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- JANUS 2004 -

Janus 2004



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Esboços de multilateralização no Afeganistão e no Iraque

João Maria Mendes *

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A invasão do Iraque demonstrou a necessidade de multilateralização das intervenções de carácter global. Após a intervenção no Afeganistão, os EUA apelaram ao envolvimento da NATO, na sequência da paralisação do seu programa de reconstrução do país. No Iraque, os EUA tentaram angariar novos parceiros para assegurar o esforço de ocupação e de reconstrução, reservando para si o papel e os privilégios de principal ocupante: a extinção dos fogos dos poços de petróleo, sua recuperação e extracção ficaram a cargo da KBR, assim como o principal contrato de reconstrução foi feito com a Bechtel.

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Dois anos depois dos atentados de 11 de Setembro em Nova Iorque e Washington, e concluídas duas guerras de retaliação por eles suscitadas — contra o Afeganistão dos taliban e o Iraque de Saddam Hussein — a situação nestes dois países acentuava a necessidade de reflexão sobre a especificidade da luta contra os terrorismos, a legitimação multilateral das acções de guerra e os futuros caminhos da paz e da segurança internacionais.

No Afeganistão, o derrube do regime que albergava a Al Qaeda e sua substituição por um frágil poder central não-islamista (em torno do presidente Hamid Karzai) não propiciou o fim da ocupação militar por parte dos vencedores — antes a reduziu a um programa caro e pouco eficaz. O país voltou ao tráfico de drogas e de madeiras, sob o antigo jugo policentrado dos “senhores da guerra” locais, e tornou-se palco de todos os tipos de corrupção, perante a indiferença norte-americana.

A incapacidade para garantir a segurança levou os EUA a apelar à NATO para que se envolva decisivamente no antigo país dos taliban, cujo programa de reconstrução se encontra paralisado (o envolvimento da NATO iniciou-se em 1 de Agosto de 2003).

Menosprezado pelos media devido à importância de duas outras frentes — o Iraque e o conflito israelo-palestino — o Afeganistão tem apresentado, em matéria de segurança, um rosto de que é exemplo a semana de 13 a 20 de Agosto de 2003, com os seus mais de cem mortos: bomba num autocarro em Helmand, Sul do país; batalha entre forças de comandantes fiéis ao governo central em Oruzgan; confrontos importantes nas províncias de Khost e Taktika entre soldados e centenas de taliban reorganizados...

Enquanto comandantes regionais e representantes do poder central enriquecem, garantindo a segurança de todos os tráficos, as forças especiais americanas realizaram sobretudo, durante longos meses, operações pontuais na enorme fronteira porosa com o Paquistão, para onde a Al Qaeda deslocou a reorganização dos seus santuários locais.

No Iraque, a “guerra de baixa intensidade” que forjou a aliança táctica entre ex-baasistas, nacionalistas, “fedayins” vindos de países vizinhos e ex-militares do dissolvido exército transformou-se, no Verão de 2003, numa guerrilha urbana organizada e poderosa, capaz de criar diversos incidentes mortíferos diários, e de levar a cabo atentados de cada vez maior envergadura, visando desmobilizar e desarticular qualquer programa de reconstrução nacional dirigido pelas potências ocupantes e seus “aliados” (países, ONG ou organizações internacionais).

Depois da queda de Saddam, muitos baasistas iraquianos “emigraram” para as forças radicais islamistas; para além das tensões interétnicas e inter-religiosas (com destaque para a luta interna entre xiitas “moderados” e “radicais”, ela própria geradora de um terrorismo mortífero), a base motivadora do recrutamento anti-invasores tornou-se mais “binladeniana” — como se o argumentário da Al Qaeda ocupasse o lugar, provisoriamente esvaziado, do maior denominador comum.

Este fenómeno (que é igualmente árabe e islâmico, e não apenas iraquiano) explicará a declaração de “vitória” do líder da Al Qaeda, reaparecido em imagens da Al Jazira para o segundo aniversário do 11 de Setembro: ele afirmava estar a “ganhar a guerra” — sem dúvida referindo-se à crescente aceitação das suas ideias no mundo islâmico. Facto é que, no Iraque, o reconhecimento da degradação da segurança e das morosidades do programa de reconstrução passaram a fazer a unanimidade dos observadores.

