruição maciça –, pelos novos conceitos estratégicos de “acções preventivas/preemptivas” dos EUA no combate ao terrorismo e à proliferação, e ainda pelos ecos do discurso em que G. W. Bush se referiu ao “eixo do mal”, incluindo explicitamente nele a Coreia do Norte, além do Iraque e do Irão.

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Motivações norte-coreanas

Por detrás de toda a retórica, do comportamento e das ameaças norte-coreanas, há um endémico complexo de vulnerabilidade e um enorme sentimento de insegurança, num país que vive há mais de uma década sob o risco do colapso iminente: depois de doze anos consecutivos de fome, estima-se que tenham morrido de inanição entre três a cinco milhões de pessoas. São frequentes os relatos de canibalismo e do recurso às raízes ou aos ratos entre a população norte-coreana para tentar saciar a fome. Por isso mesmo, em 1995, o PAM criou o apoio de emergência ao país, sendo o seu maior projecto – canalizou para lá, em 2001, o maior auxílio alimentar da história, 800 mil toneladas. É certamente uma das maiores tragédias à escala global, mas cuja dimensão é verdadeiramente impossível de confirmar pelo secretismo do último regime estalinista existente no planeta.

Serve isto para dizer que, além da sobrevivência do regime, a grande preocupação das autoridades de Pyongyang é evitar o colapso do próprio país. Em grande medida, esta crise resulta da necessidade da Coreia do Norte obter ajuda internacional, utilizando o trunfo ou a chantagem das armas nucleares e a venda de tecnologia míssil para obter contrapartidas financeiras, alimentares, energéticas e a suspensão/redução das sanções americanas. É certamente uma estratégia muito arriscada que pode revelar-se fatal, mas a verdade é que teve algum êxito na crise de 1993-94 com a celebração do complexo Agreed Framework.

Por outro lado, o forte sentimento de vulnerabilidade e de insegurança face à pressão americana é fundamental para compreender o comportamento norte-coreano. Pyongyang teme ser o próximo alvo dos americanos, numa espécie de efeito dominó sobre os países integrantes do “eixo do mal”. Daí a instrumentalização que faz dos seus programas nuclear e de mísseis, não só para dissuadir um possível ataque preventivo/preemptivo dos Estados Unidos contra as suas instalações, como para estabelecer negociações directas com Washington e obter mesmo um pacto de não-agressão com os EUA. A sua conduta é muito mais justificada pelo receio das intenções da Administração Bush do que por uma efectiva vontade em atacar a Coreia do Sul, o Japão ou os EUA.

O problema é que tal chantagem se revela cada vez mais difícil de sustentar e gerir pela Administração americana e não só, pelas consequências que pode acarretar no combate global contra a proliferação das armas de destruição maciça e de tecnologia míssil.

 

Jogo e papel da China

O papel da China pode ser determinante para o desfecho desta crise. Não só porque Pequim é o único verdadeiro aliado de Pyongyang – levando o Presidente Bush e outros líderes a procurar que a influência e a pressão chinesa moderem o comportamento norte-coreano –, como também porque os seus interesses nacionais acabam por estar em jogo.

Os cálculos políticos da China em relação à Coreia, e à Coreia do Norte em particular, são complexos e de longo prazo. Fundamentalmente, Pequim procura impedir o colapso do regime de Pyongyang e da Coreia do Norte enquanto Estado, pelas previsíveis consequências negativas que tal implicaria sobre a própria segurança e estabilidade da China e do Nordeste Asiático. Por outro lado, o relacionamento privilegiado que mantém com Pyongyang confere a Pequim um papel e um estatuto único, permitindo-lhe prosseguir outros dois objectivos: consolidar e desenvolver relações mais robustas com a Coreia do Sul; e ir aumentando a sua influência ou mesmo o seu domínio sobre a Península Coreana, considerada pela China como sua zona natural de influência.

