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A interrupção voluntária da gravidez

José Manuel Vilalonga *

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A regulamentação relativa à interrupção voluntária da gravidez nos vários ordenamentos jurídicos europeus abordados caracteriza-se pelo modelo de não punição, ou seja definem-se as situações em que a interrupção voluntária da gravidez não é punível. As diferenças legislativas entre os vários ordenamentos situam-se fundamentalmente entre a diferente valoração concedida à “vida intra uterina”, assim como a distinta previsão de prazos no âmbito do aborto não punível, o que traduz uma valoração distinta das fases de desenvolvimento do feto.

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O crime de aborto é consagrado pela generalidade das legislações penais dos ordenamentos jurídicos europeus. Proceder-se-á a uma breve exposição dos regimes relativos à interrupção voluntária da gravidez nos ordenamentos português, espanhol, suíço, alemão, italiano, grego, francês, holandês e belga. A escolha destes regimes permite uma explicitação dos sistemas mais representativos no que se refere à regulamentação do aborto.

 

Portugal

No regime português (e nos ordenamentos estrangeiros) os agentes do crime são a mulher grávida que consente no aborto e a pessoa que realiza a intervenção. A punição da pessoa que realiza a intervenção varia nos limites abstractos da pena, consoante o aborto seja realizado com ou sem o consentimento da mulher grávida. A lei portuguesa prevê ainda duas situações em que o aborto é punido mais gravemente: quando do aborto ou dos meios empregados resultar morte ou ofensa grave à integridade física da mulher grávida; ou quando o agente se dedicar habitualmente à prática de aborto (circunstância que não se aplica, evidentemente, à mulher grávida).

As diferenças legislativas entre os vários ordenamentos situam-se, fundamentalmente, na regulamentação da interrupção voluntária da gravidez não punível (sendo tais diferenças aquelas que maior significado assumem), existindo, contudo, diferenças também no plano da punição de comportamentos relacionados com a prática do aborto, tais como o incumprimento dos deveres de aconselhamento.

O ordenamento jurídico português, no que respeita à interrupção voluntária da gravidez não punível, consagra um sistema que articula indicações com prazos, exigindo, em princípio, o consentimento da mulher grávida. Constituem indicações os casos em que a interrupção voluntária da gravidez consubstancia o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física da mulher grávida (não consagrando a lei qualquer limite temporal nestas situações); em que a interrupção voluntária da gravidez se mostra indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida (tendo então a intervenção de ser realizada nas primeiras doze semanas de gravidez); em que existem seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou de malformação congénita (tendo então a intervenção de ser realizada nas primeiras vinte e quatro semanas de gravidez, comprovadas ecograficamente ou por outro meio adequado, salvo se o feto for inviável, caso em que a interrupção poderá ser realizada a todo o tempo); e em que a gravidez resultou de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual (tendo então a intervenção de ser realizada nas primeiras dezasseis semanas de gravidez).

A interrupção da gravidez, à face do ordenamento português, deve ser realizada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido. A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada. O consentimento é prestado em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo e, sempre que possível, com a antecedência de três dias relativamente à data da intervenção; no caso de a mulher grávida ser menor de dezasseis anos ou incapaz, o consentimento será prestado por um representante, nos termos da lei.

Se a interrupção voluntária da gravidez se revestir de urgência e o consentimento não puder ser obtido atempadamente, o médico decidirá em consciência face à situação concreta, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros médicos.

 

Espanha

Em Espanha, o regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez não punível é próximo do português.

O ordenamento espanhol permite a interrupção voluntária da gravidez desde que esta se mostre adequada a evitar grave perigo para a vida ou saúde física ou psíquica da mulher grávida; em caso de gravidez resultante de violação que haja sido denunciada; e quando se presuma que o nascituro enferma de graves deficiências físicas ou psíquicas. A lei exige o consentimento da mulher grávida, salvo em caso de risco vital. Os profissionais de saúde têm o dever de informar a mulher grávida das consequências da intervenção e da existência de medidas de assistência social e de orientação familiar úteis. A intervenção tem de ser realizada por médico (ou sob a sua direcção) em centro de saúde, público ou privado, acreditado para o efeito. No caso de perigo de vida ou para a saúde da mulher, terá de ser emitido um parecer por um médico da especialidade correspondente. O mesmo deverá acontecer no caso de malformação do feto, tendo então o parecer que ser subscrito por dois médicos. A interrupção voluntária da gravidez, em caso de violação, só pode ser realizada até à décima segunda semana de gestação; no caso de deficiência do feto, o prazo alarga-se às vinte e duas semanas.

