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Estes fenómenos (ver Informação Complementar) reflectem, de certa maneira, a exportação do modelo ocidental de Estado de Direito e de fiscalização da constitucionalidade para o panorama das relações transnacionais. Esta preocupação pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos indivíduos está na génese da evolução de um sistema de resolução de disputas internacionais, onde os actores principais e quase exclusivos eram os Estados, para um sistema de disputas transnacionais, onde os actores passam a ser não só Estados mas também pessoas jurídicas singulares e colectivas. Ao mesmo tempo, o Estado é também decomposto, uma vez que a sua “representação” é muitas vezes “assegurada” por actores distintos (como os juízes). Estes actores acabam por consubstanciar muitas vezes interesses rivais do Estado em sentido tradicional, criando redes de poder alternativas a nível transnacional e tendo assim um interesse particular na sustentação e promoção deste fenómeno. Em temos gerais, a globalização judicial reforça o poder judicial na sua relação com o poder político. É ainda de realçar que a judicialização é um conceito sujeito a graduação, abrangendo diferentes realidades tais como tribunais internacionais e nacionais, tribunais arbitrais e órgãos quase-judiciais como por exemplo Painéis de Inspecção, Comissões de Conciliação e Tribunais Internacionais Administrativos. O conjunto destes órgãos jurisdicionais ilustra o nascimento daquilo que podemos designar por “comunidade global judiciária” (no original, “global community of courts”, cf. A. Slaughter, “A Global Community of Courts” (2003) 44 Harvard International Law Review, p.191). Tal comunidade é igualmente composta por redes – formais e informais, diálogos inter-judiciais, e a participação de uma pluralidade de actores sociais que faz uso destes mecanismos de contencioso para reforçar a sua voz nos processos de decisão nacionais ou transnacionais.
A comunidade global judiciária A judicialização deve ser analisada no contexto da actual tendência de aumento da densidade normativa nas relações internacionais, a qual se manifesta não apenas na expansão das áreas internacionais sujeitas a regulação jurídica internacional mas, igualmente, numa crescente obrigatoriedade e efectividade das normas internacionais e na substituição do tradicional modelo diádico de resolução de disputas por um modelo triádico assente em órgãos de tipo judicial. A partir do momento em que as relações transnacionais deixam de ser exclusivamente reguladas pela diplomacia e pela política para serem reguladas por normas de carácter obrigatório, torna-se necessário repensar o mecanismo mais adequado a esta nova realidade. Ora, se na ordem interna estadual a melhor forma de garantir a aplicação e o respeito pelas normas jurídicas traduz-se na “delegação” das tarefas de interpretação e aplicação das leis em órgãos e estruturas judiciais, então não será atípico que esta mesma lógica, ainda que em moldes diferentes, seja transposta para as relações transnacionais. Esta evolução de um modelo diádico para um modelo triádico de resolução de conflitos a nível internacional deve-se em larga medida à crescente interdependência económica. As transacções económicas internacionais necessitam de ser suportadas por um sistema jurídico estável e previsível. Neste contexto, não é assim de estranhar que este fenómeno tenha sido, em larga medida, promovido pela integração económica global. No entanto, esta dinâmica transborda necessariamente quer para os domínios internos dos Estados (não pode haver investimento externo, por exemplo, sem garantias judiciais ao interno dos Estados), quer para outras esferas das relações internacionais (por exemplo: os mecanismos que incorporam nos ordenamentos jurídicos estaduais dos Estados as normas comerciais internacionais servem muitas vezes para incorporar, igualmente, as normas internacionais de protecção dos direitos humanos). O poder dos órgãos judiciais a nível internacional também depende do grau de indeterminação das normas jurídicas O impasse nas negociações ou a incapacidade de se alcançar um acordo claro e definitivo a nível internacional leva a que as partes contratantes optem por cláusulas com um alto grau de indeterminação, podendo potenciar, desta forma, o papel dos órgãos judiciais na sua concretização. A imprecisão de tais normas jurídicas pode dar lugar a uma de duas situações. Em casos de inexistência de um órgão judicial ou quase-judicial, a actividade de conferir precisão a estas normas jurídicas fica a cargo da diplomacia e da política. Ao invés, se a tarefa de interpretação e aplicação das normas jurídicas for conferida a um tribunal (internacional ou nacional), este acaba por exercer uma certa forma de poder discricionário na concretização dessas normas ou cláusulas jurídicas. Se em vez de um forem vários os litígios; se em vez de um forem vários os tratados ou contratos internacionais; e se, finalmente, em vez de um forem vários os tribunais ou órgãos quase-judiciais, o funcionamento da comunidade global judiciária ganha uma dinâmica e uma lógica específicas. Trata-se, agora, de uma comunidade com um discurso próprio, onde novos actores emergem com interesses próprios que nem sempre coincidem com os dos Estados e dos particulares. Se é verdade que os Estados foram os principais “construtores” do sistema judiciário transnacional, também não deixa