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Janus 2004



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Os Estados Unidos no futuro da Europa (II)

Álvaro Vasconcelos *

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As prioridades de segurança definidas pela administração Bush são partilhadas pelos países da UE. Varia no entanto a importância relativa que é concedida a problemas como o terrorismo, armas de destruição maciça, “rogue states”, assim como varia a abordagem relativa a cada uma delas por cada uma das entidades. De uma forma geral os EUA têm procurado a sua segurança no “exercício solitário do poder”, enquanto a Europa marca a sua actuação pela busca do multilateralismo, pela colaboração com os países do Sul, impedindo que a luta contra o terrorismo se torne um “choque de civilizações”.

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Finda a Guerra Fria e passada a tormenta das guerras balcânicas, a importância dos Estados Unidos e da NATO para a segurança europeia e, inversamente, a importância da Europa para a segurança dos Estados Unidos, têm vindo a ser questionadas. Inquietam-se os europeus, não sem motivo, quando constatam que a descoberta pelos Estados Unidos da sua vulnerabilidade, em lugar de os ter levado a procurar nas alianças a sua segurança os levou a procurá-la no exercício solitário do poder.

O impacto de tal evolução da política americana na Aliança Atlântica pode ser devastador e forçar os europeus a procurar garantir autonomamente a sua segurança. No entanto, os desafios que se colocam no continente e nas suas periferias continuam a ser formidáveis, quer na estabilização definitiva dos Balcãs quer na contenção dos problemas de segurança que possam surgir nos países da ex-União Soviética ou na resolução das crises que caracterizam a margem sul do Mediterrâneo. Ou seja, o alargamento para leste e para sul do processo de inclusão europeu implica garantir que os conflitos sejam resolvidos ou contidos. A política de inclusão europeia necessita pois da capacidade militar e política dos Estados Unidos.

As prioridades de segurança definidas pela administração Bush – terrorismo, armas de destruição maciça e Estados fora da lei – são partilhadas pelos europeus, tanto pelas opiniões públicas como pelas elites, como mostram as sondagens. Difere porém a importância relativa que lhes é dada e a forma como devem ser combatidas as ameaças, nomeadamente o terrorismo. Neutralizar o terrorismo transnacional, essencialmente desterritorializado, exige uma colaboração estreita euro-americana, como aliás tem vindo a ser desenvolvida com sucesso desde o 11 de Setembro, nomeadamente no domínio da informação. Esta cooperação, que não é menos essencial para a segurança dos americanos que dos europeus, tem sido levada a cabo não só a nível bilateral mas também envolvendo directamente as instituições comunitárias. Os europeus temem, contudo, que a administração Bush, como afirma Pierre Hassner, “procurando combater um terror indefinido, se arrisca ao mesmo tempo a espalhar as suas réplicas” (1) por privilegiar o instrumento militar sem tomar devidamente em conta factores políticos e sociais, por não procurar a maior legitimidade possível, e por desprezar as sensibilidades do chamado mundo islâmico. Para os europeus, a luta contra o terror deve ser conduzida em estreita colaboração com os países do Sul, e tudo deve ser feito para impedir que se transforme num “choque de civilizações”, num conflito entre o Ocidente e o Islão. Os europeus sabem bem que o seu destino está tão intimamente ligado ao dos americanos, que os erros dos governos norte-americanos são pagos por igual de um e outro lado do Atlântico.

 

Uma perspectiva comum para a regulação mundial

O sentimento crescente de alheamento entre os cidadãos europeus e a política americana e, em menor medida, os sentimentos anti-americanos crescentes nalguns sectores da população europeia, apesar de não serem um fenómeno novo, assumem uma qualidade nova. As maiores divergências entre a Europa e os Estados Unidos centram-se na questão da ordem mundial.

É verdade que no período que se seguiu ao fim da Guerra Fria houve um esforço sério no sentido de encontrar uma plataforma comum para a regulação da globalização e para uma ordem multilateral. O regionalismo, apesar de não serem coincidentes as concepções sobre ele, conferindo aos Estados uma sobredimensão suficiente para competir internacionalmente e pesar na resolução dos grandes problemas mundiais, aparecia a europeus e americanos como um instrumento potenciador dessa regulação. Datam dos anos 90 alguns dos progressos mais significativos neste domínio, com a criação nas Américas do NAFTA e do Mercosul, e com o aprofundamento da integração europeia, nomeadamente através da moeda única. A União Europeia procurou, na mesma altura, alargar a sul o espaço de segurança através da parceria euro-mediterrânica.

