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Janus 2004



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Portugal e os oceanos: importância estratégica e definição espacial

Tiago Pitta e Cunha e Nuno Marques dos Santos *

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A questão determinante das negociações da Convenção das Nações Unidas dobre o Direito do Mar foi a definição dos limites das áreas marítimas sob jurisdição dos Estados costeiros. As grandes potências navais pretendiam limitar estas áreas a uma ínfima faixa costeira, na ordem das 3 milhas. Os países latino-americanos, por seu turno, pretendiam um mar territorial de 200 milhas. Das duas posições chegou-se a um consenso: o mar territorial abrangeria 12 milhas; para além desta distância até às 200 milhas, vigoraria o estatuto de Zona Económica Exclusiva (ZEE).

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Celebraram-se no mês de Dezembro de 2002 os vinte anos da adopção da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM).

Esta convenção, que entrou em vigor em 1994, constitui sem dúvida um dos mais aperfeiçoados e complexos instrumentos jurídicos internacionais em vigor e ocupa uma posição de destaque no âmbito do vasto labor legislativo a que a ONU se entregou nos últimos cinquenta anos. A sua actual preeminência e a esmagadora adesão dos países da comunidade internacional (são partes da Convenção mais de 140 países) não é apenas uma coincidência, mas encontra justificação em cerca de dez longos e extenuantes anos de discussão que precederam a sua adopção.

 

Uma difícil negociação

Assim, apesar de ser hoje vista por muitos como algo adquirido e apenas um de entre muitos outros instrumentos jurídicos internacionais, a Convenção significou o culminar de praticamente um século de esforços e buscas incessantes para alcançar um acordo universal sobre o uso e a exploração dos oceanos e dos mares, não apenas entre as nações tradicionalmente mais envolvidas na navegação e exploração oceânica, mas e acima de tudo, entre aquelas e os novos Estados costeiros que foram emergindo com a descolonização.

O desenvolvimento económico do pós-guerra e o crescimento do comércio marítimo, a independência de um grande número de territórios ribeirinhos, a explosão demográfica, a multiplicação das capacidades pesqueiras para responder ao aumento da procura de proteínas alimentares, o desenvolvimento de tecnologias que têm vindo a permitir a extracção de recursos energéticos, tudo junto levou a que os assuntos respeitantes aos oceanos se tenham vindo a tornar cada vez mais um tema politicamente sensível da agenda internacional. Urgia, nesse cenário, definir e regular os direitos e as obrigações dos Estados costeiros e dos Estados de pavilhão (os Estados da nacionalidade de registo dos navios).

Para Portugal, um país histórica e inelutavelmente ligado aos assuntos dos oceanos, com uma vasta linha de costa no continente e nas suas regiões arquipelágicas, o culminar das negociações internacionais sobre o direito do mar assumia a maior importância. Determinante no âmbito de tais negociações foi sem dúvida a definição dos limites das áreas marítimas sob jurisdição dos Estados costeiros, bem como a definição dos direitos e obrigações desses Estados vis à vis os Estados de pavilhão.

A indefinição daquelas áreas, bem como dos respectivos direitos e obrigações inerentes, dava azo a declarações unilaterais díspares, proferidas por diferentes países, e em vários casos exageradas pela medida da excessiva extensão das zonas de mar territorial que reivindicavam. Esta ordem de coisas preocupava seriamente as potências navais e de entre elas as mais poderosas à época, que eram os EUA e a União Soviética.

Não surpreendeu, por isso, a posição mantida ainda durante a parte inicial das negociações da III Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar pelas nações, grandes potências marítimas, no sentido de confinar os direitos dos Estados costeiros exclusivamente à área do “mar territorial”, entendendo-se este como uma estreita faixa de mar limítrofe às respectivas linhas da costa, a partir daí sucedendo-se o “alto mar”, onde aqueles Estados nenhuma soberania teriam para exercer, prevalecendo, portanto, os direitos dos Estados de pavilhão. Era este o status quo estabelecido ao longo das últimas centenas de anos por práticas consuetudinárias que não foram alteradas na I Conferência das Nações Unidas de 1958, que teve lugar em Genebra.

