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Portugal e os sistemas jurídico e judiciário de Macau

António Ganhão *

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Com a assinatura da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questão de Macau, em 1987, Portugal comprometia-se a modernizar, adaptar e a tornar bilingues os sistemas jurídico e judiciário do território até 20 de Dezembro de 1999, data em que a soberania sobre o território deveria reverter à República Popular da China (RPC). Após esta data e nos 50 anos seguintes, a RPC comprometia-se a respeitar o estatuto político-organizativo de Região Administrativa Especial de Macau. Neste contexto Portugal tratou de modernizar as leis vigentes, tendo atenção à sua exequibilidade na futura RAEM.

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Portugal e a República Popular da China assinaram, em 13 de Abril de 1987, a Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questão de Macau, segundo a qual, na essência: o território de Macau reverteria à soberania chinesa a partir de 20 de Dezembro de 1999; até lá, Portugal comprometia-se a modernizar, a adaptar e a tornar bilingue (nas línguas portuguesa e chinesa), entre outros, os sistemas jurídico e judiciário; após tal data, a República Popular da China comprometia-se a respeitar, durante cinquenta anos, o legado de Macau, sob a forma político-organizativa de Região Administrativa Especial de Macau (RAEM).

Não obstante, sobretudo após a Revolução de 25 de Abril de 1974, se ter já encetado o desenvolvimento de Macau (até então uma colónia “perdida” e abandonada no Extremo Oriente), era hercúlea a tarefa a que Portugal se comprometeu no campo dos sistemas jurídico e judiciário – cujos alicerces fundamentais datavam dos anos 50 e 60 do séc. XX e, ainda assim, na sua maior parte, por mera extensão a Macau dos vigentes na Metrópole, sem se cuidar de saber do seu grau de exequibilidade.

 

A “localização” do sistema jurídico

No que respeitava ao sistema jurídico, importava:

• Adaptar e modernizar as leis vigentes, o que, em rigor, implicava construir, ex novo, todo o edifício jurídico de Macau, naturalmente com matriz juridíco-cultural portuguesa, mas exequível na futura RAEM;

• Que o novo ordenamento se encontrasse edificado em ambas as línguas oficiais: o português e o chinês.

Ao longo dos doze anos de transição – e sobretudo nos últimos três – e obedecendo a um plano estratégico previamente delineado, foram sendo produzidas por juristas (técnicos superiores, advogados, docentes universitários, magistrados) que trabalhavam em Macau ou que exerciam funções em Portugal, as pedras fundamentais do novo edifício jurídico. Foi, assim, possível elaborar, aprovar, publicar e pôr em vigor, entre muitos outros diplomas:

• O Código Civil de Macau, que, obedecendo à conceptualização e à divisão matricial do Código Civil português, introduz importantes adaptações à realidade local no campo dos Direitos Reais, do Direito da Família e do Direito das Sucessões;

• O Código Comercial de Macau, que, compendiando toda a legislação até então dispersa, faz assentar a regulamentação na figura da empresa comercial;

• O Código de Processo Civil de Macau, amplamente simplificado e desburocratizado, tornando mais acessível a justiça aos cidadãos;

• O Código do Procedimento Administrativo de Macau, muito semelhante ao vigente em Portugal;

• O Código de Processo Contencioso Administrativo, que, partindo da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos portuguesa, introduz importantes avanços, quer no que respeita à tutela jurisdicional dos direitos e interesses legalmente protegidos dos administrados quer quanto concerne à sindicabilidade objectiva da ilegalidade administrativa;

• O Código Penal de Macau, que, não sendo tão vincado quanto o português na vertente ressocializadora das penas, bebe deste o núcleo da filosofia humanitária que o enforma;

• O Código de Processo Penal de Macau, que, tal como o português, radica nas garantias do arguido e na descoberta da verdade material;

• O Regime de Execução de Penas, quer na vertente jurisdicionalizada quer na administrativa, centrado em preocupações humanitárias e de ressocialização;

• O Regime Educativo e de Protecção Social de Menores, através do qual se procura, de forma articulada, reagir contra situações de desprotecção e de delinquência de menores imputáveis, dando-lhes tratamento separado e autónomo do relativo a imputáveis;

• Os diversos Códigos de Registos (Civil, Comercial, Predial) e do Notariado, suficientemente flexíveis para permitirem o desenvolvimento do dinamismo da vida empresarial de Macau;

• O Regime do Notariado Privado, específico de Macau, através do qual se permite que advogados (em Macau, na sua enorme maioria, de negócios) exerçam simultaneamente funções notariais, naturalmente após formação inicial e sujeitas a fiscalização.

