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AQUI! Formado no período renascentista, a partir de um “processo de raciocínio indutivo”, assente na prática dos Estados, o direito internacional tende hoje a identificar-se como o ordenamento jurídico da comunidade internacional. Devido ao desenvolvimento rápido e complexo da sociedade, os tratados internacionais tendem a substituir o costume como fonte principal de criação de normas de direito internacional. Antes do século XIX a sua relevância era diminuta. A revolução industrial do século XIX e a revolução tecnológica no século XX inverteram este estado de coisas. A tal ponto, que a quase totalidade da ordem jurídica internacional se identifica hoje com os tratados e as organizações internacionais, estas últimas instituídas, por sua vez, por tratados internacionais, considerados via indispensável e exclusiva de criação e implementação das organizações internacionais. Não pode, pois, apesar da relevância dos “princípios da soberania”, do “consentimento” e da “boa-fé”, princípios fundamentais de direito internacional comum ou geral, afirmar-se que, no caso dos tratados e acordos internacionais, a natureza jurídica das normas pactícias dependa inteiramente da intenção das partes contratantes. Com efeito, o tratado não constitui apenas uma relação jurídica entre duas ou mais partes. Constitui antes uma fonte de produção jurídica, um processo de criação de normas de direito internacional. Se a questão a nível de direito interno é solucionada no sentido de os negócios jurídicos não constituírem fontes de direito, no direito internacional público, pelo contrário, os tratados, para além de criarem direitos subjectivos e deveres jurídicos quanto às partes contratantes, criam direito em sentido objectivo. Em termos breves, a conclusão ou aceitação de um tratado não é um mero negócio jurídico, antes um processo de criação de direito.
Os tratados internacionais bilaterais e multilaterais como processo de criação de direito internacional Independentemente das considerações que possam ser aduzidas quanto ao estádio de desenvolvimento do direito e comunidade internacionais, os tratados apresentam-se como um dos “processos de criação de direito internacional”, a par das normas e princípios de “direito internacional comum ou geral”, e a título subsidiário os “princípios gerais de direito”, nos termos do disposto no artigo 38.º do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça (1). Neste sentido, por tratados internacionais deverá entender-se os acordos, pactos, convenções, protocolos, troca de notas e outras expressões sinónimas, celebrados entre sujeitos de direito internacional (Estados e organizações internacionais ou organizações internacionais entre si) que criem obrigações jurídicas vinculantes no âmbito do direito internacional. Podem ser qualificados de “bilaterais”, se concluídos entre duas partes contratantes, ou “multilaterais”, se concluídos entre mais do que duas partes contratantes (2). Por intermédio da conclusão ou aceitação de tratados ou acordos internacionais, os sujeitos de direito internacional podem limitar a sua liberdade de acção. Nesses precisos termos, ainda que com efeitos limitados, as normas decorrentes da conclusão ou aceitação de um tratado ou acordo internacional podem alterar, modificar ou derrogar normas de direito internacional comum ou geral, à excepção das normas de ius cogens (3). O direito criado por esse acordo ou tratado internacional é “direito convencional particular”, isto é, válido unicamente para as partes contratantes. Apenas quando no tratado são partes todos os Estados do mundo, como no caso, aproximado, da ONU, este se transforma em “direito internacional universal”.
O princípio do consentimento Sob este ponto de vista, os tratados devem hoje ser considerados como um processo primário de criação de direito internacional. Contudo, a natureza vinculante de um tratado individualmente considerado repousa em normas de direito internacional comum ou geral, que derivam, por sua vez, do “princípio do consentimento”. No direito internacional “clássico” era usual distinguir-se os “tratados normativos” ou “criadores de direito” dos “tratados contrato” (law-making treaties e contract treaties, respectivamente). Hoje a concepção dominante é no sentido de que todos os tratados internacionais validamente concluídos criam direito e direito em sentido objectivo (4) .O princípio do consentimento, todavia, determina que esses acordos ou tratados internacionais regulem apenas os direitos e deveres das partes contratantes. Não podem, em consequência, modificar a situação jurídica dos sujeitos não partes sem o seu consentimento (5). Não obstante, na ausência de uma autoridade legislativa central, tem-se afirmado que os tratados desenvolvem funções que poderíamos apelidar de “legislativas”. Com limitações, é certo, poderíamos falar aqui em “legislação internacional delegada” (6). Isso ocorre, designadamente, quando os Estados, por intermédio de tratados, estabelecem organizações internacionais com poderes de criação de normas jurídicas vinculantes em relação aos Estados membros, ainda que os poderes conferidos a essas organizações se mostrem estritamente limitados ao disposto na respectiva carta constitutiva ou que lhes hajam sido conferidos posteriormente pelos Estados membros (“princípio da especialidade”). É neste sentido que se afirma que sem o consentimento dos Estados nenhum órgão internacional resulta competente para produzir uma “interpretação autêntica” do direito internacional. Este aparente estado de “auto-interpretação” do direito internacional pelos seus sujeitos pode dar lugar a abusos.