O impasse sobre a delimitação do mar territorial, única zona de delimitação marítima ao tempo reconhecida, prolongou-se ainda durante a II Conferência de 1960, não obstante esta ter sido convocada especificamente para acordar a largura dessa faixa marítima. Com efeito, apesar de já se desenhar uma maioria de Estados apoiantes de um mar territorial de 12 milhas, permanecia irredutível a posição de um relevante grupo de países que continuavam a preconizar um máximo de 3 milhas de mar territorial, na linha da tese centenária que reconhecia como mar territorial a área costeira equivalente à curta distância que poderia percorrer um tiro de canhão.

Perante o impasse, surgia uma construção mais radical, que pugnava por um mar territorial de 200 milhas e que era defendida, principalmente, por um grupo de países latino-americanos que passaram, por essa razão, a ser designados “Estados territorialistas”.

Destas posições extremas foi-se evoluindo para a formulação, em termos da soberania dos Estados costeiros, de um regime jurídico duplo, em que a uma zona de 12 milhas de mar territorial se adicionaria até às 200 milhas uma nova zona marítima sujeita a regime jurídico distinto, mantendo-se o exacto conteúdo deste último completamente em aberto. Para as potências navais o regime seria basicamente o do “alto mar”, com a cedência de algumas prerrogativas aos Estados costeiros, nomeadamente um direito de preferência sobre a captura de recursos vivos. Para os Estados territorialistas essa área seria considerada mar territorial, com algumas cedências aos países do Estado do pavilhão.

O compromisso que veio a ser alcançado já nos trabalhos da adopção da actual Convenção assentou num conceito novo, o conceito de mar patrimonial, que, por sua vez, deu origem à denominação das “Zonas Económicas Exclusivas” (ZEEs), a que passou a corresponder um regime jurídico sui generis e próprio dentro do direito do mar. Ou seja, a área compreendida entre as 12 e as 200 milhas a contar das linhas de base das margens dos Estados costeiros não viria a ser concebida com uma área de mar territorial, com excepções a favor de terceiros Estados, nem no inverso seria concebida como área de alto mar, com excepções a favor do Estado costeiro.

O acordo sobre o conceito de mar patrimonial não deixou de ser vantajoso para os Estados costeiros. Estes, se bem que destituídos de uma soberania plena sobre a área em causa, adquiriram o direito exclusivo à exploração dos recursos vivos e dos recursos naturais e outros existentes na designada ZEE, incluindo o controle dos fundos marinhos e do subsolo.

 

A importância da Convenção do Direito do Mar para Portugal

Portugal, pela sua posição geográfica e de continuidade territorial, veio a ser um dos países mais beneficiados pela solução encontrada. Na realidade, em virtude da longa frente atlântica da nossa costa continental e, principalmente, em virtude da fragmentação geográfica proporcionada pelos arquipélagos da Madeira e dos Açores, o nosso país viu-se subitamente investido numa das mais amplas ZEEs da Europa.

Este facto, de extraordinária relevância, desde logo em termos geoestratégicos, que nos qualifica como uma verdadeira porta oceânica de entrada na Europa, não parece ter sido ainda realmente reconhecido como tal em Portugal. É por esta razão importante assinalá-lo, e é por isso que é relevante explicar como foi longa e difícil a conquista internacional de tamanha vantagem ou prerrogativa. Com efeito, só compreendendo o que estava em causa e os elevados interesses em confronto, poderemos tomar verdadeiramente consciência do valor que constitui para Portugal tão vasta área de jurisdição marítima.

Seja como for, em termos históricos, o tempo decorrido entre a consagração internacional do conceito da ZEE e o presente é consideravelmente diminuto, o que significa que a aquisição pelo país de uma nova dimensão enquanto nação, a dimensão oceânica, ocorreu ainda muito recentemente.

Este aspecto, adicionado ao facto de não haver uma concentração muito elevada de recursos vivos – pesqueiros – na ZEE portuguesa, ajuda talvez a explicar que em Portugal não se tenha ainda compreendido, no seu pleno alcance, que o país ficou diferente com a entrada em vigor da Convenção do Direito do Mar, em 1997, e a resultante apropriação da área correspondente à ZEE.

Efectivamente, enquanto a nossa área terrestre se limita a uma exígua faixa costeira localizada a ocidente de uma extensa Península Ibérica, as áreas marítimas sob jurisdição nacional estendem-se pelo oceano dentro, envolvendo os nossos arquipélagos atlânticos. Nesta perspectiva, a componente oceânica do país, em área dezoito vezes superior à terrestre, deverá ser reconhecida, explorada, conservada e, principalmente, deverá ser genuinamente incluída na fórmula ou equação da nossa nacionalidade.