 

Suíça

Na Suíça, a interrupção voluntária da gravidez é legalmente admitida se visar evitar perigo de morte da mulher grávida ou perigo de lesão séria, permanente e grave da sua saúde. Se a mulher grávida que consente na interrupção voluntária da gravidez se encontrar num estado de angústia grave, o juiz poderá proceder à atenuação especial da pena. A mulher grávida deve prestar o seu consentimento por escrito e a intervenção tem de ser realizada por médico, precedida de parecer de outro médico e de autorização concedida pela autoridade competente do cantão onde a mulher tem o seu domicílio ou do cantão onde a interrupção da gravidez se realiza. Em casos de urgência, a interrupção voluntária da gravidez pode ser realizada, devendo o médico que procedeu à operação informar a autoridade competente do cantão no prazo de vinte e quatro horas.

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Alemanha

Na Alemanha, a interrupção voluntária da gravidez não é punível quando solicitada pela mulher grávida, após apresentação de certificado comprovativo de aconselhamento e desde que realizada nas primeiras doze semanas de gravidez. A interrupção também não é punível quando se mostrar adequada a evitar perigo para a vida ou para a saúde física ou mental que não possa ser removido de outro modo; quando a gravidez tenha resultado de crime, desde que realizada nas primeiras doze semanas de gravidez; e quando a prossecução da gravidez sujeitar a mulher a um sacrifício de tal modo intenso que ultrapasse o limite do exigível, devendo então ser realizada nas primeiras vinte e duas semanas de gravidez.

O aconselhamento referido supra visa a protecção da vida, e o médico que o efectua não intervém na interrupção da gravidez. A lei exige o consentimento da mulher grávida e que a intervenção seja realizada por médico. A lei alemã consagra ainda incriminações para os casos de não cumprimento dos deveres médicos, nomeadamente de aconselhamento, para os casos de publicidade à interrupção da gravidez e para os casos de colocação no mercado de meios para a interrupção da gravidez.

 

Itália

Em Itália, a interrupção voluntária da gravidez é admitida nos casos em que a continuação da gravidez, o parto ou a maternidade constituam um perigo grave para a saúde física ou psíquica da mulher grávida; e nos casos em que é previsível que o nascituro apresente deficiências ou malformações. Também é admitida a intervenção em função de uma ponderação do estado de saúde da mulher, das suas condições económicas ou das circunstâncias em que ocorreu a concepção.

A mulher grávida deve realizar uma consulta, manifestando a sua vontade, na qual se procede ao aconselhamento e esclarecimento das soluções possíveis para a situação em que se encontra. Se o médico considerar que a interrupção voluntária da gravidez se reveste de urgência, entrega à mulher um certificado; caso contrário, a mulher grávida é convidada a reflectir durante sete dias, após os quais poderá realizar a intervenção. A interrupção deve ser realizada dentro dos primeiros noventa dias de gestação, salvo nas situações em que exista perigo grave para a vida da mulher ou em que seja diagnosticada malformação grave do nascituro que constitua perigo grave para a saúde física ou mental da mulher.

 

Grécia

Na Grécia, a interrupção voluntária da gravidez pode ser realizada, sem justificação especial, nas primeiras doze semanas de gestação. A interrupção voluntária da gravidez pode também ser realizada nos casos em que seja diagnosticada anomalia do feto da qual resultaria o nascimento de uma criança deficiente, devendo então a intervenção realizar-se nas primeiras vinte e quatro semanas de gravidez; nos casos em que a gravidez resulte de crime sexual, tendo a intervenção de ser realizada nas primeiras dezanove semanas de gravidez; e nos casos em que exista perigo de morte ou perigo de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher, não sendo nestas situações previsto qualquer prazo. A intervenção tem de ser realizada por médico, com a assistência de um anestesista e numa unidade de saúde licenciada.

 

França

Em França, a interrupção voluntária da gravidez não é punível quando a mulher se encontre em estado de angústia e a intervenção se realize até à décima semana de gravidez. A interrupção também não é punível em caso de perigo grave para a saúde da mulher ou em caso de forte probabilidade de o nascituro sofrer de grave deficiência incurável; nestas duas categorias de situações a intervenção pode ser realizada a todo o tempo.