Mas, se tais objectivos não são coincidentes com os de outras potências regionais ou com os dos EUA, há outros interesses da China que coincidem e que podem determinar a evolução da crise: a reforma do regime e do sistema norte-coreano – Pequim está entre os que mais têm pressionado Pyongyang a promover profundas reformas económicas e sociais, apontando o seu próprio modelo; a cooperação e a integração Norte/Sul através de meios pacíficos e de mecanismos económicos e sociais, que no futuro possam conduzir à unificação política; e a estabilidade da Península e do Nordeste Asiático, nomeadamente por via de uma Coreia desnuclearizada (Norte e Sul) e de um comportamento responsável por parte de Pyongyang em matéria de segurança.

Isto não significa que Pequim aceita o statu quo na Península (preferiria certamente a redução ou o fim da presença militar e da influência dos EUA, e o lançamento de amplas reformas na Coreia do Norte), embora o prefira a uma mudança de regime em Pyongyang, ao colapso da Coreia do Norte ou a uma forte desestabilização da Coreia e de todo o Nordeste Asiático.

Na realidade, em nome dos seus próprios interesses relacionados com a segurança, a estabilidade, o desenvolvimento económico e estatuto político-estratégico, a China tem boas razões para assumir um papel determinante na resolução pacífica desta crise. A existência de uma Coreia do Norte nuclear pode levar a uma significativa alteração dos cálculos estratégicos na região (e até no mundo) e alterar a balança de poder no Nordeste Asiático, na medida em que a Coreia do Sul, o Japão e até Taiwan podem pretender segui-la. Por isso mesmo, em relação ao papel da China, se os EUA afirmam querer resolver o problema pacificamente com a Coreia do Norte, não é porque temam o envolvimento militar de Pequim e um confronto com a China, mas antes porque confiam que esta pode ser um factor de moderação de Pyongyang e um actor determinante para a resolução pacífica desta crise – no interesse de todas as partes e à semelhança do que já aconteceu no diferendo de 1993-94.

 

Dilemas americanos e elementos para uma estratégia adequada

Tudo o que foi dito anteriormente ajuda a explicar os “porquês” da persistência americana numa solução pacífica para a crise norte-coreana e a “diferença” em relação ao tratamento dado ao Iraque. Em síntese, para os EUA, a questão da Coreia coloca-se muito mais ao nível das suas capacidades e do precedente proliferante e menos no plano das suas intenções em termos de se configurar como uma ameaça real, directa e imediata. No entanto, também é verdade que a opção militar é muito mais arriscada no caso da Coreia do que no Iraque (ver Informação Complementar).

Mas exactamente porque muitas vezes se insiste nos riscos associados ao eventual uso da força, daqui podem resultar interpretações erradas e/ou ainda mais perigosas para a segurança internacional. Desde logo, porque se passar a mensagem de que não se ataca a Coreia do Norte pelo receio do seu poderio militar adquirido, entretanto é fazer-se um convite a que outros países, nomeadamente os denominados “Estados Párias”, iniciem de imediato uma corrida aos armamentos para os tornar “imunes” a um ataque americano, com óbvias consequências negativas para a segurança mundial e a frágil estabilidade de algumas regiões.

Por outro lado, condescender com as patentes violações norte-coreanas dos regimes de não proliferação contribuiria para o desmantelamento definitivo destes mecanismos fundamentais de regulação da ordem internacional – podem seguir-se a Coreia do Sul, o Japão e Taiwan, mas também o Irão, a Síria, a Líbia, a Argélia, o Egipto, a Arábia Saudita, o Iémen, o Sudão, e talvez novamente o Brasil e a África do Sul, entre outros. O resultado seria, dentro de uma década, um mundo coberto de Estados nucleares, alguns profundamente hostis entre si e outros com ligações a grupos terroristas – o pior cenário de todos.

