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O direito do trabalho e as relações contratuais laborais O direito do trabalho é um produto da revolução industrial (e do sistema capitalista) que se “disseminou” na justa medida em que a industrialização foi acontecendo nos diferentes países. Com efeito, com a revolução industrial iniciou-se todo um processo que daria lugar a dois fenómenos característicos da sociedade capitalista: a detenção dos principais meios de produção pelo também detentor do capital e do poder de organização e direcção na empresa; e o trabalhador assalariado, o qual tinha para oferecer, exclusivamente, a sua força de trabalho. O desmantelamento do sistema económico anterior, baseado na actividade agrícola e no comércio de produtos manufacturados, fortemente atomizado, e a sua substituição por um outro cuja característica foi a massificação da produção, produziu uma verdadeira debandada dos artesãos e dos pequenos agricultores arruinados em direcção aos grandes centros industriais. Isolados e dispersos perante o poder económico do empresário eram compelidos a aceitar condições de trabalho infra-humanas. Então, rapidamente se percebeu que os princípios proclamados pelo liberalismo, num quadro de desigualdade efectiva de poder como a que se vivia, não só não se concretizavam sem um elemento regulador do poder empresarial, como acentuava as desigualdades e as injustiças sociais e económicas. O direito do trabalho era o elemento que faltava.
As primeiras leis do trabalho As primeiras leis do trabalho (1) destinaram-se a regular o trabalho das crianças e das mulheres. Na Inglaterra em 1802 (em 1833 criou a primeira inspecção do trabalho), na Alemanha, em 1833, e em França em 1841. Em Portugal a primeira lei do trabalho, ainda com a preocupação de regular os aspectos mais chocantes do trabalho das crianças e das mulheres, foi publicada em 1891. Este movimento legislativo, iniciado na Europa no princípio do século XIX, que acompanhou o surgimento de ideias de justiça social e que se estendeu pelo primeiro quartel do século XX, constituiu o primeiro grande movimento de aproximação e até de uniformização de regimes jurídico-laborais nos países industrializados. A uniformização sentiu-se particularmente em matéria de horários de trabalho, com a implantação das 8 horas diárias e as 48 semanais. O segundo grande impulso sofrido pelo direito do trabalho viria a ocorrer com o termo da primeira guerra mundial e com a criação da OIT (2) em 1919 – que veio a adquirir a natureza de organização especializada das Nações Unidas após a segunda guerra mundial – e a aprovação de várias convenções internacionais que, não vinculando imediata e directamente os Estados membros, desempenharam e continuam a desempenhar um importantíssimo papel de uniformização e de regulação das relações sociolaborais à escala mundial.
O período dourado do direito do trabalho na Europa O terceiro grande impulso do direito do trabalho viria a ocorrer com o ocaso da segunda guerra mundial. Na verdade, entre o final da segunda guerra mundial e o primeiro choque petrolífero decorreu o período de oiro do direito do trabalho, o qual coincidiu também com o período que melhor conseguiu conciliar o crescimento económico, o bem-estar e a justiça social no continente europeu (3). Ao direito de trabalho clássico (de protecção do trabalhador no local de trabalho) foram adicionados e aperfeiçoados direitos de protecção social fora do trabalho.
Direito do trabalho: a era da flexibilidade O quarto período relevante para o direito do trabalho iniciou-se na década de 80, podendo identificar-se com um processo de fragilização do modelo protector que o direito do trabalho clássico representa. Este processo aparece influenciado por dois movimentos convergentes entre si: o processo de globalização (neoliberal) liderado pelos Estados Unidos da América; e os reflexos económicos e sociais desse processo nos Estados membros da União Europeia. Trata-se de um período ainda em desenvolvimento, em que as noções de “flexibilidade” e “precariedade” são tidas como indispensáveis ao aumento da “produtividade” e a uma maior “competitividade” das empresas e, também, das economias dos países. Os direitos dos trabalhadores são subordinados aos condicionalismos económicos mediante a introdução de um factor de maior “flexibilidade” nas relações de trabalho e da precarização de uma faixa significativa do emprego através do recurso a formas de contratação atípicas, como sejam: os contratos a prazo, o trabalho temporário, o trabalho independente (4) ou por conta própria, o trabalho a tempo parcial, o teletrabalho e o trabalho clandestino (5). Nos Estados da União Europeia, o desenvolvimento do trabalho independente ou por conta própria, fez-se de forma quase generalizada em todos os Estados comunitários, sendo que a sua evolução progrediu na proporção inversa da criação líquida de postos de trabalho. Durante a década de 90 os únicos Estados membros que não viram crescer o número de trabalhadores independentes foram a França, a Bélgica e o Reino Unido. Portugal apresenta uma taxa de 28,5% (6) de trabalhadores independentes e por conta própria, para uma taxa média comunitária de 14,8%, muito à frente da Espanha com 16,4%. O trabalho a tempo parcial tem vindo a revelar-se na União Europeia como outro instrumento relevante na flexibilização das relações e da organização do trabalho. A promoção do trabalho a tempo parcial, mediante a atribuição de incentivos às empresas (7) traduzidos na redução das contribuições para a Segurança Social, mereceu mesmo a celebração de um acordo quadro em 1997, o qual veio a dar lugar à Directiva 97/81/CE, que, devidamente transposta, uniformizou os regimes na UE. A desregulação que ocorre no mercado do trabalho – abuso da contratação a termo, falso trabalho independente, trabalho temporário desenvolvido por empresas ilegais, trabalho clandestino – em especial nos países do sul da Europa, tem vindo a gerar o afrouxamento e até a exclusão das relações de subordinação e do estatuto salarial a trabalhadores mais frágeis, privando-os da protecção do direito do trabalho, enquanto categorias de trabalhadores de estatuto mais elevado chamam a si essas protecções.