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Ao reconhecermos o peso avassalador da componente oceânica de Portugal passaremos, em rigor, a perspectivarmo-nos não mais como um pequeno país da Europa, dotado de limitados recursos, mas como a considerável nação oceânica que geograficamente somos. Interiorizar este facto é o princípio de um caminho que nos levará a poder tirar partido do potencial adormecido no nosso mar atlântico.

Designados como as últimas fronteiras do Planeta, ou como as novas fronteiras do século XXI, os oceanos oferecem um potencial inesgotável de novos usos e recursos. Para um país como Portugal, esse potencial não deve permanecer ignorado.

Inverter esta ignorância, e pôr termo à inacção ou à omissão de uma estratégia para o oceano, implica abraçar um projecto nacional, com visão, fazer escolhas e, o que é mais difícil, optar e abdicar de alternativas. Tudo isto, porém, na certeza de que o valor e a importância reconhecidos aos oceanos e mares por todos os países aumentará em muito com o desenrolar do século XXI.

Compreender esta evolução é essencial, tanto mais que, hoje, Portugal necessita de um projecto para colmatar a ausência de uma estratégia nacional que se contraponha às estratégias erradas do passado.

 Na realidade, em Portugal, a última missão estratégica ou o último desígnio nacional digno de nomeada foi o objectivo da integração Europeia, abraçado nos anos setenta com a chegada da democracia. Apesar de não ser contestável essa opção europeia, fica-nos a sensação de que o desígnio da integração europeia se confinou a isso mesmo, isto é, à adesão per si do país à então Comunidade Europeia, tendo ficado por traçar, dentro do contexto daquela integração, uma estratégia clara capaz de dar ao país um rumo e um perfil próprio.

O final da Guerra Fria permitiu a aceleração da globalização, enquanto por entre as ruínas do muro de Berlim nos surgia um outro mundo, a leste, desejoso de experimentar o bem-estar do Ocidente e, por isso, determinado a concorrer nos mesmos mercados.

Perante esta revolução de proporções sísmicas, o país viu os anos 90 passarem, deixou-se ficar, embalado ainda pelo cumprimento do objectivo estratégico – antes alcançado – da adesão europeia, e passou a última década do século XX alheio ao rumo daqueles acontecimentos. Sem pensar a evolução do seu modelo económico de desenvolvimento, muito apoiado ainda em mão-de-obra barata, sem se preparar contra a concorrência externa a indústrias, produtos e serviços nacionais, o país descobre-se sem um caminho claro pela frente, como que empurrado por si mesmo para a falta de alternativas e de oportunidades.

Perante a presente circunstância histórica, Portugal necessita de antecipar o futuro, preparar uma estratégia adequada aos reptos que a globalização e o alargamento da União Europeia nos colocam e através dela renovar a sua afirmação na Europa e no mundo. Neste sentido, uma nova estratégia nacional não deverá deixar de incluir o reforço daquela que ainda é a nossa maior imagem de marca: a  vocação oceânica do passado, que, justificada pela nova realidade geográfica do presente, poderá contribuir decisivamente para projectar Portugal no futuro.

 

Informação Complementar

A definição dos espaços marítimos portugueses

No que respeita aos limites de espaços marítimos, a situação de Portugal parece longe de ser a idealmente desejável. A legislação portuguesa, quando perspectivada em função da CNUDM, levanta diversas questões de actualização e de conformidade ao Direito Internacional. Por exemplo, a conformidade à CNUDM de algumas das linhas de base recta estabelecidas pelo Decreto-Lei n.º 495/85 é no mínimo questionável. O conceito de Plataforma Continental (PC) que consta de leis que não foram revogadas (expressamente) reporta-se a um regime jus-internacional convencional e consuetudinariamente ultrapassado. E a exactidão geocientífica dos limites da ZEE definidos no Decreto-Lei n.º 119/78, à luz da tecnologia hoje disponível, parece inadequada.

Existem também questões que se suscitam quanto às fronteiras marítimas. Com Marrocos, não existem quaisquer tratados de delimitação assinados ou ratificados. Já em relação a Espanha, os dois tratados assinados em 1976, na Guarda, relativos às fronteiras do Mar Territorial (MT) e da PC na Península Ibérica, não entraram formalmente em vigor. A existência, de facto, de um “acordo” para a sua aplicação a título provisório é uma questão para a qual não há resposta clara. Ao constatar-se que o Decreto-Lei n.º 119/78 estabelece, unilateral e provisoriamente, uma “fronteira” entre as ZEEs portuguesa e espanhola, nada fica mais fácil.