A tarefa de cujos pilares essenciais acabamos de dar conta surgiu particularmente dificultada pelo facto de se tornar essencial que a vigência de tais leis ocorresse em ambas as línguas oficiais. Ora, considerando que a ciência jurídica chinesa é ainda muito incipiente (desconhece grande parte dos conceitos jurídicos de matriz românica), as dificuldades que se anteviam eram momentosas. Para as superar, foi necessário recorrer a uma metodologia própria, com a utilização de equipas pluridisciplinares, constituídas por juristas com formação portuguesa e juristas com formação chinesa, letrados e intérpretes-tradutores. Com ela, criou-se uma base de trabalho que permitiu desenvolver uma linguagem jurídica em chinês, específica do sistema de Macau, e passou-se a um processo de produção jurídica bilingue, que influenciou e contribuiu para o enriquecimento de ambas as versões dos diplomas legais.

 

A “localização” do sistema judiciário

Também neste campo importava, duplamente, que o sistema judiciário ganhasse autonomia relativamente ao de Portugal – à data do início do período de transição, Macau apenas dispunha de tribunais de 1ª instância – e que os respectivos operadores fossem, maioritariamente, residentes e formados em Macau, bilingues, por forma a que o sistema pudesse funcionar aleatoriamente em ambas as línguas oficiais (dispensando o caro sistema de tradução).

Quanto ao primeiro desiderato, nunca Portugal o conseguiu atingir plena e satisfatoriamente. É certo que, a partir de 1993, o sistema judiciário de Macau sofreu profundas alterações, introduzidas quer pela Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau, aprovada pela Assembleia da República, quer por diversos diplomas regulamentares oriundos dos órgãos de governo próprio do território. Após tal data, passou a haver apenas, em regra, dois graus de jurisdição (vigoravam três, até então); além dos tribunais de 1ª instância, de que se autonomizou um Tribunal Administrativo, Macau passou a dispor de uma 2ª instância (o Tribunal Superior de Justiça) e de um Tribunal de Contas; os juízes e os magistrados do Ministério Público passaram a dispor de estatuto próprio, aprovado no Território, e a ser geridos por órgãos formados e com sede em Macau.

Contudo, permaneceu a possibilidade de, em certos casos excepcionais, se recorrer para os tribunais de última instância com sede em Portugal; o recurso de constitucionalidade continuou a ser da competência exclusiva do Tribunal Constitucional; os órgãos de gestão e disciplina dos magistrados eram presididos pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça português; e o procurador geral da República parecia manter-se como órgão supremo da hierarquia do Ministério Público do Território. E não é menos certo que, em Junho de 1999, o Presidente da República declarou, com base na legislação vigente desde 1993, a plenitude e exclusividade da jurisdição dos tribunais de Macau. Mas não era suficiente. Sabia-se que:

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• A lei de organização judiciária de Macau devia, segundo o entendimento da República Popular da China, ser aprovada no Território;

• A Lei Básica da futura RAEM (mini-Constituição para vigorar após 20.12.1999) previa três graus de jurisdição e três instâncias e uma entidade pública independente para fiscalização das contas, em lugar de um Tribunal de Contas.

Importava, por isso, elaborar um diploma, a aprovar em Macau, que estruturasse o sistema judiciário em condições tais que viabilizassem a sua manutenção inalterada para além de 19.12.1999. Assim se fez. Por razões nunca esclarecidas (e que se presume ligadas à intenção de querer ser a República Popular da China a instalar o Tribunal de Última Instância), o diploma nunca obteve a concordância da parte chinesa, tendo sido apenas a própria RAEM quem acabou por colocar em vigor o novo sistema judiciário.

Simultaneamente – e apesar de tais percalços –, investia-se na formação dos operadores judiciários locais. Assim:

• Instalou-se um Curso de Direito na

Universidade de Macau, cujo objectivo essencial era o de formar juristas que ali permanecessem e que dominassem ambas as línguas oficiais; os primeiros licenciados surgiram no ano lectivo de 1992/1993;

• Criou-se um Centro de Formação de Magistrados, cujo primeiro curso teve início em 1995, com a duração de dezoito meses; os primeiros formados surgiram em 1997;

• Criou-se a Associação de Advogados de Macau, conferindo-lhe o estatuto de associação pública, a qual promoveu cursos de estágio para acesso à profissão;

• Reformulou-se o estatuto dos funcionários de justiça, por forma a permitir que, em 20.12.1999, os respectivos dirigentes fossem quadros locais e intensificaram-se as acções de formação, sobretudo como requisitos de ingresso e acesso na carreira.