A adaptatibilidade do tempo de trabalho A adaptabilidade do tempo de trabalho é dos mais importantes elementos de flexibilidade e aquele que maiores mudanças introduz na organização da vida privada e familiar dos trabalhadores. O convívio familiar instabiliza-se. O trabalhador é confrontado com um horário de duração variável, semanal e mensal por iniciativa da sua entidade empregadora, em função das necessidades e dos picos de produção da empresa. O objectivo é obter uma “resposta melhor adaptada à incerteza que caracteriza a economia contemporânea” (relatório Supiot). Ganha a empresa em eficiência e em racionalização dos custos, uma vez que em geral pode dispensar nos ditos picos o trabalho suplementar, perde o trabalhador com a desorganização da sua vida privada e a redução dos seus rendimentos. Em Portugal, como nos restantes Estados da União Europeia, as leis do trabalho admitem a flexibilização dos horários de trabalho. O Código do Trabalho recentemente publicado e cuja entrada em vigor está anunciada para o próximo dia 1 de Dezembro de 2003, admite que, por via da contratação colectiva, o horário semanal possa chegar às 60 horas, com 12 horas diárias e um período de referência de doze meses. No cerne da precarização crescente dos vínculos contratuais, bem como da adaptabilidade do tempo de trabalho ocorrida em todos os Estados membros da União Europeia, está o objectivo de se conseguir um trabalho flexível, capaz de se adaptar em tempo oportuno à incerteza dos mercados e das situações produtivas que essa incerteza introduz ao nível da produção e da distribuição dos bens. Controlar a incerteza requer a adopção de políticas de formação ao longo da vida, as quais, associadas à experiência acumulada em situações sucessivamente renovadas, dotam o trabalhador do saber necessário para reagir adequadamente perante o novo. Ou seja, numa economia flexível é primordial criar, preservar e desenvolver as capacidades de trabalho, porquanto estas não são inatas (relatório Supiot).
Efeitos da precariedade no sistema de protecção social A precariedade tem-se reflectido negativamente nas receitas do sistema de protecção social, em especial do sistema de segurança social, ameaçando a sua sustentabilidade a prazo (8). A título de exemplo: só nos Lands de Hesse e da Renânia Westefália a redução da receita, devido ao falso trabalho independente foi calculada em 10.000 milhões de marcos no ano de 19999. Este problema tem gerado um movimento de aproximação dos regimes do trabalho independente ou por conta própria ao do direito do trabalho, substituindo-se o conceito de subordinação pelo de dependência económica. A redução crescente das receitas da Segurança Social, em parte justificada pela precariedade, a fuga parcial ou total das contribuições e a atribuição de incentivos à contratação, são responsáveis pelo recuo dos sistemas de protecção social na Europa e também em Portugal, pela acentuação de assimetrias sociais com a criação de bolsas de pobres e marginalizados.
Dois modelos de confronto A onda neoliberal proveniente dos Estados Unidos da América tem encontrado terreno fértil na Europa, cujos governos – mesmo os governos trabalhistas e sociais-democratas, ainda que com menos dimensão nos países nórdicos – têm procedido a alterações profundas nos sistemas de Segurança Social. Ainda assim, os Estados membros da União Europeia dispõem de sistemas de protecção social maioritariamente públicos, gerais e universais, que asseguram o pagamento de prestações quando as famílias delas mais precisam – pensões de reforma, subsídios de doença e desemprego, maternidade e outras prestações sociais como o rendimento mínimo – num quadro de solidariedade e justiça social. A generalização de um salário mínimo a todos os Estados membros é um instrumento de equidade (ainda que insuficiente) na distribuição do rendimento e um meio de manter no horizonte a expectativa do salaire equitable, preconizado por diversas convenções da OIT. A generalização destes instrumentos de intervenção e de protecção social e económica a todos os Estados membros, pode ser entendida, em traços muito gerais, como constituindo o “modelo social europeu” por contraponto ao modelo existente nos Estados Unidos da América. Com efeito, os modelos liberais não dispõem de sistemas públicos de protecção social, sejam no âmbito da saúde ou da segurança social. Tudo se passa entre privados e “iguais” sendo que as prestações sociais resultam de contratos celebrados entre os trabalhadores e empresas seguradoras e são impotentes para evitar o crescimento da pobreza e da exclusão; é um modelo gerador de assimetrias e injustiças sociais que a sociedade e o Estado pagam em insegurança urbana e altas taxas de criminalidade. Durante o mandato de Bill Clinton foi instituído o salário mínimo nacional em alguns Estados da União. Podemos, pois, concluir que o “modelo social europeu” é um modelo mais equilibrado, que produz menos pobreza e exclusão social, embora se mostre menos favorável à criação de emprego; já o modelo neoliberal americano é mais favorável à criação de emprego, mas parte significativa dele é de baixa qualidade e mal remunerado, e é gerador de mais pobreza e exclusão, que arrasta consigo elevados índices de insegurança e criminalidade.__________ 1 Direito individual do trabalho, porquanto o direito de associação sindical foi reconhecido pela primeira vez em Inglaterra em 1825. Efeitos da precariedade do trabalho nas receitas da segurança social Gastos com a protecção social e efeitos no emprego
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