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Direitos sociais e reclamações colectivas

Maria Josefina Leitão *

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A 9 de Novembro de 1995 os membros do Conselho da Europa aprovaram um “Protocolo adicional à Carta Social Europeia instituindo um sistema de reclamações colectivas”. Este protocolo entrou em vigor em 1998, sendo Portugal o primeiro país a ser objecto de uma reclamação colectiva relativa ao trabalho infantil. As queixas/reclamações ao abrigo do Protocolo só podem ser realizadas por certas pessoas colectivas: organizações nacionais e internacionais de trabalhadores e de empregadores e ONG nacionais e internacionais que cumpram determinados critérios.

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Em 9 de Novembro de 1995, os Estados membros do Conselho da Europa, “decididos a tomar medidas para melhorar a aplicação efectiva dos direitos sociais garantidos na Carta Social Europeia”, aprovaram um “Protocolo adicional à Carta Social Europeia instituindo um sistema de reclamações colectivas”. Portugal, Chipre, Dinamarca, Finlândia, França, Itália e Suécia foram os países que, na mesma data, assinaram este protocolo, encontrando-se também entre os primeiros que o ratificaram. Efectivamente, o decreto do Presidente da República que procede à sua ratificação data de 6 de Dezembro de 1997.

Actualmente, encontram-se ligados pelo Protocolo os seguintes países: Bélgica, Croácia, Chipre, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Noruega, Países Baixos, Portugal e Suécia. Quer isto dizer que, dos trinta e três Estados membros do Conselho da Europa que ratificaram a Carta Social Europeia, de 1961, ou a Carta Social Europeia Revista, de 1996, onze aceitaram que o controlo do cumprimento dos direitos consagrados nestes dois instrumentos de direito internacional fosse efectuado não apenas através do mecanismo tradicional de análise dos relatórios elaborados pelos governos, mas também através da apreciação das queixas apresentadas por determinadas organizações.

O Protocolo de Reclamações Colectivas viria a entrar em vigor em 1 de Julho de 1998, um mês após as cinco ratificações necessárias para o efeito, e Portugal seria o primeiro país a ser objecto de uma reclamação colectiva: a Reclamação n.º 1/1998 da Comissão Internacional dos Juristas, por violação do artigo 7.º parágrafo 1 da Carta, que obriga os Estados Partes a proibirem o trabalho de crianças antes de atingida a idade de quinze anos e antes de concluída a escolaridade obrigatória. É interessante referir que o processo respeitante à Reclamação n.º 1/1998 viria a constituir uma espécie de modelo, que influenciaria as posteriores reclamações, não só por ter sido o primeiro, mas também porque o Conselho da Europa decidiu dedicar-lhe uma publicação, onde incluiu todas as peças do processo.

 

Que organizações podem apresentar reclamações colectivas?

Contrariamente ao que se verifica com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, o protocolo não consagra o direito das pessoas físicas – que se considerem vítimas da violação, por um determinado Estado, das obrigações que assumiu com a ratificação da Carta Social Europeia ou da Carta Social Europeia revista – a apresentarem queixas/reclamações ao Comité Europeu dos Direitos Sociais, a entidade independente que aprecia o cumprimento dessas obrigações.

Efectivamente, como decorre da sua própria designação, o protocolo apenas reconhece esse direito a certas pessoas colectivas, mais precisamente às organizações internacionais e nacionais de empregadores e de trabalhadores e às Organizações Não Governamentais Internacionais (ONGI), dotadas de estatuto consultivo junto do Conselho da Europa, particularmente competentes nas matérias previstas na Carta e que se encontrem inscritas numa lista elaborada para esse efeito. Beneficiam igualmente do direito de apresentar reclamações colectivas as organizações não governamentais nacionais, desde que o Estado sob cuja jurisdição se encontrem remeta ao Secretário Geral do Conselho da Europa uma declaração reconhecendo-lhes esse direito.

Deve salientar-se que, não obstante o protocolo não ter consagrado um direito de reclamação individual, mas apenas colectiva, ao reforçar o papel dos parceiros sociais e de outras organizações não governamentais no controlo dos compromissos internacionalmente assumidos pelos Estados, constituem um passo importante para o cumprimento dos direitos económicos e sociais consagrados na Carta Social Europeia e na Carta Social Europeia revista, como decorre dos resultados obtidos com as reclamações já apresentadas.

 

Quais as condições para a apresentação de reclamações colectivas contra um determinado Estado?

As reclamações colectivas só podem ter lugar contra Estados que tenham simultaneamente ratificado a Carta Social Europeia, ou a Carta Social Europeia revista, e o Protocolo Adicional prevendo um sistema de reclamações colectivas.