Ao regionalismo, como forma mais avançada do multilateralismo, juntaram-se progressos significativos no estabelecimento de normas e regras a nível global e na tentativa de dotar a comunidade internacional de maior capacidade para garantir a sua observância e aplicação.

O sistema multilateral estava perante uma vasta reforma, e emergiam as condições de legitimidade necessárias para que as fronteiras de um Estado não pudessem continuar a conferir protecção quase absoluta para se cometerem crimes contra a humanidade. Começava-se a falar de um “novo multilateralismo” como modelo para a ordem internacional pós-bipolar caracterizado “primeiro, pela noção de que a comunidade internacional, e a Organização das Nações Unidas (ONU) em particular, são responsáveis pela protecção dos direitos dos indivíduos, acima e para além das fronteiras soberanas. Segundo, pelo regionalismo, o qual se tornou num elemento estrutural do sistema internacional no seu conjunto. Terceiro, pela emergência de uma opinião pública global, que manifesta o desejo da sociedade civil de influenciar ou participar na tomada de decisões a nível global” (2).

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Ainda hoje o novo multilateralismo é o melhor contributo que a União Europeia pode oferecer à ordem internacional. Não se trata, como tem sido proposto, de estabelecer uma divisão de trabalho em que a União Europeia, como potência civil, se ocuparia da segurança soft, e os Estados Unidos, como potência dotada de todos os atributos do poder, da segurança hard. Essa divisão de responsabilidades, para além de irrealizável (vide “reconstrução” do Iraque, inclusive nos aspectos mais duros da segurança), esquece que as divergências euro-americanas não têm a ver essencialmente com a natureza do respectivo poder mas são antes de tudo políticas. Resultam de visões próprias e diferentes da ordem mundial e das opções que implicam.

Os europeus privilegiam antes de tudo o multilateralismo, quer na resolução dos conflitos quer na elaboração de normas e regras, e de instituições para as garantir. As divergências transatlânticas sobre a ordem internacional vêm já do tempo da administração Clinton, sobretudo a propósito da legislação extraterritorial aprovada pelo Congresso de maioria republicana. Mas é indiscutível que se agravaram de forma aguda com a “des-assinatura” pela administração Bush do Tratado de Roma, que institui o Tribunal Penal Internacional (TPI), e com o combate sistemático que move ao TPI, com o desfazer dos compromissos em relação a Quioto e com a desconfiança reiterada que demonstra em relação às convenções e mecanismos multilaterais em geral.

Se para o futuro das relações transatlânticas é necessário que a administração americana regresse à sua tradição multilateralista, a União Europeia necessita de resolver o debate sobre a multipolaridade.

O que a União está a construir, como mostra o projecto de Constituição, é um actor internacional diferente das potências do passado, que não se revê no falso dilema de optar entre afirmar-se como uma superpotência num mundo multipolar, capaz de equilibrar o poder americano, ou remeter-se ao papel de actor secundário num mundo unipolar, incapaz de outra coisa que não seja apoiar acriticamente os Estados Unidos. Em ambos os casos se deitaria a perder o que há de inovador e original no projecto europeu e dita à União Europeia a que se constitua como actor internacional essencialmente diferente das potências tradicionais porque põe o acento na defesa de um sistema multilateral eficiente e global que, como sugere Jean-Marie Guéhenno, não é sustentado pela supremacia indefinida dos Estados Unidos, nem guiado pelo valor supremo da independência e da soberania como objectivo último de toda a entidade política. (3)

É verdade que num mundo em que ainda impera em muitos casos a lei da selva, a União tem que ser capaz de intervir militarmente de uma forma unida mas em coerência com os seus valores. A defesa desses valores implica também que a União assuma os grandes desafios da segurança internacional como seus.

Uma Europa unida e com capacidade para agir estará em condições ideais para reconstruir a agenda multilateral euro-americana, adaptando-a às novas exigências da segurança internacional. O Iraque é um importante teste à capacidade da União Europeia e dos Estados Unidos de refazerem as suas relações para bem do interesse de todos.