É duvidoso concatenar esta linha com o facto de nela se utilizar, nas áreas do MT, o que parece corresponder à linha definida num dos tratados de 1976, e com o facto de se fazer referência neste diploma ao leito e subsolo do mar (i.e. PC) cuja fronteira é objecto do outro tratado de 1976. Certo é que a jurisprudência internacional recusa a relevância jurídica de actos unilaterais em delimitação de fronteiras (excepção feita a casos de aquiescência, reconhecimento e estoppel, que não parecem existir dado o protesto espanhol do citado diploma). Por último, a fronteira marítima entre Portugal (Madeira) e Espanha (Canárias) que envolve a questão das Ilhas Selvagens continua por delimitar.

O “mar português”: o futuro

Num certo sentido (excluídos os direitos de Estados terceiros em áreas sob soberania ou jurisdição nacional), pode dizer-se que os direitos e interesses exclusivos de Estados costeiros sobre os espaços marítimos sob sua soberania ou jurisdição confinam geograficamente com interesses de Estados terceiros. No caso português, confinam com posições jurídicas exclusivas de Espanha e de Marrocos nas fronteiras marítimas; e confinam com posições jurídicas de natureza inclusiva tituladas a todos os Estados em geral (sob formas jurídicas distintas no Alto Mar e na Área) nas linhas de limites marítimos. A definição espacial do “mar português” adquire pois uma importância crítica no plano das relações externas.

O “mar português” representa, em termos de área potencial de descoberta e utilização de recursos, aproximadamente dezoito vezes o território terrestre. De outro ângulo, o “caso Prestige” veio ilustrar por que Portugal não deve descurar a sua dimensão oceânica. E, a propósito dele, seria interessante verificar se Portugal e Espanha estavam a “pensar” nas mesmas “linhas-fronteira” da ZEE quando a elas se referiam. Num outro plano, o da Política Externa e de Segurança Comum, o facto de o “mar português” constituir uma “fronteira exterior” da UE não deve ser negligenciado. Porque o exercício no mar da jurisdição nacional – nas dimensões legislativa, executiva e judicial – se baseia numa definição espacial de espaços marítimos, parece essencial que se ultrapasse o cenário descrito.

Haverá, sem dúvida, que diferenciar entre, por um lado, a delineação das linhas de base (normal e rectas) e dos limites exteriores do MT, da Zona Contígua (se vier a ser reivindicada por Portugal), da ZEE e da PC e, por outro lado, a delimitação de fronteiras marítimas. A segunda é uma questão da maior sensitividade político-diplomática. Nessa medida, torna-se difícil propugnar soluções e timings para a delimitação das fronteiras marítimas portuguesas (que incluem dois pontos de trijunção Portugal-Espanha-Marrocos) fora de considerações políticas mais latas. Já os limites de espaços marítimos, sendo de natureza unilateral, carecem tão-só de considerações nacionais. E é neste âmbito que Portugal talvez possa, a curto prazo, actuar de forma decisiva.

Propositadamente, deixou-se para o fim uma palavra sobre a extensão da PC para além das 200 milhas, no quadro do estatuído na CNUDM, maxime no art.º 76.º. A concretizar-se esta extensão, a área do leito e subsolo do mar sob jurisdição nacional pode ser sensivelmente aumentada. E sabendo que os grandes fundos oceânicos desafiam ainda as fronteiras do conhecimento – como o comprovam as descobertas relacionadas com as fontes hidrotermais – o impacto potencial no plano científico-económico não pode ser ignorado. É de sublinhar, portanto, a referência que lhe é feita no Conceito Estratégico de Defesa Nacional (§ 5.1.), a qual reflecte a sua relevância para a dimensão oceânica de Portugal. (Nuno Marques Antunes)

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* Tiago Pitta

Licenciado em Direito pela Universidade Católica de Lisboa. LL.M. London School of Economics and Political Science. Coordenador da Comissão Estratégica dos Oceanos.

* Nuno Marques dos Santos

Oficial Superior da Marinha. Licenciado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. M.A. e Ph.D. pela Universidade de Durham, Reino Unido.

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