de ser verdadeiro que tal sistema, uma vez operante, reconstruiu o contexto das relações sociais onde os Estados operam e promoveu a difusão de poder por uma rede mais ampla de actores sociais. Mesmo quando os Estados continuam a ser formalmente os intervenientes em litígios internacionais é cada vez mais frequente que eles actuem, nesses casos, como agentes dos actores particulares invertendo a tradicional relação principal/agente entre Estado e particulares. O famoso contencioso das “bananas” (relativo à importação de bananas da América latina para a UE) foi interposto pelos EUA contra a UE em virtude da acção junto da administração americana das grandes companhias americanas de produção de bananas na América Latina. Foram estas empresas que, na realidade, promoveram essa litigação e a sustentaram, “apenas” recorrendo ao Estado por razões de exigências processuais jurídicas. Judicialização constitui também um sistema de governação, onde órgãos judiciais e quase-judiciais actuam como reguladores institucionais e sociais e substituem gradualmente funções de autoridade e de pacificação social que antes estavam confiadas aos governos e aos particulares respectivamente. Nalguns casos, esses órgãos assumem mesmo funções de regulação social e económica que continuamos a conceber como pertença dos Estados (é o que sucede quando o Órgão de Apelo da OMC decide sobre a validade de uma proibição de venda de carne alimentada com hormonas artificiais: esta decisão consiste, em larga medida, numa definição do risco socialmente aceitável em termos de saúde pública). Estes processos judiciais desenrolam-se também de acordo com técnicas e discursos específicos. Judicialização gera discurso jurídico ou discursos jurídicos (consoante os actores envolvidos). À medida que os actores judiciais e sociais participam destes discursos jurídicos e partilham da sua linguagem própria vão também adquirindo, consciente ou inconscientemente, um sentimento de pertença a novas comunidades jurídicas globais.
Consequências e riscos A globalização judicial acarreta consigo alguns riscos. Em primeiro lugar, o de fragmentação das normas jurídicas com a criação de diferentes comunidades discursivas. Este risco deve-se ao facto de, ao contrário dos ordenamentos jurídicos estaduais, o ordenamento jurídico internacional não ser uma ordem jurídica una e coerente mas um conjunto de espaços normativos diferenciados. Em segundo, a multiplicação de instâncias de resolução de disputas transnacionais e a ausência de uma estratégia de coordenação de julgados fomentam o chamado forum shopping, isto é, a procura estratégica da melhor instância judicial e/ou quadro normativo. Tal circunstância promove uma excessiva instrumentalização do Direito e uma redução da sua imperatividade normativa. Este fenómeno permite, igualmente, aos actores sociais nacionais colocar em causa deliberações democráticas dos seus Estados permitindo-lhes desafiar a aplicação de normas nacionais através dos processos alternativos de regulação social a nível transnacional. Como estes processos de decisão social transnacionais beneficiam de mecanismos de participação e representação distintos daqueles nacionais, eles consubstanciam, de facto, uma alteração nos equilíbrios de poder democraticamente estabelecidos a nível dos Estados. Em terceiro lugar, há que equacionar a legitimidade dos órgãos judiciais internacionais para exercer, nalgumas matérias, funções de governação típicas dos Estados. Na realidade, alguns destes órgãos são chamados a decidir matérias tradicionalmente sujeitas a deliberações políticas (como a definição do risco socialmente aceitável, protecção do ambiente, etc.). A transferência destas funções de governação para o nível transnacional consubstancia também, nestes casos, uma transferência de poder do processo político para o sistema judicial, o que suscita importantes questões de legitimidade. Em quarto e último lugar, existe o risco de distribuição não equitativa de justiça entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. As nações menos ricas e os indivíduos mais desfavorecidos encontram-se desprovidos dos meios humanos e financeiros de que beneficiam os actores predominantes na comunidade global. O risco reside na desigualdade da distribuição equitativa da justiça a nível global devido aos elevados custos de informação e transacção que esta envolve. No entanto, refira-se que os estudos realizados no contexto do sistema de resolução de conflitos da OMC não confirmam este receio. Embora os EUA e a CE pareçam dominar o volume de litigação em comparação com os países em desenvolvimento, esses números correspondem à respectiva percentagem em volume de comércio internacional. Há que realçar, ao mesmo tempo, que a judicialização vem, por outro lado, repor um certo equilíbrio ao nível das relações interestaduais. Estados com pouco poder político, económico ou militar podem, em teoria, “derrotar” judicialmente nações mais poderosas. Neste caso, o problema não se encontra a montante mas sim a jusante do sistema judiciário. A dificuldade pode colocar-se ao nível da execução das sentenças, sobretudo quando está em causa executar sentenças desfavoráveis a Estados poderosos. É um problema que está na ordem do dia e cuja resolução depende essencialmente de duas realidades: a implementação de mecanismos de efectividade do Direito internacional e a democratização dos seus processos normativos e de “adjudicação” da justiça.
