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- JANUS 2004 -

Janus 2004



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Tendências comparativas do direito constitucional português

Ana Paula Veiga *

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Faz-se uma análise comparativa de três aspectos fundamentais da Constituição: Direitos Humanos, Democracia e Tribunal Constitucional. Os Direitos Humanos estão na base das revoluções e posteriores constituições francesa e americana. À representação democrática, através da representação parlamentar, adicionou-se em 1989 a figura do referendo nacional. O Tribunal Constitucional controla a conformidade dos actos legislativos com a Constituição e a inconstitucionalidade por omissão, não constituindo o único, nem o primeiro órgão de fiscalização da constitucionalidade.

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Tratar de direito constitucional supõe que, antes de mais, deixemos aqui uma ideia de Constituição. Falamos de Constituição ao tempo do constitucionalismo moderno, que, pese embora as diversas manifestações e configurações nacionais (sugira-se, a título de exemplo, a diferença entre a “revelação” do constitucionalismo na Inglaterra e o “corte” revolucionário na França), se convencionou ter começado em meados do século XVIII. Assentemos, desde já, na seguinte aproximação: uma Constituição, que normalmente assume uma forma de documento escrito, contém duas ideias básicas: (a) ordena, funda e limita o poder político; e (b) reconhece e garante os direitos e liberdades do indivíduo. Daí a importância do princípio da separação dos poderes, classicamente teorizado por Montesquieu, e da sua nova compreensão, e das declarações de direitos que se foram fazendo (e ainda hoje se fazem) nos vários “lugares”.

A Constituição da República Portuguesa, não apenas a vigente (CRP de 1976), mas também as que a precederam, é tributária de vários modelos constitucionais. Classicamente, um dos modelos que desenvolveu a “ideia constitucional” foi o francês e a sua Revolução de 1789, importando para a “cena constitucional” conceitos como os de “Nação”, “Poder Constituinte” e “Soberania Nacional”.

Mas a essa compreensão juntam-se hoje pelo menos duas outras: o “We, the People” norte-americano e a “Parliament Representation” inglesa.

 

A Constituição da República Portuguesa de 1976 no “mundo” das constituições ocidentais

A Constituição de 1976 é um texto original. A especificidade da Revolução de Abril de 1974 crismou-a de soluções diversas das suas congéneres ocidentais. Pediu-se, no entanto, uma visão comparada. Essa análise pode versar vários aspectos, nomeadamente a protecção dos direitos, a representação democrática, os poderes e instituições do Estado e a sua organização territorial.

Elegemos três aspectos que nos parecem nucleares – os Direitos, a Democracia e o Tribunal Constitucional como “guardião da Constituição”. Eis pois alguns dos tópicos que nos sugerem semelhanças e aproximações comparativas.

 

O núcleo básico dos Direitos Humanos

A titularidade e o reconhecimento dos direitos humanos são inerentes à modernidade. Basta retroceder ao início do constitucionalismo moderno, nomeadamente às revoluções francesa e americana, para recordar o célebre artigo 16.º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “Toute société danslaquelle la garantie des droits n’est pásassurée, ni la separation des pouvoirsdéterminée n’a point de Constitution”.

A essencialidade dos direitos, fundada no princípio antropológico da Dignidadeda Pessoa Humana, é corolário da sua transcendência face aos ordenamentos jurídicos. Mas tal não implica uma não consagração de direitos a nível das Constituições nacionais. Mediante a positivação dos direitos humanos nas constituições opera-se (regra geral) uma modificação terminológica, já que esses direitos (humanos) se passam a apelidar de direitos fundamentais ou constitucionais. A radicação dos direitos humanos numa ideia supra ou pré-positiva manifesta-se, de uma forma ou de outra, nos textos constitucionais. Ao cotejarmos as Constituições italiana (artigo 2.º) e portuguesa (artigo 2.º) verifica-se que em ambos os textos está presente a ideia do reconhecimento pelo Estado dos direitos fundamentais dos cidadãos. É mais o poder de ius dicere do que o poder de ius dare que aqui está em causa (1).

