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Uma reforma necessária A década de 90 e o início do século XXI assistiram a um renovar do interesse (pragmático e também científico) pelo processo de execução e pelos institutos que com ele se relacionam: vários países europeus, com a França em primeiro lugar (anos de 1991 a 1993), empreenderam importantes reformas do direito processual executivo; noutros, como a Itália, têm-se sucedido os projectos de reforma, finalmente em vias de passar à forma de lei; no plano da União Europeia, a revisão da Convenção de Bruxelas Relativa à Competência Judiciária e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial, de 27.9.68, finalmente substituída pelo Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, teve como um dos seus pivots o aligeiramento do procedimento de exequatur, única formalidade exigida para a passagem para a execução, num Estado da União, de uma obrigação reconhecida como exequível em outro Estado. O Código de Processo Civil português foi objecto, nos anos de 1995-1996, de uma importante revisão que não esqueceu a acção executiva. Foram então aperfeiçoados os esquemas da realização do direito do exequente, facilitado o acesso directo do credor à execução (diminuindo-se os casos de prévia passagem obrigatória pela acção de condenação: Portugal é o país da União Europeia com maior leque de títulos executivos extrajudiciais), racionalizados os esquemas de oposição do executado à penhora dos seus bens e maleabilizados os mecanismos da venda executiva, sem se ter descurado o sistema das garantias fundamentais do devedor perante a execução contra ele movida. Mas esta intervenção no campo da acção executiva foi insuficiente, não tendo ousado repensar, por limitação extrínseca originada em timings políticos apertados, o esquema dos actos executivos, que a revisão manteve nas suas linhas gerais. Havia, pois, que a prolongar, partindo de uma opção quanto ao modelo de processo a seguir, não porque a lei processual esteja na origem da crise da Justiça, para a qual concorrem sobretudo factores extrínsecos ao Direito e factores de organização judiciária, mas porque uma lei processual adequada à sociedade humana a que se aplica – e o esquema do processo civil executivo, demasiado formal e rígido, estava desactualizado – é um importante factor na recuperação da crise. O grande salto em frente, susceptível de permitir ao processo de execução, liberto de muitas outras peias e amarras, desenvolver-se eficazmente e em tempo útil, foi dado com o Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, fruto da iniciativa voluntariosa do ex-Ministro da Justiça António Costa e do desejo de aperfeiçoamento da actual Ministra da Justiça, Celeste Cardona.
O agente de execução e a desjurisdicionalização do processo O ovo não é de Colombo, porque outros países, como a França em primeiro lugar, conhecem há muito a figura do huissier, de que a nova figura nacional do solicitador de execução é um dos parentes próximos. Recrutado entre os solicitadores, o solicitador de execução tem natureza privada, mas desempenha uma função pública: faz penhoras, vende bens, recebe e distribui o preço das vendas, faz pagamentos e adjudicações de bens aos credores; em situação paralela à das entidades privadas concessionárias de serviços administrativos, exerce poderes de autoridade, que tradicionalmente têm pertencido aos magistrados judiciais, mas não relevam da pura função jurisdicional. Por seu lado, o juiz perde a direcção formal do processo executivo, mas não o seu controlo, algumas vezes prévio (o juiz verifica se pode ter lugar a execução) e sempre possível a posteriori (o juiz constitui instância de recurso dos actos e das omissões do solicitador de execução e decide todas as questões que este, as partes ou os funcionários judiciais lhe submetam no decurso do processo). Torna-se possível que uma execução se inicie, se desenvolva e termine sem qualquer intervenção judicial: basta que, não se tratando de caso em que o controlo prévio é exigido, a penhora não incida sobre depósito bancário ou bem imóvel, nenhum credor reclame para além do exequente e a venda e os pagamentos se façam sem oposição ou problema a resolver; o processo dará entrada na secretaria e nele ficarão a constar os actos praticados, mas a realização destes está a cargo do solicitador de execução. A reforma da acção executiva não se fica por aqui, pois muitos são os campos em que o legislador interveio para a simplificar e racionalizar, tornando-a ao mesmo tempo mais eficaz para o credor e mais justa para o devedor. Mas as grandes dúvidas que desde o início se agitam e as grandes interrogações sobre a realização prática do novo sistema giram, sobretudo, em torno da referida desjurisdicionalização de grande parte do processo executivo. Portugal era, com a Itália e a Espanha, por exemplo, um país em que, não só a execução globalmente, mas também todos os principais actos do processo executivo, estavam na dependência formal do juiz. No campo oposto, a Suécia configura o processo executivo como administrativo, por isso entregue a um serviço da administração. Não fomos, nem devíamos ir, tão longe. Mas o novo sistema, situado entre os extremos que se vêem no quadro intitulado “A acção executiva em vários países europeus”, rompe já muito significativamente com a tradição jurídica nacional.