Perspectivas e desafios A crescente criação de tribunais internacionais, a extra-territorialidade dos sistemas judiciais estaduais, o aumento exponencial da litigação transnacional bem como as redes e ligações existentes entre estas várias instituições e sistemas, estão gradualmente a originar uma comunidade global judiciária. Longe de ser fruto de um mero acaso, a globalização judicial é um processo resultante de uma escolha política, ainda que constrangida por alguns factores. A judicialização, enquanto decisão política, não é inevitável. Por outro lado, ser uma escolha política não implica a existência de um controlo estadual em todas as dimensões deste fenómeno. A judicializacão tem uma lógica e uma dinâmica própria que lhe permite recriar as relações sociais, incluindo uma redefinição dos actores relevantes nas esferas nacional e transnacional e do equilíbrio de poder entre eles. Mesmo se os Estados podem ser apresentados como os promotores deste fenómeno, ele tem uma dinâmica própria que acaba por escapar à vontade dos seus “criadores”. Os desafios suscitados por este fenómeno são imensos. O primeiro, é o de saber se caminhamos para uma crescente unidade do ordenamento jurídico internacional. Até este momento, os passos dados são insuficientes. Continuamos com um Direito Internacional à la Carte em que os Estados podem subscrever a que normas e jurisdições internacionais se submetem. Não existe uma integração dos vários conjuntos normativos e instâncias judiciais transnacionais que possa dotar a comunidade global de uma estrutura unitária e coerente. Esta comunidade, tal como a descrevemos, é algo ainda incipiente onde coexistem relações de cooperação mas também de conflito. Ainda é cedo para se falar de um ordenamento jurídico global. A regulação desta comunidade constitui o segundo desafio. A opção passará pela regulação regional e/ou global da justiça transnacional. Neste sentido, prevê-se a formalização de redes judiciais, a celebração de tratados internacionais e o aparecimento de entidades regionais e/ou globais que desempenhem tarefas de supervisão judiciária. O último dos desafios prende-se com a legitimidade do sistema, dependente sobretudo do reforço dos mecanismos de participação activa dos indivíduos e organizações internacionais nessas instâncias jurisdicionais, por um lado, e da qualidade jurídica das decisões judiciais, por outro. Participação, representatividade e distribuição equitativa da justiça ditarão o grau de legitimidade com que estas entidades actuarão no futuro.
Informação Complementar Fenómenos associados à Globalização Judicial • O aumento exponencial dos órgãos judiciais ou quasi-judiciais internacionais (e.g. ao clássico Tribunal Internacional de Justiça juntaram-se o Tribunal Penal Internacional, o Órgão de Apelo da OMC, os Tribunais Europeu e Inter-Americano dos Direitos do Homem e os tribunais e órgãos de resolução de litígios das Organizações de integração regional); • A extra-territorialidade dos sistemas judiciais estaduais, isto é, a resolução de litígios provenientes de relações transnacionais em tribunais nacionais (por exemplo, a assunção de jurisdição universal por parte de sistemas jurídicos estaduais em relação a crimes contra a humanidade cometidos fora desses Estados e por e contra nacionais de outros Estados). • A crescente resolução judicial dos conflitos internacionais entre Estados, entre indivíduos e Estados, e entre indivíduos (cfr., entre outros, o Common Court of Justice and Arbitration of the Organization for the Harmonization of Corporate Law em África e o Judicial Tribunal of the Organization of Arab Petroleum-Exporting Countries no Médio Oriente). • O aparecimento de redes judiciais internacionais em que juízes de diferentes Estados constituem mecanismos de cooperação mais ou menos formais (Conferencia dos Tribunais Constitutionais Europeus, Worldwide Common Law Judiciary Conference, The Law Association for Asia and Pacific, etc.); Esta globalização judicial é, no entanto, suportada por um fenómeno mais vasto de globalização do Direito que consiste, entre outros, dos seguintes elementos: • A multiplicação de Constituições nacionais como norma fundamental dos sistemas jurídicos estaduais. • O reforço do poder judicial e da sua independência, mesmo em Estados com pouca tradição jurídica, em grande parte, como consequência da crescente integração económica e da exigência que esta impõe de um sistema de direitos de propriedade e transacções económicas claro, consistente e previsível. • A concentração económica verificada no exercício da advocacia (com os pequenos escritórios de advogados a serem, crescentemente, substituídos por grandes sociedades de advogados, frequentemente inseridas em sociedades ou grupos internacionais). • A globalização do próprio ensino do Direito com um número crescente de estudantes a realizar mestrados jurídicos fora do seu país de origem.
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