No que concerne à ratificação da Carta ou da Carta revista, é de salientar que tanto uma como outra admitem a possibilidade de ratificação parcial. Efectivamente, os Estados podem obrigar-se ao cumprimento de apenas um número mínimo de artigos e parágrafos, variável de acordo com o instrumento ratificado, desde que neste conjunto se inclua uma parte significativa dos artigos que formam o chamado “núcleo duro”. Este núcleo abrange, na Carta de 1961, os artigos que se reportam aos direitos laborais, sindicais, de negociação colectiva, incluído o direito de greve, à segurança social, à assistência social e médica, ao direito da família a uma protecção social, jurídica e económica e dos trabalhadores migrantes e das suas famílias à protecção e à assistência, e na Carta revista, aos mesmos direitos, aos quais acresce o direito à igualdade de oportunidades e de tratamento, sem discriminação com base no sexo.

Assim, qualquer das organizações atrás mencionadas que pretenda apresentar uma reclamação colectiva terá que a fundamentar na violação, pelo Estado contra o qual é dirigida, de direitos consagrados em algum ou alguns dos artigos e parágrafos que este tenha ratificado. As reclamações colectivas deverão ser formuladas por escrito e indicar qual a disposição da Carta, aceite pelo Estado, cuja aplicação considera não estar assegurada de maneira satisfatória.

De referir que Portugal encontra-se, actualmente, obrigado ao cumprimento da Carta Social Europeia revista, dado que a sua ratificação e posterior entrada em vigor fez cessar a aplicação da Carta de 1961, e que esta obrigação abrange os trinta artigos deste instrumento de direito internacional, visto ter procedido à sua ratificação na íntegra.

 

De que modo se desenrola o processo de reclamação colectiva?

O processo de reclamação colectiva inicia-se com a sua apresentação ao Secretário Geral do Conselho da Europa, que acusa a sua recepção, informa desse facto o Estado Parte e a remete imediatamente ao Comité Europeu dos Direitos Sociais, um dos órgãos de controlo do cumprimento pelos Estados dos compromissos assumidos.

Este Comité aprecia, em primeiro lugar, a admissibilidade da reclamação, à luz dos requisitos estabelecidos no Protocolo e dos elementos fornecidos pelas duas partes. Seguidamente, se a sua decisão for no sentido da admissibilidade, procede à análise do mérito da reclamação.

Quer na fase de apreciação da admissibilidade, quer na da apreciação do mérito, as partes podem submeter, por escrito, as explicações ou informações que julguem apropriadas, dentro dos prazos fixados pelo Comité e no respeito das regras inerentes ao princípio do contraditório. Uma audição com representantes das partes pode igualmente ter lugar, se o Comité assim o entender.

Os outros Estados Partes no Protocolo podem submeter ao Comité, durante o período de apreciação do mérito da reclamação, as observações escritas que julguem convenientes. O mesmo direito é reconhecido às organizações internacionais de empregadores e trabalhadores, representadas no Comité Governamental da Carta Social Europeia (UNICE, OIE e CES), caso a reclamação provenha de uma organização nacional de empregadores ou de trabalhadores, ou de uma organização não governamental, internacional ou nacional.

As conclusões do Comité Europeu dos Direitos Sociais sobre se o Estado posto em causa assegura ou não a aplicação da disposição da Carta visada pela reclamação constam de um relatório que é transmitido ao Comité de Ministros do Conselho da Europa, à organização autora da reclamação e aos Estados Partes da Carta ou da Carta revista.

Com base neste relatório, o Comité de Ministros adopta uma resolução, que pode incluir uma recomendação, caso se confirme o não cumprimento da Carta. No seguimento desta recomendação, o Estado faltoso deverá fornecer ao Conselho da Europa informação sobre as medidas que tomou para corrigir a situação criticada. A propósito da forma como se encontra organizado o processo de reclamação colectiva, de referir que uma das razões que levou à instituição deste mecanismo prende-se com a morosidade que caracteriza a apreciação do cumprimento das convenções internacionais com base em relatórios periódicos. Com efeito, esta morosidade contribui em grande parte para a ineficácia deste direito. Ora, como o Protocolo teve por objectivo essencial a melhoria da aplicação efectiva dos direitos sociais garantidos na Carta, não é de admirar que os prazos processuais estabelecidos sejam relativamente curtos. Deste modo, procura-se assegurar uma resposta rápida às violações desses direitos.

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Quantas reclamações colectivas foram apresentadas, contra que países e por que entidades?

Entre a data de entrada em vigor do Protocolo (1 de Julho de 1998) e Agosto de 2003, foram apresentadas ao Conselho da Europa vinte reclamações colectivas: seis contra a França, cinco contra a Grécia, quatro contra Portugal, duas contra a Itália, uma contra a Finlândia, uma contra a Irlanda e uma contra a Suécia. As entidades autoras das reclamações foram sobretudo organizações não governamentais internacionais (ONGI), mas também organizações de empregadores e trabalhadores internacionais e nacionais.

De notar que o Comité Europeu dos Direitos Sociais considerou admissíveis todas as reclamações apresentadas, embora em alguns casos tenha concluído não existir violação da disposição invocada.

 

Reclamações colectivas apresentadas contra Portugal

As reclamações apresentadas contra Portugal incidiram sobre os seguintes artigos: 7.º parágrafo 1 (proibição do trabalho de crianças com menos de quinze anos e que não tenham concluído a escolaridade obrigatória) e 5.º e 6.º (direito sindical e de negociação colectiva) da Carta de 1961, e 17.º (direito das crianças a uma protecção social, jurídica e económica) da Carta revista.