Por tudo isto, embora a Administração Bush prefira uma solução pacífica para remover as armas nucleares norte-coreanas, não enjeita definitivamente a possibilidade de um conflito militar. Simultaneamente, parece hesitar entre continuar a pressionar Pyongyang para regressar aos regimes de não proliferação e aos quadros do TNP, da AIEA e do Agreed Framework, num desafio que pode tornar-se insolúvel e eternizar-se, ou aceitar a inevitabilidade de que a Coreia do Norte se torne na próxima potência nuclear, concentrando a sua acção nas actividades proliferantes norte-coreanas e esperando aqui maior colaboração de Pyongyang. Entre condescender e aceitar a chantagem ou pressionar até um possível conflito, o dilema é tremendo para a Administração Bush. Washington procura, entretanto, traçar uma outra estratégia: promover um “concerto das potências” – EUA, China, Rússia, Japão, Coreia do Sul e União Europeia – que consiga resolver “pacificamente” o problema norte-coreano. É um caminho tortuoso e complexo, mas sem dúvida o que melhor serve a estabilidade da Península Coreana e a segurança internacional.

 

Informação Complementar

Os riscos da opção militar

Ao contrário do que muitas vezes se afirma, um ataque preventivo ou preemptivo contra instalações nucleares norte-coreanas seria pouco adequado, quer pela predisposição de Pyongyang para “retaliar com tudo o que tem” (predisposição a que a CIA e o Pentágono conferem elevada credibilidade), quer pelos enormes riscos de um confronto global, cujas consequências seriam imprevisíveis. Por outro lado, um ataque preventivo só poderia ser justificado no sentido de impedir a Coreia do Norte de dispor de armas nucleares (à semelhança do que fez Israel contra o reactor nuclear iraquiano de Osirak em 1981), não num quadro em que o adversário disponha já de uma ou duas bombas nucleares. Ou seja, uma acção preventiva ou preemptiva contra posições e instalações norte-coreanas não seria suficiente para destruir todas as capacidades de retaliação de Pyongyang, além de que, perante os riscos óbvios de escalada, qualquer acção deste tipo requereria um pré-posicionamento de forças em larga escala que não poderia escapar à vigilância norte-coreana.

Na realidade, qualquer conflito com a Coreia do Norte teria gravíssimas consequências, em particular para a Coreia do Sul. O grande centro urbano de Seul, com mais de 10 milhões de habitantes e onde também está a maior parte dos 37 mil militares americanos estacionados no país, situa-se a menos de 80 km da zona desmilitarizada que separa o Sul e o Norte.

Pyongyang tem ao seu dispor mais de 1 milhão de soldados, na sua esmagadora maioria estacionados junto à fronteira com o Sul, equipados com mais de 8 mil unidades de artilharia, 3.500 carros de combate, quinhentos ou seiscentos caças-bombardeiros, duzentos helicópteros, dezenas de submarinos e algumas centenas de mísseis capazes de atingir toda a Coreia do Sul ou o Japão com ogivas convencionais ou não convencionais (a Coreia do Norte está há muito munida com armas químicas e bacteriológicas) e, provavelmente, uma ou duas bombas nucleares.

Este vasto arsenal – suportado por um orçamento anual de 6 biliões de USD, o que representa cerca de 40% do PIB norte-coreano, segundo algumas estimativas – torna extraordinariamente complexo montar um dispositivo de defesa eficaz em caso de conflito. Quando a Administração Clinton ponderou uma operação militar contra a Coreia do Norte em 1993-94, o Pentágono calculou quatro meses de combates de elevada intensidade, envolvendo os mais de 600 mil militares sul-coreanos e meio milhão de efectivos americanos em reforço do dispositivo já existente na Coreia do Sul. Nessa altura, conselheiros do Presidente Clinton estimaram em 52 mil as “baixas” americanas nos primeiros noventa dias de guerra – em perspectiva, diga-se que os EUA perderam 55 mil soldados na Guerra da Coreia de 1950-53 e 58 mil na Guerra do Vietname, entre 1957 e 1975. Algumas estimativas apontaram então para um número total de vítimas entre o milhão e milhão e meio, além de custos económicos na ordem dos triliões de USD. Por tudo isto, a opção militar foi na altura abandonada, e ainda hoje não é encarada como verdadeira opção, mas como um pesadelo a evitar a todo o custo.

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* Luís Tomé

Licenciado em Relações Internacionais pela UAL.Mestre em Estratégia pelo ISCSP. Especialista em questões Estratégicas e Internacionais. Docente na UAL. Assessor no Parlamento Europeu.

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