As “ordens consensuais” e o problema da efectividade do direito internacional Ao nível da sociedade mundial organizada, os princípios da ONU, enunciados no artigo 2.º da Carta, constituem um “ius cogens consensual”, isto é, normas de uma ordem deiure que não poderá ser modificada ou derrogada por acordo individual entre os Estados. Este tipo de “ordens consensuais” — ONU, União Europeia, organizações especializadas das Nações Unidas — constituem ordens deiure que podem, com propriedade, ser descritas como “quase ordens internacionais” (7). A Carta das Nações Unidas vai ainda mais longe: estabelece que, em caso de conflito entre as obrigações de membros das Nações Unidas em virtude Carta e as obrigações resultantes de qualquer outro acordo internacional, prevalecerão as obrigações assumidas em virtude da Carta (8). A constatação da existência de obrigações jurídicas conflituantes, resolvida nos termos da Carta pela supremacia do direito internacional, supõe a consideração da mesma como uma espécie de “Constituição” ou “lei fundamental” da comunidade internacional. Supõe, numa palavra, um “direito internacional de natureza constitucional” ou, noutros termos, um “direito constitucional internacional” (9). Sob este ponto de vista, autores há que têm vindo a pugnar por esta subida de estalão na interpretação e aplicação das normas de direito internacional derivadas da Carta, o chamado “direito internacional das Nações Unidas” que se imporia a todos os sujeitos de direito internacional independentemente do respectivo consentimento ou aceitação. O princípio do consentimento que determina que os tratados não conferem nenhum direito nem impõem nenhum dever jurídico a entidades não partes (pacta tertiis nec nocent nec prosunt) é hoje perfeitamente compatível com a posição das entidades não partes como sujeitos soberanos e independentes. Basta para tanto que lhes haja sido oferecida a oportunidade de aderir a esse acordo ou tratado internacional. A questão, contudo, deverá ser examinada casuisticamente, recorrendo aos princípios fundamentais de direito internacional, designadamente ao princípio da boa-fé (10). No limite, trata-se de um problema de efectividade do direito internacional, dependente em larga medida da vontade dos Estados, que são simultaneamente sujeitos e destinatários das normas de direito internacional, em ajustarem os respectivos direitos e obrigações por forma a poderem cumprir com o direito internacional. Os grandes avanços ocorridos nas últimas décadas no direito internacional têm resultado, directa ou indirectamente, da conclusão e aceitação de acordos bilaterais ou multilaterais. Em particular, o princípio do consentimento tornou possível a acumulação de um corpo de jurisprudência internacional. Por via da interpretação e formulação dos direitos e deveres das partes em situações de conflito, a jurisprudência internacional em muito tem contribuído para o desenvolvimento e aperfeiçoamento do direito internacional. Essas limitações à jurisdição interna dos Estados, decorrentes do direito internacional convencional, de excepcional relevância, têm dado origem a ramos especializados do direito internacional, designadamente o chamado “direito das organizações internacionais”, o “direito internacional económico”, o “direito internacional social”, o “direito internacional penal”, o “direito internacional do espaço aéreo”, etc.
O conceito de “soft law” A classificação dos “actos de produção jurídica” das organizações internacionais, e antes de mais o conjunto de recomendações, resoluções e declarações provenientes de diversos órgãos, entidades e organizações especializadas da ONU e outras organizações internacionais de carácter universal ou regional, ampliaram o leque da discussão em torno do sistema de fontes ou processos de criação de direito internacional. É neste sentido que surge o conceito de soft law, que poderíamos traduzir por “direito flexível”. Este tem gerado, um pouco por toda a parte, dificuldades dogmáticas acrescidas. Com efeito, quando os órgãos de uma organização internacional, ou mesmo uma conferência internacional de carácter multilateral, se pronunciam através de resoluções, recomendações ou declarações de princípio, estamos em presença da criação de normas de direito internacional, isto é, de um dever jurídico vinculante para os Estados e outros sujeitos de direito internacional, ou tão só perante um dever moral, que sugere um comportamento livre mas conforme? Numa palavra, um “direito sem vinculatividade jurídica”? (11) Para muitos, este conceito de soft law surge como símbolo de uma crise profunda do direito internacional, se por este entendermos o direito internacional público “clássico”. Não obstante, do que se trata não é da distinção entre o direito e o não direito, nem tão pouco da criação de deveres morais, ou mesmo de princípios programáticos, que não podem como tal ter a qualidade de normas jurídicas, mas da criação de uma norma jurídica in statu nascendi. Outros, todavia, não vão tão longe: referem unicamente a prática dos Estados como meio de prova da criação de uma norma de direito internacional comum, geral ou particular. Como qualquer outra ordem jurídica, também o direito internacional tem vindo recentemente a distinguir o chamado “direito coactivo” (ius cogens) do “direito dispositivo” (ius dispositivum). No caso Barcelona Traction, o Tribunal Internacional de Justiça distinguiu os deveres jurídico-internacionais para com a comunidade internacional como um todo, isto é, com validade erga omnes, dos deveres em relação aos Estados individualmente considerados (12). O conceito de soft law resulta especialmente operativo no domínio do direito internacional económico, marcado por uma relação de desigualdade entre os países industrializados e os países em vias de desenvolvimento (PVD). Neste contexto, diferencia-se de outros conceitos afins como os gentlemen’s agreements e os “códigos de conduta”, igualmente relevantes no domínio das relações económicas, mas que não criam direitos e obrigações jurídicas vinculantes para as partes. A violação do soft law é vista essencialmente como um acto não amistoso por parte de outros Estados. Contra violações do soft law, afirma-se, podem ser usadas retorsões ou retaliações, mas não represálias, com o sentido que estes institutos detêm no direito internacional. No limite, os Estados, apesar da sua diversidade cultural, oposições ideológicas e outras premissas específicas de diferenciação no campo da ciência e do desenvolvimento do direito internacional, devem procurar um consenso global sobre os princípios fundamentais de uma “Constituição da comunidade internacional”. É neste sentido que se afirma que a decisão sobre a natureza jurídica ou não jurídica de uma norma de direito internacional deve ter em consideração a atitude que sobre a mesma possam assumir os seus destinatários, isto é, os Estados e outros sujeitos de direito internacional. Uma circunstância que não deixa de gerar incertezas e dificuldades acrescidas quanto à validade das normas, acabando por revelar-se como um teste subjectivo de duvidosa consistência. Quadros dos principais tratados multilaterais Quadros dos principais tratados bilaterais
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