 

Informação Complementar

EUA, Europa e a crise iraquiana

Jan 2002 – O Presidente norte-americano pronuncia-se, no primeiro discurso sobre o “Estado da União” posterior aos acontecimentos de 11 de Setembro, sobre o que denominou de “eixo do mal”, composto pela Coreia do Norte, Iraque e Irão. Imediatas reacções europeias vieram a público, com o então ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Hubert Vedrine, a acusar de simplista a visão norte-americana e Chris Patten, Comissário Europeu para as Relações Externas, a recomendar algum cuidado com a adopção de posições unilateralistas.

Nov 2002 – O Conselho de Segurança das Nações Unidas vota por unanimidade a resolução 1441, que estabelece um prazo de trinta dias para que Bagdad revele todos os seus programas de armas de destruição maciça.

Jan 2003 – O secretário de Estado norte-americano da Defesa, Donald Rumsfeld, acusa a Alemanha e a França, contrárias a uma intervenção armada, de representarem a “velha Europa”, acentuando as divergências entre a coligação e vários Estados europeus. “A Europa e a América devem permanecer Unidas” é o nome do documento assinado por oito países europeus (Espanha, Portugal, Itália, Reino Unido, República Checa, Hungria, Polónia e Dinamarca), expressando o seu apoio à política da administração Bush de resolução da crise iraquiana.

Fev 2003 – Após a intervenção do secretário de Estado norte-americano, Colin Powell, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, onde acusou o governo iraquiano de obstruir as inspecções das Nações Unidas e de nada fazer para desarmar, o Grupo de Vilnius, composto por dez países da Europa de Leste, emitiu uma declaração conjunta apoiando a posição norte-americana. O Presidente francês, Jacques Chirac, reage a este apoio sublinhando que os países em questão “perderam uma boa oportunidade para ficarem calados”. O pedido da administração Bush para que a NATO protegesse a Turquia na sequência de um eventual ataque iraquiano, é rejeitado pela França, Alemanha e Bélgica.

Mar 2003 – Reunidos nos Açores, George W. Bush e Tony Blair dão um prazo de 24 horas às Nações Unidas para que reforcem as exigências relativas ao desarmamento iraquiano, sob pena da coligação anglo-americana desencadear uma acção militar. Esta declaração surge após França, Rússia e Alemanha terem afirmado que não iriam permitir uma resolução no Conselho de Segurança autorizando o uso de força militar. A 18 de Março, num discurso televisivo, o presidente norte-americano dá 48 horas a Saddam Hussein para abandonar o Iraque ou enfrentar uma invasão. O representante diplomático de Paris nos Estados Unidos, Jean-David Levitte, sublinha não haver justificação para recorrer à guerra de forma unilateral mas realça que a posição francesa poderá ser alterada caso o Iraque recorra à utilização de armas químicas e biológicas. A 20 de Março, Bagdad é atingida pelos primeiros mísseis norte-americanos.

Ago 2003 – Três meses após George W. Bush ter anunciado, a bordo do porta-aviões Abraham Lincoln, o fim da guerra contra o Iraque, dois atentados evidenciam o clima de insegurança no Iraque. Um ataque à embaixada da Jordânia em Bagdad causa onze mortos. Também a sede das Nações Unidas na capital iraquiana é alvo de uma violenta explosão. Morrem vinte e duas pessoas, entre as quais Sérgio Vieira de Mello, representante especial do Secretário-Geral da ONU para o Iraque. A preocupação com a segurança no território conduz a uma série de reacções favoráveis à adesão das potências europeias, contrárias à guerra, aos esforços de manutenção de paz. Per Stig Moller, ministro dos Negócios Estrangeiros da Dinamarca, exigiu que Alemanha, França e outros Estados enviem soldados para colaborar na pacificação do país. (Luís Silva)

__________
1 Hassner, Pierre, La terreur et l’empire. La violence et la paix, Seuil, 2003.
2 Ver Brito, Alexandra Barahona e Vasconcelos, Álvaro “O Novo Multilateralismo: Perspectiva da União Europeia e do Mercosul, Relatório, IEEI/ Forum Euro-Latino Americano, Outubro 2001, p. 9.
3 Ver Jaguaribe, Hélio e Vasconcelos, Álvaro (eds.), “The European Union, Mercosul and the New World Order”, F. Cass, 2003.


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* Álvaro Vasconcelos

Director do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais.

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