Os direitos humanos não são direitos estáticos. Um decisivo contributo foi dado, após as atrocidades julgadas em Nuremberga, pela Declaração Universaldos Direitos do Homem, de 1948. Não obstante as diversas classificações de direitos possíveis, escolhemos deixar aqui uma, susceptível de dar eco aos sucessivos alargamentos a que os direitos vêm assistindo. Falamos de gerações de direitos, (seguramente de três) que radicam em princípios fundamentais.

As raízes dos direitos de primeira geração (direitos clássicos, como a vida, a liberdade, a propriedade) remontam ao Capítulo II do Segundo Tratado sobre o Governo de Locke (1690). A fórmula direitos e garantias individuais surge pela primeira vez, em Portugal, na Constituição de 1911 (Título 11, artigo 3.º).

O que fundamenta os direitos de segunda geração não é já a liberdade do indivíduo e a defesa perante o Estado mas o Princípio da Socialidade, fórmula utilizada pela Constituição alemã, e patente no nosso texto constitucional, no artigo 2.º, mediante a expressão “democracia económica, social e cultural”. Os direitos sociais, realidades do século XX, são direitos que, na sua grande maioria, exigem uma intervenção constitutiva e concretizadora do Estado.

Os direitos de terceira geração são os direitos de solidariedade. Estes direitos, de vocação mais internacionalista, surgiram, prima facie, em instrumentos relativos à nova ordem humanitária internacional. A preservação da espécie humana à escala global fez emergir o direito à paz, o direito ao ambiente, o direito ao desenvolvimento, o direito ao património comum da Humanidade. Alguns destes direitos, nomeadamente o direito ao ambiente e o direito ao desenvolvimento, obtiveram depois consagração constitucional. No que respeita ao primeiro, veja-se, à semelhança do nosso artigo 66.º, o artigo 45.º da Constituição espanhola e o artigo 24.º da Constituição grega. No que respeita ao segundo, saliente-se o artigo 3.º da Constituição italiana. Entre nós, o direito ao desenvolvimento, embora numa acepção restrita (como “direito ao desenvolvimento da personalidade” – artigo 26.º/1), obteve consagração constitucional com a revisão constitucional de 1997, numa clara recepção da Constituição alemã (artigo 2.º/1) (2).

Os meios de defesa dos direitos são, hoje, variadíssimos e a vários níveis. Em paralelo com a tutela a nível nacional, jurisdicional e não jurisdicional, apresenta-se uma variedade de formas no quadro do direito internacional e do direito regional. Aqui queremos realçar, ao lado dos Pactos Internacionais, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e direito de recurso ao respectivo Tribunal, o papel essencial que poderá desempenhar o Tribunal Penal Internacional, criado no fim da década de 90.

Um último tópico de actualidade vai para a “hora” da Constituição Europeia e para o “momento” de consciencialização europeu de direitos fundamentais, marcado precisamente mediante a adopção, na Cimeira de Nice, em Dezembro de 2000, da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. Baseada numa outra sistematização, distinta do já clássico dualismo direitos, liberdades e direitossociais, erige como valores fundamentais a dignidade, a liberdade, a igualdade, a solidariedade, a cidadania e a justiça.

 

A representação democrática

Uma das “memórias” do direito constitucional português é a “memória democrática”. Ora, o princípio democrático tem sido aplicado, entre nós, fundamentalmente mediante a democracia representativa, na forma de representação parlamentar. Não obstante a introdução, pela revisão constitucional de 1989, do instituto do referendo nacional, e da ténue emergência de dimensões da democraciados cidadãos (de que são exemplo iniciativas contra “centrais nucleares”, contra ou a favor do “aborto”, sobre a “responsabilidade dos juízes”) a democracia directa, oriunda da polis grega, não logrou alcançar ainda em Portugal o sucesso desejado.

Um dos decisivos factores de acentuação da dimensão representativa democrática reside, à semelhança do que se passa a nível de outros países europeus, na importância dos partidos políticos no cenário nacional. Estes merecem regulação básica na Constituição de 1976 no artigo 51.º, encontrando ainda refracções nos artigos 10.º, 114.º e 288.º.

Os partidos políticos obtêm precisamente consagração a nível da Constituição como elementos de expressão do princípio em que assenta a representação – o princípioda soberania popular – e afiguram-se como fundamentais na organização do Estado.