Os fundamentos invocados respeitaram, pela ordem indicada, ao facto de a admissão de crianças ao trabalho, embora conforme com a disposição mencionada de um ponto de vista legal, não a respeitar na prática; ao não reconhecimento às forças armadas do direito sindical e de negociação colectiva; ao não reconhecimento do mesmo direito à polícia; e à não proibição de castigos corporais ou tratamentos degradantes das crianças, bem como à não previsão de sanções adequadas para o efeito no direito penal e civil.

Destas reclamações, a última, pelo facto de só ter sido registada em 28 de Julho de 2003, ainda não foi objecto de apreciação pelo Comité Europeu dos Direitos Sociais. Quanto às três restantes, o Comité concluiu, na primeira, pela violação do artigo 7.º parágrafo 1.º e, na segunda e terceira, pela não violação da Carta, embora essa conclusão tenha tido razões diferentes em cada uma das reclamações.

 

Quais os efeitos da reclamação contra Portugal por trabalho infantil?

A resolução do Comité de Ministros do Conselho da Europa, adoptada no seguimento da conclusão do Comité Europeu dos Direitos Sociais sobre a reclamação por trabalho infantil, não renovou a recomendação anteriormente dirigida a Portugal, no quadro da apreciação regular de relatórios sobre o cumprimento da Carta.

No entanto, não se pode negar que a sua apresentação e a defesa que teve de ser desenvolvida pelo governo tiveram grande influência na definição e implementação das políticas em matéria de combate ao trabalho infantil e contribuíram para a construção de uma imagem de Portugal como um país respeitador dos compromissos internacionalmente assumidos.

Com efeito, no seguimento desta reclamação, entre outras medidas, foi reforçada a actuação do Plano para a Eliminação da Exploração do Trabalho Infantil (PEETI) e do Conselho Nacional contra a Exploração do Trabalho Infantil, foram estabelecidas formas de cooperação entre organismos públicos e privados e, com o apoio da Organização Internacional do Trabalho (OIT), foram lançados inquéritos pioneiros para determinar a extensão e as características deste fenómeno, inquéritos que viriam, posteriormente, a ser realizados por outros países. Portugal passou, assim, a ser considerado como um país que, sem negar a existência de um problema social, procura encontrar as soluções mais adequadas para o resolver.

A instituição pelo Conselho da Europa de um mecanismo de reclamações colectivas constituiu, pois, como é exemplificado pelo caso português, um contributo importante para o respeito pelos direitos sociais consagrados na Carta Social Europeia e na Carta revista. É certo que alguns aperfeiçoamentos podem ainda ser introduzidos neste mecanismo, como a experiência tem vindo a demonstrar. No entanto, é inegável o papel desempenhado no aumento da eficácia destes dois instrumentos de direito internacional.

 

Informação Complementar

Lista das reclamações apresentadas (entre 01.07.1998 e 05.08.2003)

n.º 1/1998 – Comissão Internacional de Juristas contra Portugal

n.º 2/1999 – Federação Europeia do Pessoal dos Serviços Públicos contra a França

n.º 3/1999 – Federação Europeia do Pessoal dos Serviços Públicos contra a Grécia

n.º 4/1999 – Federação Europeia do Pessoal dos Serviços Públicos contra a Itália

n.º 5/1999 – Federação Europeia do Pessoal dos Serviços Públicos contra Portugal

n.º 6/1999 – Sindicato Nacional dos Profissionais de Turismo contra a França

n.º 7/1999 – Federação Internacional das Ligas dos Direitos dos Homens contra a Grécia

n.º 8/2000 – Conselho quaker para os Assuntos Europeus contra a Grécia

n.º 9/2000 – Confederação Francesa dos Quadros contra a França

n.º 10/2000 – Tehyry and STTK contra a Finlândia

n.º 11/2001 – Conselho Europeu dos Sindicatos de Polícia contra Portugal

n.º 12/2002 – Confederação das Empresas Suecas contra a Suécia

n.º 13/2002 – Autismo-Europa contra a França

n.º 14/2003 – Federação Intern. das Ligas dos Direitos do Homem (FIDH) contra a França

n.º 15/2003 – Centro Europeu dos Direitos dos Roms contra a Grécia

n.º 16/2003 – Confederação Francesa do Enquadramento contra a França

n.º 17/2003 – Organização Mundial contra a Tortura (OMCT) contra a Grécia

n.º 18/2003 – Organização Mundial contra a Tortura (OMCT) contra a Irlanda

n.º 19/2003 – Organização Mundial contra a Tortura (OMCT) contra a Itália

n.º 20/2003 – Organização Mundial contra a Tortura (OMCT) contra Portugal

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* Maria Josefina Leitão

Presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego. Representante no Comité governamental da Carta Social Europeia, do qual foi presidente entre 1995 e 1997.

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