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Janus 2004



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A derrogação por razões fiscais do segredo bancário

Luís Máximo dos Santos *

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Apesar de o segredo bancário constituir a regra nas relações entre as instituições bancárias e os seus clientes, especialmente desde os acontecimentos de 11 de Setembro de 2001, que se admite que este possa ser derrogado em determinadas situações. A Lei nº 5/2002 de 11/01 veio criar um mecanismo especial de quebra do dever de sigilo bancário, aplicável na fase de inquérito, instrução e julgamento de processos relacionados com determinados crimes. Por outro lado a Administração Tributária ficou habilitada, a partir de 2001, à derrogação do segredo bancário por razões fiscais.

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Sob diferentes enquadramentos e contextos, a regra do segredo bancário impôs-se desde os primórdios da actividade bancária como um dos seus pilares fundamentais. É fácil perceber porquê. O respeito do segredo bancário prende-se com o próprio princípio da boa fé e constitui um aspecto decisivo da tutela da confiança, valor que, se é importante na actividade económica em geral, assume características verdadeiramente nucleares no que toca ao exercício da actividade bancária.

Assim, mais do que no receio de incorrer em sanções legais, a sua observância cedo radicou numa condição de sobrevivência do próprio negócio. Na verdade, banqueiro que o não cumprisse sujeitava-se à pior das sanções: a perda da clientela. Daí que antes de plasmado nos ordenamentos jurídicos como um dever legal, a tutela do segredo bancário começou por afirmar-se pela via dos usos da actividade bancária e enquanto obrigação contratual. Ainda hoje, de resto, nos países de matriz anglo-saxónica, o dever de segredo bancário tem essencialmente base contratual.

Em contrapartida, noutros países, fruto das respectivas vicissitudes históricas e económicas, a tutela do segredo bancário foi especialmente reforçada, através da criação de uma disciplina jurídica própria que inclusive recorre às normas penais para prevenir e reprimir a sua violação.

Em Portugal, o segredo bancário está previsto e regulado nos artºs. 78.º a 84.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31.12. Abrange, designadamente, os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias. A tutela do dever de segredo das autoridades de supervisão é objecto de uma contemplação autónoma (artº. 80.º). Para além das situações em que haja autorização do próprio cliente, a revelação de informações cobertas pelo dever de segredo só é permitida, no âmbito das respectivas atribuições, nas relações dos bancos com determinadas entidades (v.g. Banco de Portugal e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários) e, claro está, nos termos da lei penal e de processo penal ou quando exista outra norma que expressamente limite o dever de segredo.

O procedimento de levantamento do segredo previsto no artº. 135.º do Código de Processo Penal (CPP) é algo complexo e moroso. A violação do dever de segredo constitui crime p. e p. no artº. 195.º do Código Penal (CP). As características do mundo actual, com os seus complexos sistemas financeiros assentes em meios tecnológicos altamente desenvolvidos e sofisticados, vieram dar à tutela do segredo bancário, por um lado, novos fundamentos e dimensões mas, por outro, e um tanto paradoxalmente, tornaram imperativo reavaliá-la à luz da ponderação de interesses absolutamente vitais para a defesa da comunidade.

Numa época em que a generalidade dos cidadãos é cliente bancário e em que se recorre massivamente à utilização dos bancos, seja para operações financeiras de maior dimensão, seja para operações corriqueiras do dia-a-dia, designadamente pela extraordinária expansão dos cartões de débito e de crédito, a garantia da confidencialidade bancária tornou-se ainda mais importante, assumindo-se como uma dimensão essencial do direito à reserva da privacidade (1).

No entanto, se é verdade que as características da sociedade actual nos dão ponderosas razões para sermos exigentes e rigorosos na tutela do segredo bancário também é um facto que elas fornecem igualmente motivos não menos ponderosos para consagrar importantes restrições a esse dever. Face às características da economia contemporânea, caracterizada pela livre circulação de capitais, pela livre prestação de serviços financeiros, pela generalização das relações económicas transnacionais, numa palavra, pela globalização, se não fosse possível fazer ceder, em determinados casos, o dever de segredo bancário, teríamos um mundo perfeito e seguro para o crime.

Várias das mais importantes organizações internacionais, bem como muitas outras entidades e reputados estudiosos do assunto, têm vindo a alertar para o facto de a economia do crime organizado atingir actualmente dimensões alarmantes, nela se cruzando o tráfico de droga (mas também o de mulheres e de crianças) com redes de prostituição e de imigração ilegal, com o branqueamento de capitais, com o financiamento do terrorismo internacional, etc. Por isso, um pouco por todo o lado, numa tendência que se acentuou ainda mais após o 11 de Setembro de 2001, se têm vindo a adoptar medidas visando criar mecanismos expeditos para fazer ceder o segredo bancário para efeito da perseguição de determinadas infracções criminais. Assim, por exemplo, o artº. 7.º do Protocolo da Convenção relativa ao auxílio judiciário mútuo em matéria penal entre os Estados membros da União Europeia (UE) estabelece que “nenhum Estado membro pode invocar o sigilo bancário para justificar a sua recusa de cooperação no que se refere a um pedido de auxílio judiciário mútuo de outro Estado membro” (2). E o referido Protocolo prevê (cf. artºs. 1.º a 3.º, respectivamente) pedidos de informações sobre contas bancárias, sobre transacções bancárias e de controlo de operações bancárias.

Entre nós, a Lei n.º. 5/2002, de 11.01, veio criar um mecanismo especial de quebra do dever de segredo bancário, mais expedito do que o que está previsto no CPP, aplicável na fase de inquérito, instrução e julgamento de processos relativos aos crimes de tráfico de estupefacientes, terrorismo e organização terrorista, tráfico de armas, corrupção passiva e peculato, branqueamento de capitais, associação criminosa, contrabando, tráfico e viciação de veículos furtados, lenocínio, tráfico de menores e contrafacção de moeda e de títulos equiparados a moeda (cf. art.º 1.º dareferida Lei).