 

A “localização” de outros subsistemas de justiça

O movimento de modernização, autonomização e formação de operadores locais fez-se ainda sentir:

• No sistema de Acesso ao Direito e à Justiça: criou-se um organismo de aconselhamento jurídico da população, para problemas concretos, com postos de atendimento ao público disponíveis no terreno; seguiu-se-lhe a disponibilização, num organismo especializado previamente existente, de informação e divulgação jurídicas em língua chinesa, tendo-se procedido à divulgação do Direito de Macau junto da sua população através de órgãos de comunicação social, de contactos directos com organizações públicas e privadas, da edição de brochuras temáticas, da Internet;

• No sistema de Registos e Notariado: consolidou-se legislativamente a existência de conservatórias de registo civil especializadas, de registo predial e de registo comercial e de cartórios notariais públicos em concorrência com notários privados; reformulou-se o estatuto dos respectivos funcionários, por forma a que nenhum ingresso ou acesso nas carreiras locais pudesse dispensar a frequência de curso de formação adequado;

• No sistema de Investigação Criminal: neste campo, foi exponencialmente reforçado o recrutamento e a formação para ingresso e acesso nas carreiras locais da Polícia Judiciária (PJ), sobretudo tendo em conta o combate à criminalidade organizada que, no Território, assume particular acuidade;

• No sistema Prisional e de Reinserção Social: consolidou-se um estabelecimento prisional com valências para reclusos masculinos e femininos e, em cada uma delas, para preventivos e condenados, sendo que, no que respeita aos últimos, se distinguiram três grupos em função do grau de segurança exigido; um estabelecimento de internamento de menores delinquentes; e um organismo destinado a apoiar psicossocialmente as decisões judiciais em matéria penal e os condenados a medidas não privativas da liberdade e a medidas pós-institucionais; em qualquer dessas unidades, procurou-se formar pessoal local especializado na execução das penas e medidas em causa;

• No sistema de Identificação Civil e Criminal: tornou-se necessário reformular e autonomizar o sistema de identificação criminal, até então ainda a cargo da PJ; do mesmo passo, foi essencial solucionar os difíceis problemas que se levantavam à emissão do Bilhete de Identidade de Residente em Macau e de documentos de viagem (passaportes, salvo-condutos).

 

A “internacionalização” do ordenamento jurídico de Macau

Desde sempre foi intenção assumida dos órgãos de governo próprio do Território de Macau fazer vigorar nele os principais instrumentos de Direito Internacional, com especial destaque para os relativos à protecção dos direitos, liberdades e garantias fundamentais do cidadão. Com essa perspectiva se iniciaram negociações com a República Popular da China, no termo das quais foi possível estender a Macau o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Igualmente com tal intuito, foi possível a Macau participar em várias organizações internacionais e aderir a múltiplas convenções internacionais de interesse para o Território (ver tabela).

 

Informação Complementar

A cooperação entre Portugal e a região administrativa especial de Macau

Conseguido, na sua quase totalidade, o esforço de “localização” dos sistemas jurídico e judiciário de Macau com preservação da matriz jurídico-cultural portuguesa, importava manter os laços entre Portugal e a futura RAEM para que tal matriz não apenas se mantivesse como se reforçasse. Tal espírito levou a que, logo em 6 de Fevereiro de 1998, fosse celebrado, entre o Governo de Macau e o Ministério da Justiça português, um Protocolo de Cooperação no Âmbito Jurídico-Documental, através do qual se permitia, nas condições nele previstas, o acesso dos operadores jurídicos de Macau às bases de dados de legislação, jurisprudência e doutrina sedeadas em Portugal.

E em 07.12.1999 foi possível concluir, entre os Governos de Macau e de Portugal, um Acordo sobre a Transferência de Pessoas Condenadas, viabilizando aos cidadãos de ambas as regiões que tenham sido condenados na outra que possam cumprir a pena na região de origem, se com ela mantiverem laços que melhor permitam a sua ressocialização.

Pela Resolução da Assembleia da República nº 19/2002, publicada na I Série-A do DR de 16.03.2002, foi aprovado o Acordo de Cooperação Jurídica e Judiciária entre a República Portuguesa e a RAEM, através do qual – além da previsão de importante cooperação em matéria penal e civil – se admite a cooperação entre as partes em matéria de acesso ao direito e aos tribunais, de identificação civil, registos e notariado, de bases de dados (jurídico-documentais) e novas tecnologias (designadamente de informática jurídica), de formação profissional e de informação jurídica (trocas de documentação jurídica).

Finalmente, através da Resolução da AR nº 17/2003, publicada na I Série-A do DR de 06.03.2003, foi aprovado o Acordo Quadro de Cooperação entre a República Portuguesa e a RAEM, o qual – no que ao âmbito do Direito e da Justiça importa – se cinge a reafirmar a vigência dos anteriores Acordos.

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* António Ganhão

Chefe de Gabinete do último Secretário-Adjunto para a Justiça do Governo do Território de Macau.

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Dados adicionais
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