Enquanto recordava o derrube das torres gémeas do World Trade Center, a administração americana já tentava obter, no quadro da ONU, quatro meses depois do termo das “operações militares principais”, uma força adicional de 10 a 15 mil homens para o Iraque (a força multinacional sob comando unificado pedida ao Conselho de Segurança) e mais partilha financeira no esforço de reconstrução do antigo país de Saddam. A 23 de Setembro, George W. Bush pedia, na Assembleia Geral da ONU, 50 mil milhões de dólares e tropas à comunidade internacional, para a reconstrução do Iraque em ambiente mais seguro

 

Luta antiterrorista

Em matéria de luta antiterrorista, e enquanto os serviços de informações falavam de 100 mil adeptos activos de bin Laden espalhados por mais de uma dúzia de países, a administração George W. Bush sublinhava que dois anos de luta contra a Al Qaeda levaram à prisão de 3.000 activistas ligados à organização e à de dois terços dos seus dirigentes. Mas uma análise mais minuciosa dos êxitos desta luta mostra que a maioria de tais prisões resultaram de acções policiais mais ou menos clássicas (partilha de informações, infiltrações, denúncias, buscas em residências, escutas telefónicas, devassa de correio electrónico e de computadores pessoais, etc.), e não dos actos de guerra desenvolvidos.

Ao mesmo tempo, a Al Qaeda — e grupos que lhe são próximos — foi mostrando que continuava viva: os atentados de Outubro de 2002 em Bali (202 mortos), perpetrados pela Jemaah Islamiyah, de 12 de Maio de 2003 em Riade (35 mortos), de 16 de Maio em Casablanca (mais de 40 mortos), de 5 de Agosto em Jacarta (10 mortos) e, no mesmo mês, os dois atentados em Bagdad, contra a embaixada da Jordânia e contra a sede local da ONU (23 mortos, entre os quais Sérgio Vieira de Mello, representante da organização), dão conta das novas alianças, da reorganização e inflexão de estratégia da rede terrorista dos islamistas radicais. No mundo islâmico, segundo o “Pew Global Attitudes Project” (Junho de 2003), a maioria das populações pensa que bin Laden “fez o que tinha de ser feito”. Agindo sobre essa percepção generalizada, as intervenções militares americanas e a impotência dos EUA no confronto israelo-palestino têm, entre outras consequências, alimentado o recrutamento terrorista.

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Iraque, Palestina, Israel

No mundo árabe, fortemente identitário e marcado por preocupações regionais (face ao universo islâmico, mais disperso, mais amplo e mais variado), as dificuldades americano-britânicas no Iraque e os sucessivos incumprimentos do calendário do “road map” para a paz israelo-palestina são percepcionados como duas faces da mesma moeda: ou os americanos ganhavam rapidamente e impunham “a democracia” no Médio Oriente, tornando-o “num lugar melhor e menos perigoso para si próprio e para o mundo” (e realizando, assim, o sonho idealista-internacionalista dos neoconservadores e de Donald Rumsfeld), ou se deixavam enterrar no pântano dos nós górdios locais irresolúveis. Iraque e questão israelo-palestina são, assim, as duas pedras de toque, e os dois grandes testes, da nova política americana para a região — e para o mundo. Ora, em Setembro de 2003, a tentativa americana de “regresso à ONU” (prevista por observadores como Ramos Horta desde antes da guerra que fez cair Saddam), a difícil negociação de maior participação internacional na reconstrução do Iraque e a demissão do primeiro-ministro palestino Mahmud Abbas (acompanhada da decisão “de princípio” do Conselho de Segurança israelita de expulsar Arafat de território palestino) mostravam que esses dois cenários se tinham agravado, para os americanos.

 

Impreparação ocupante

Logo após o fim da guerra, Washington substituiu tão discretamente quanto possível a primeira administração militar e civil do Iraque ocupado, dirigida pelo general Jay Garner, próximo de Donald Rumsfeld, que mostrou dramaticamente a sua incompetência: falhou face às pilhagens que instalaram o caos e a insegurança em todo o país; falhou na reorganização do policiamento do território ocupado; falhou no restabelecimento do fornecimento de água e energia eléctrica; confirmou não dispor de qualquer plano concreto para a gestão do país após o derrube do regime; não soube prevenir a lenta instalação da “low intensity war” que, em três meses, viria a fazer mais mortos americanos no terreno do que toda a guerra de 1991.