O artigo 10.º da Constituição (“Os partidos políticos concorrem para a organização e para a expressão da vontade popular”) não difere muito do artigo 4.º da Constituição francesa (“Os partidos e agrupamentos políticos concorrem para a expressão do sufrágio”), do artigo 6.º da Constituição espanhola (“os partidos políticos são expressão do pluralismo político, concorrem para a formação e manifestação da vontade popular e são instrumento fundamental de participação política”), e do artigo 21.º da Constituição alemã (“Os partidos concorrem para a formação da vontade política do povo”).

No quadrante norte-americano, que adopta uma democracia representativa liberal, e não uma democracia representativa de partidos, a tendência para identificar democracia com eleição induz no partido político a função essencial de apresentação dos candidatos às eleições. Acresce que a Constituição norte-americana devolve para a legislação dos Estados federados a regulação dos partidos.

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O Tribunal Constitucional

Um dos “núcleos duros” de uma constituição é, como já se disse, a organização do poder político. Para isso, o Estado cria instituições de diversa natureza. De entre as instituições do Estado, e porque mais do que de ciência política tratamos de direito constitucional, impõe-se uma breve referência ao poder jurisdicional, e a um tribunal em especial – o Tribunal Constitucional (TC). Criado em 1982, o TC é, entre nós, o órgão de “justiça constitucional”. Não obstante as outras competências que lhe são atribuídas, controla a conformidade dos actos normativos com a Constituição, quer antes da sua entrada em vigor (controlo preventivo) quer na sua vigência (controlo sucessivo), seja em face de um caso concreto (por inspiração do modelo norte-americano da judicial review) operando como tribunal de recurso ou, em abstracto, a solicitação de determinadas entidades (modelo austríaco). Apesar da sua rara utilização, há, ainda, a possibilidade de verificar o não cumprimento da Constituição por omissão de medidas legislativas necessárias, mediante o instituto da inconstitucionalidade por omissão.

A não opção por um só modelo de fiscalização da constitucionalidade e a introdução do modelo difuso apenas numa primeira fase do processo de fiscalização, abrindo a possibilidade de o TC funcionar como um tribunal de recurso, levou já alguns autores a apelidar o nosso sistema, à semelhança do que sucede na Grécia e em alguns países da América Latina, como um quartum genus (3).

 

A “abertura” da Constituição

Uma das ideias centrais da Constituição de 1976 é a de abandonar a arrogância do “orgulhosamente sós”, fazendo nela radicar o Princípio da Abertura Internacional. Este princípio encontra-se basicamente plasmado no artigo 7.º, referente às relações internacionais. Ele tem, desde logo, duas acepções: (a) a inclusão do Estado português na comunidade internacional, com todas as consequências fácticas e jurídicas que daí advêm; (b) a abertura [horizontal (4)]da Constituição, que deixa de ter a pretensão de oferecer um esquema regulativo exclusivo e acabado, configurando-se antes como um texto fragmentário e não codificador.

É na abertura ou “amizade” com o direito internacional que se fundamenta a base antropológica de todos os homens e de todos os povos – a dignidade humana e os direitos humanos – e o reconhecimento de princípios e regras do direito internacional como medidas de justiça, vinculativas da ordem jurídica interna.

 

Informação Complementar

A “Memória” Constitucional Portuguesa

Apesar da “memória constitucional portuguesa”, dedicaremos umas breves linhas a descontinuidades constitucionais históricas. A justificação faz-se duplamente. Por um lado, se a nossa actual Constituição encerra várias experiências, quer nacionais, quer estrangeiras, e consagra soluções que já se podem apelidar de tradicionais em Portugal, há que não esquecer as descontinuidades em que se traduz a nossa história constitucional. Por outro lado, entendemos que, não obstante o “património constitucional” que a seguir referiremos, afigura-se difícil falar de traços identificadores de todo o constitucionalismo português, precisamente atendendo ao predomínio das rupturas e das descontinuidades na nossa história constitucional.