A mulher grávida tem de consentir na realização da interrupção da gravidez, devendo ser informada pelo médico dos riscos da intervenção, bem como dos direitos, ajudas e vantagens garantidas por lei às famílias; tem, igualmente, de consultar um organismo de informação autorizado, onde lhe é entregue um certificado. Após a consulta o pedido tem de ser renovado. A interrupção voluntária da gravidez deve ser realizada por médico em estabelecimento que satisfaça as disposições legais.

 

Holanda

Na Holanda, a interrupção voluntária da gravidez só pode ser realizada em hospital ou clínica autorizados, por médico, depois de comprovada a situação de urgência da mulher grávida e de esta ter manifestado e mantido a sua vontade de abortar. A interrupção só se realiza decorridos seis dias após a mulher ter exposto ao médico a sua intenção. O médico deve informar a mulher das alternativas à intervenção. Depois da décima terceira semana de gravidez, a intervenção só pode ser realizada em clínicas especificamente autorizadas para o efeito, salvo em caso de perigo iminente para a vida ou a saúde da mulher.

 

Bélgica

Na Bélgica, a interrupção voluntária da gravidez pode ser realizada até à décima segunda semana de gestação. Para o efeito, a lei exige que a mulher grávida a requeira (por escrito), que seja efectuada por médico, em estabelecimento adequado e que o médico preste informação sobre os apoios de natureza social e psicológica que a mulher pode obter. Depois do prazo referido, a interrupção só poderá realizar-se, então sem limite, em caso de perigo para a grávida ou em caso de doença grave do nascituro.

 

Informação Complementar

A incriminação do aborto

O crime de aborto protege a vida intra-uterina, isto é, a vida entre o momento da nidação e o início do parto. Desse modo, a vida não beneficia de protecção penal entre o momento da concepção e o da nidação, o que é expressamente assumido, nomeadamente, no ordenamento alemão. No ordenamento português, tal asserção fundamenta-se na identificação do bem jurídico protegido pela incriminação do aborto (vida intra-uterina). Do regime penal que tutela a vida resulta uma antecipação do início da vida extra-uterina, na medida em que o artigo 136º do Código Penal prevê um homicídio (acto de matar outrem) durante o parto. Tal antecipação contrasta com o critério civilista, segundo o qual a personalidade jurídica é reconhecida (e, portanto, a pessoa existe) a partir do nascimento completo e com vida (artigo 66º do Código Civil).

O feto (ou antes, a vida intra-uterina) beneficia de uma protecção penal diferente da conferida à pessoa (à vida extra-uterina): para além da diferente punição dos crimes que atentam contra as duas modalidades de vida, o aborto tem um regime de não punição específico. Por outro lado, não existe crime de ofensas à integridade física do feto nem crime de aborto negligente. Os ordenamentos jurídicos assumem, portanto, uma valoração diferente das duas formas de vida. De resto, a previsão de prazos no âmbito do aborto não punível consubstancia uma concretização duma também diferente valoração das fases da vida intra-uterina. A par da incriminação do aborto (nas modalidades simples e agravada), alguns ordenamentos consagram também incriminações para situações relacionadas com o aborto, tais como a propaganda de meios de realização do aborto ou o não cumprimento de determinadas obrigações relacionadas com a concretização da interrupção voluntária da gravidez por parte do médico.

 

A interrupção voluntária da gravidez não punível

A regulamentação do aborto caracteriza-se fundamentalmente pelo modelo de não punição, isto é, pelo modo como a lei define as situações em que a interrupção voluntária da gravidez não é punível. Os dois pólos radicais, no quadro de um regime punitivo do aborto, caracterizam-se, em abstracto, pela punição absoluta (apenas sendo, nesse contexto, aplicáveis as causas de justificação e de desculpa gerais) e pela admissão irrestrita da interrupção (dentro de um prazo e desde que consentida).

A generalidade dos ordenamentos mitiga ou conjuga tais modelos extremos, articulando com os prazos e com o consentimento situações em que, do ponto de vista jurídico, o aborto é admissível (indicações). A essas situações subjazem valorações cujo enquadramento dogmático não é pacífico mas que a coerência normativa sugere que se situem ao nível da ilicitude, pelo que é afastada a hipótese de legítima defesa contra aborto não punível (para além de outras consequências, nomeadamente no âmbito da comparticipação). Em alguns casos, os ordenamentos optam pela exclusão da própria tipicidade (o que implica, no mínimo, as consequências da exclusão da ilicitude).

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* José Manuel Vilalonga

Mestre em Direito. Docente na UAL e na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Assessor do Gabinete dos Juizes do Tribunal Constitucional.

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