O primeiro Conselho Governativo Iraquiano, de 25 membros, formado em Julho de 2003 pelo novo administrador americano, Paul Bremer, espelhava a multiplicidade étnica e religiosa do país através de convidados em boa parte oriundos dos exílios, mas só recebeu poderes constituintes — não foi convidado a tornar-se governo — nem mostrou estar preparado para lidar com a complexidade da situação no país. Bremer acelerou igualmente o desmantelamento da administração pública iraquiana e dissolveu as forças armadas nacionais sob pretexto de “desbaasização” do país. Mas essas duas decisões dramatizaram o desemprego maciço e só podiam gerar mais descontentamento e mais radicalização contra vencedores e ocupantes (o desmantelemanto das FA iraquianas marginalizou 400 mil homens dotados de treino militar).

Este balanço punha em evidência que, entregues a si próprias, as administrações americanas do Iraque ocupado eram herdeiras de uma guerra ganha, mas não conseguiriam ganhar a paz. O processo evocava, em pior situação e numa região mais crítica, a experiência afegã, essa sim, marcada pelo desinteresse dos EUA e outros países ricos, depois de derrubados os taliban e instalado um esboço de autoridade nacional não-eleita. A campanha de 2002 no Afeganistão não evitou a posterior instabilização permanente do país, nem os tropeços do “nation building program”: seguiu-se-lhe uma governação central quase inexistente, o desvio dos poderes para os chefes tribais da guerra, a insegurança endémica crescente.

 

Ambiguidade da inflexão

A 11 de Setembro de 2003, enquanto tentava travar as ofensivas militares e novas promessas belicistas do governo Sharon, aceitando ao mesmo tempo os argumentos deste último — “Arafat não é parte da solução, mas parte do problema, e não pode manter-se como interlocutor internacional da causa palestina” — a administração George W. Bush ensaiava, assim, um novo caminho no Iraque: a tentativa americana consistia em carrear, com a caução onusiana (e portanto multilateral), reforços militares e meios financeiros de novos parceiros para a ocupação/reconstrução, sem abdicar das suas prerrogativas de vencedor e principal ocupante.

No que toca à partilha do esforço militar, os EUA pretendiam que outros seguissem o exemplo da Polónia, que desde Agosto assumira, apoiada pela Espanha e por contingentes simbólicos das Honduras e do Salvador, o comando de uma zona crítica que inclui as cidades santas xiitas de Nadjaf e Kerbala. Mas até a Grã-Bretanha só se mostrava disposta a mobilizar para o Iraque mais mil homens. Entretanto, e para além dos seus custos em mortos, a ocupação militar do Iraque fora reavaliada, em Julho de 2003, em 3,9 mil milhões de dólares/mês, em vez dos dois mil milhões previstos por Donald Rumsfeld e pela Casa Branca três meses antes. Custos em mortos: as baixas militares americanas durante as “operações principais” foram 139; entre o fim destas (1 de Maio de 2003) e 20 de Setembro, já eram 165.

Quanto à partilha do esforço financeiro da reconstrução, os EUA tinham-se posicionado mal para a garantir: os vencedores teriam precisado da Siemens alemã e da ABB sueca para reabilitar as centrais eléctricas iraquianas (foram elas que as montaram), e da Alcatel francesa para restaurar a rede telefónica, pela mesma razão. Mas, em vez de recorrer aos serviços da “velha Europa”, os ocupantes apressaram-se a contratar operadores americanos geralmente ligados ao financiamento do Partido Republicano.

Um exemplo: a Kellogg Brown & Root (KBR) ganhou, logo a 24 de Março, o contrato de extinção de incêndios nos poços de petróleo sabotados no sul do Iraque (mas também a gestão dos poços, a extracção e venda do produto da sua exploração), por atribuição directa do Corpo de Engenheiros do Exército americano. A KBR, que se tornou, assim, concessionária de parte das reservas petrolíferas iraquianas, é uma filial da Halliburton, grupo dirigido por Dick Cheney antes de se tornar vice-presidente dos EUA, e que terá negociado, ao longo dos anos, com Estados então classificados como terroristas pelos EUA: Líbia, Irão, Iraque.