A primeira descontinuidade manifesta-se desde logo porque em Portugal, o constitucionalismo emergiu, à semelhança do que aliás sucedia com a generalidade dos países continentais, por via revolucionária. O corte com o Absolutismo deu-se na Revolução Vintista, que fez emergir o primeiro texto constitucional – a Constituição de 1822. A esta Constituição sucederam, até ao momento, mais cinco que, em traços gerais, espelham as ideias, os projectos, os problemas e as contradições das várias realidades por que o nosso país foi passando ao longo dos dois últimos séculos. As “rupturas” constitucionais são, assim, uma constante da nossa história constitucional, dizendo-se esta formalmente descontínua. Com efeito, se o constitucionalismo português se encetou apenas no século XIX, na sequência da Revolução de 1820, com a Constituição de 1822, a ela se seguiram, ainda no mesmo século, a Constituição de 1826, “outorgada” por D. Pedro IV, e a Constituição Setembrista de 1838.

No dealbar do século XX implanta-se a República, e com ela aprova-se a Constituição de 1911, que virá a ser substituída, no Estado Novo, pela Constituição de 1933. Uma nova descontinuidade formal, e até hoje a última, manifesta-se em 1976, seguindo os ecos da Revolução de 1974.

À descontinuidade constitucional formal associa-se uma descontinuidade material. Esta acontece, segundo alguns autores, e entre eles Carl Schmitt, quando há uma destruição do poder constituinte e da sua obra por um novo poder constituinte baseado num título legitimatório diferente do anterior. Vejamos como se passaram as coisas no nosso país.

A Constituição de 1822 resultou do exercício de um poder constituinte democrático, que residia na Nação. No entanto, a Constituição que lhe sucedeu (Carta Constitucional de 1826) reafirmou um poder constituinte monárquico, voltando novamente a Constituição de 1911 a apelar para o poder constituinte do povo, com a total rejeição do anterior poder constituinte monárquico. Entre as Constituições do século XX a diferença radica não tanto no título de legitimação do poder constituinte, já que ambas as Constituições surgiram, formalmente, como expressão de um poder constituinte democrático (plebiscitário no caso da Constituição de 1933 e representativo no caso da Constituição vigente), mas no conjunto dos seus princípios políticos estruturantes.

Na história constitucional portuguesa devem realçar-se, pela sua persistência e importância, seis “memórias”: (a) a “memória democrática”, presente, embora com graduações e configurações diversas, nas Constituições de 1822, 1838, 1911 e 1976; (b) a “memória humanista” mediante a inserção de um catálogo de direitos e liberdades na constituição formal. Não obstante as suas diversas configurações, pensamos nas garantias de direito e processo penal, no direito à inviolabilidade do domicílio e de correspondência, no direito de petição, no direito de sufrágio e no direito à propriedade privada; (c) a “memória da fiscalização judicial”, representada pela fiscalização judicial difusa da constitucionalidade dos actos normativos a partir da Constituição Republicana (de influência norte-americana); (d) a “memória autárquica”, manifestada pela constante existência de autarquias locais, pese embora a diferença de regimes ao longo dos tempos; (e) a “memória legislativa governamental”, assumida na prática das “leis do governo” e não apenas “lei do parlamento”; (f) a “memória bicéfala da separação entre Chefe de Estado e Chefe de Governo”, desde 1834.

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1 Em sentido não totalmente coincidente, vide Diego López Garrido et al, Nuevo Derecho Constitucional Comparado, Tirant lo Blanch, Valência, 2000, p. 159.
2 Existem autores que já identificam uma quarta geração de direitos. Serão os direitos da sociedade tecnológica, quer ao nível da tecnologia propriamente dita (destaque-se a Internet) ou a nível humano (biotecnologia e manipulações de genoma humano). Neste sentido, veja-se, Diego López Garrido et al, Nuevo Derecho Constitucional Comparado, Tirant lo Blach, Valência, 2000, p. 169.
3 Neste sentido, veja-se precisamente Diego López Garrido et al, Nuevo Derecho Constitucional Comparado, Tirant lo Blanch, Valencia, 2000, p. 428 e ss..
4 Falamos aqui de “abertura horizontal” para a distinguir da “abertura vertical” que surge em virtude do carácter geral e indeterminado de algumas normas constitucionais, gerando a necessidade de uma mediação legislativa concretizadora.

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* Ana Paula Veiga

Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito Coimbra. Ex-membro da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos.

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