A descoberta dos bens do devedor Um ponto que, não sendo de rotura, tem evolução significativa é o que respeita à descoberta dos bens do devedor (ver tabela correspondente). Nada dizem a este respeito as leis italiana, holandesa e luxemburguesa, tal como nada dizia, até à revisão de 1995/1996, a lei portuguesa. Nesta revisão, a exemplo do que acontecia já em França, na Bélgica e na Grã-Bretanha, foi consagrado um dever de informação do executado, porém praticamente não sancionado quando ele não cumpre. Mais drasticamente, as leis alemã, grega e dinamarquesa punem com pena de prisão o devedor que não informa o tribunal ou produz declaração falsa sobre os seus bens. Na Alemanha, designadamente, a declaração falsa é punida com prisão até três anos e a omissão de declaração com prisão até seis meses. A lei espanhola, por seu lado, limita-se a aplicar uma multa. O projecto António Costa estatuía sanções penais. Mas o DL 38/2003 optou antes pela solução da sanção pecuniária compulsória: verificado que tem bens o executado que haja declarado que não os tem ou tenha omitido declará-los, assim impossibilitando a satisfação do direito do exequente, é devida a quantia de 1% por cada mês que haja decorrido entre o momento da omissão e o da descoberta dos bens. Em campo próximo, divergem as legislações sobre o recurso, para a descoberta do património, aos organismos para tanto habilitados. O exemplo mais radical é o sueco, que disponibiliza várias bases de dados. Mas outros países têm disposições nesse sentido: na Dinamarca, o oficial de justiça colhe informação em todo o lado, acompanhado pela polícia, se o devedor as não der; na Bélgica há um registo de penhoras, a que só acedem os huissiers. O DL 38/2003 seguiu este exemplo e criou um registo informático de execuções, de que constam todos os processos executivos que corram contra determinado devedor, com a indicação do sucesso neles obtido; pode também o solicitador de execução, com permissão judicial, aceder a dados confidenciais.
Reclamação de créditos Divergem as legislações europeias quanto à posição relativa dos credores em face do processo de execução. De um lado, está a solução germânica, adoptada na Alemanha, na Áustria, na Suécia e em Portugal (desde o Código de Processo Civil de 1961), consistente em atribuir ao credor exequente uma preferência no pagamento, por via da penhora efectuada, e em restringir o concurso de credores aos que tenham direito real de garantia sobre os bens penhorados. Constitui corolário desta orientação que, devendo os bens ser vendidos livres dos direitos que os onerem, há que facultar a reclamação ao credor com garantia real que não tenha título executivo, pelo que, dentro ou fora do processo executivo, lhe há-de ser proporcionada a possibilidade de verificação do seu crédito; assim é que, no nosso direito, o credor tem de propor uma acção autónoma e, uma vez nela obtida a condenação do devedor, reclamar o seu crédito na acção executiva, só então se fazendo a graduação de todos os créditos, de modo a ficar determinada a ordem por que hão-de ser pagos. Do outro lado, está a solução românica, perfilhada pelos restantes sistemas jurídicos de civil law da União Europeia: os credores comuns devem ser tratados em igualdade, pelo que, desde que tenham título executivo, todos devem ser admitidos a reclamar os seus créditos em execução alheia, não gozando o exequente, por força da penhora, de qualquer preferência no pagamento. A actual lei francesa conhece a excepção da saisie attribution: penhorado um direito de crédito, ele é adjudicado ao exequente, o que constitui uma preferência manifesta. A lei italiana concede também o direito de reclamar ao credor sem título executivo, embora só os que o têm possam desencadear, na execução alheia, os actos executivos. Só são normalmente citados os credores com garantia real constante de registo. Dizem-se estes sistemas, respectivamente, de execução singular e de execução colectiva, ambos se opondo, não obstante as suas diferenças, à execução universal, que tem lugar no processo de falência, em que todos os credores do falido são atendidos. O DL 38/2003 manteve a opção nacional, que data de 1961: só os credores com garantia real podem reclamar em execução alheia.
Nota final As mudanças introduzidas pelo DL 38/2003 são muitas e importantes. Resta saber como jogarão na prática. Para o juiz de execução, liberto de muitas tarefas, mas guardando um controlo fundamental, e para o solicitador de execução, novo pivot do sistema executivo, se voltam agora as atenções dos operadores e dos utentes da Justiça: da resposta rápida e eficiente de um e outro dependerá o futuro da reforma. Se tivermos solicitadores ágeis e juízes que não deixem dormir o processo quando solicitados para lhe dar andamento, a reforma terá, por certo, valido a pena e os resultados não deixarão de se produzir, desde que o Ministério da Justiça, por sua vez, não poupe no necessário à montagem das estruturas organizativas de base que dele dependem.
Informação Complementar Descoberta dos bens Dever de informação do executado • praticamente não sancionado: • penalmente sancionado • sujeito a sanção pecuniária compulsória: Acesso a bases de dados: Suécia (total abertura); Dinamarca; Bélgica (registo de penhoras); Portugal (registo informático de execuções; permissão judicial para acesso a dados confidenciais) Silêncio legal: Itália, Holanda, Luxemburgo
Reclamação de créditos • Execução singular (só são admitidos credores com garantia real): Alemanha, Áustria, Suécia; Portugal desde 1961 • Execução colectiva (admitidos também os credores comuns): Itália, França, Bélgica, Holanda, Grécia, Espanha; Portugal até 1961 A acção executiva em vários países europeus
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