Outro exemplo: a Bechtel, principal empresa de obras públicas dos EUA, assinou, logo a meio de Abril, o maior contrato de reconstrução no Iraque (680 milhões de dólares de crédito concedido pelo Senado). A Bechtel foi dirigida por George Schultz, secretário de Estado de Ronald Reagan, e é actualmente presidida por Riley Bechtel, nomeado por George W. Bush membro do Conselho da Exportação, uma consultoria criada pela Casa Branca.

 

NATO no Afeganistão, ONU no Iraque?

Em resposta às iniciativas de Setembro de 2003 dos EUA, a França, secundada pela Alemanha, exigiu que toda e qualquer participação internacional fosse precedida da passagem da soberania política efectiva para mãos iraquianas, num calendário rápido e preciso. A China declarou de novo o seu apoio genérico às posições francesas, e só a Rússia mitigou a sua adesão à “frente da recusa” de 2002, tentando assegurar uma ponte entre a plataforma divulgada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Dominique de Villepin, no Le Monde de 12 de Setembro, e a “autoridade americano-britânica no terreno”.

Para além dos matizes da “frente da recusa” de 2002, e face às crescentes dificuldades americano-britânicas no Iraque e aos falhanços do “road map” israelo-palestino, regressava a ideia de que não existe caminho para a paz fora do quadro da ONU. Mais globalmente, voltava a consciência de que as soluções, militares como políticas, têm de ser multilaterais: a NATO para o Afeganistão, a ONU para o Iraque? Ao mesmo tempo, porém, todos os opositores ao unilateralismo americano — a começar pelos europeus e russos da “frente da recusa” de 2002 — admitiam, em nome do futuro das relações transatlânticas e dos seus próprios interesses nos cenários conflituais, que os EUA não poderiam “perder a face” no novo mundo unipolar de que tinham sido os principais obreiros.

Mas se a nova NATO pode, sem pôr em causa a hegemonia americana, assegurar um envolvimento militar multilateral em novos cenários de intervenção, poderá a ONU, em profunda crise — e fragilizada, precisamente, pelo unilateralismo dos EUA — reformar-se para conseguir protagonismo na recomposição de uma ordem normativa internacional aceite pela maioria dos Estados contemporâneos? Apesar do voluntarismo de Kofi Annan — um secretário-geral que fica na história da organização pela sua combatividade sem quebra — a resposta a esta questão tem sido maioritariamente pessimista.

Conclusão: a 1 de Maio de 2003, George W. Bush assumiu uma memorável encenação a bordo do porta-aviões Abraham Lincoln, para comunicar o fim das “principais operações militares” no Iraque e uma “vitória na guerra contra o terrorismo, suprimindo um aliado da Al Qaeda” (mas a organização de bin Laden, como se viu, só conseguiu penetrar o Iraque a seguir à queda do regime baasista). O conservador Wall Street Journal escreveu, então, que a cerimónia era “o lançamento da campanha para a reeleição em 2004”, campanha que a administração desejava “ancorar, tanto quanto possível, nos temas da segurança nacional”. Menos de cinco meses depois dessa longínqua cerimónia, substituída a primeira administração americana no Iraque, e mostrando-se a segunda incapaz de acelerar a reorganização da vida no país, 150 mil soldados da coligação (cerca de 130 mil americanos e de 20 mil britânicos) mantinham-se ali mobilizados, sem conseguirem assegurar a ordem e a segurança. Das 33 brigadas de combate das forças armadas americanas, 16 estavam no Iraque, e todas as outras, à excepção de três, garantiam a reserva estratégica ou outras missões, do Afeganistão à África e à Coreia do Sul. A rotação das tropas tinha-se tornado problemática, e a convocação de reservistas e o tempo de missão de cada soldado estavam a ser ampliados — o que já provocava a mobilização das famílias de militares, com a campanha “Bring them home now” (Tragam-nos para casa agora). Ora, não será possível trazê-los para casa, nem “agora” nem tão cedo, como insistem, até, os europeus e russos da “frente da recusa” de 2002.

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* João Maria Mendes

Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lovaina (Bélgica). Doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Professor na ESCT e na UAL. Sudirector do Observatório de Relações Exteriores da UAL.

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