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Dever de segredo e administração Fiscal

De uma maneira geral, mesmo os defensores de uma tutela intensa do segredo bancário não põem em questão o seu levantamento quando estejam em causa investigações de natureza criminal. A controvérsia surge com maior intensidade quanto à possibilidade de a Administração Tributária (AT), no desempenho das suas atribuições, poder aceder às informações bancárias. Será de admitir a quebra do segredo bancário para efeito de controlo da veracidade das declarações fiscais e do correcto apuramento da matéria colectável, designadamente no âmbito de acções inspectivas?

Até à reforma fiscal de 2000, a AT só podia obter informação protegida pelo segredo bancário através do mecanismo judicial previsto no CPP. Ou seja, contra a vontade de um contribuinte, e fora de um processo penal, estava impedida de obter informações com frequência indispensáveis para combater adequadamente a fraude e a evasão fiscal. Tratava-se de uma situação muito criticada. Por exemplo, a Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal, (3) depois de analisar os regimes em vigor na Alemanha, Bélgica, Espanha, França, Itália e Reino Unido, recomendou que a possibilidade de acesso da AT às informações protegidas pelo segredo bancário fosse substancialmente ampliada, de modo a aproximar-se do regime praticado na grande maioria dos países da UE e da OCDE. Aquando da adopção pela OCDE, em 1985, do relatório “Fiscalité etusage abusif du secret bancaire”, Portugal viu-se mesmo na necessidade de declarar que não podia dar o seu acordo ao texto do relatório, sintomaticamente acompanhado apenas pela Áustria, Luxemburgo e Suíça.

Desde então, a OCDE tem continuado a dedicar grande atenção a este assunto. Sem pretender pôr em causa o princípio do segredo bancário, reconhece que o mesmo constitui por vezes um obstáculo ao combate à fraude e à evasão fiscal e desse modo sugere aos Estados-membros a adopção de medidas que o limitem. Nesse contexto, foi aprovado em Abril de 2000 o relatório “Améliorer l’accèsaux renseignements bancaires à des finsfiscales”, tendo sido publicado em Julho de 2003 novo relatório dando conta dos progressos verificados na aplicação do anterior (4).

 

O novo regime

Criado pela Lei n.º 30-G/2000, de 29.12, Portugal passou a dispor, a partir de 2001, de um mecanismo de derrogação administrativa do segredo bancário por razões fiscais. Assim, o n.º 1 do art.º 63.º-B da Lei Geral Tributária (LGT) estabelece que, nas situações de recusa da sua exibição ou de autorização para a sua consulta, a AT tem o poder de aceder directamente aos documentos bancários nos seguintes casos:

  • quando se trate de documentos de suporte de registos contabilísticos dos sujeitos passivos de IRS e IRC com contabilidade organizada;
  • quando o contribuinte usufrua de benefícios fiscais ou de regimes fiscais privilegiados, havendo necessidade de controlar os respectivos pressupostos e apenas para esse efeito.

Trata-se de um acesso directo, justificado por estarmos perante uma violação ostensiva do dever de colaboração. Por seu turno, o n.º 2 do mesmo preceito, e também nos casos de recusa da sua exibição ou de autorização para a sua consulta, confere à AT o poder de aceder a todos os documentos bancários (excepto as informações prestadas para justificar o recurso ao crédito) quando se verifique:

  • a impossibilidade de comprovação e quantificação directa da matéria tributável ou haja lugar à sua avaliação indirecta;
  • o afastamento significativo para menos dos rendimentos declarados face aos padrões de rendimento correspondentes às manifestações de riqueza;
  • a existência de indícios da prática de crime doloso em matéria tributária;
  • a necessidade de comprovação, para fins fiscais, de subsídios públicos de qualquer natureza. As situações em que a derrogação é admitida são pois limitadas, de modo nenhum pondo em causa a existência do segredo bancário como regra geral. Acresce que o legislador foi cuidadoso a vários títulos (cf. n.º 3 do art.º 63.º-B):
  • a competência para requerer a derrogação administrativa do dever de segredo é apenas do director-geral dos impostos ou do director-geral das alfândegas e dos impostos especiais sobre o consumo (ou dos seus substitutos legais), estando, portanto, restrita ao topo da administração tributária;
  • a decisão tem de ser expressamente fundamentada;
  • o visado é previamente ouvido.

Por outro lado, o contribuinte tem a possibilidade de recorrer para os tribunais tributários, tendo o recurso efeito suspensivo (mas apenas nas situações previstas no n.º 2 do art.º 63.º-B) e sendo o processo classificado como urgente (cf. O n.º 4 do citado art.º 63.º-B e os artºs. 146.º- B e 146.º-D do Código de Procedimento e de Processo Tributário).

O segredo bancário é ainda administrativamente derrogado nas situações previstas no art.º 63.ºA. Assim, nos termos do seu n.º 2, as instituições de crédito e as sociedades financeiras têm a obrigação de fornecer à AT “o valor dos pagamentos com cartões de crédito e de débito efectuados por seu intermédio a sujeitos passivos que aufiram rendimentos da categoria B de IRS e de IRC, sem por qualquer forma identificar os titulares dos referidos cartões”. Embora mais específica, trata-se também de uma medida de grande alcance no combate à fraude e à evasão fiscal. O n.º1 desse mesmo preceito prevê que as instituições de crédito e as sociedades financeiras prestem, de forma automática, determinadas informações, mas a norma não teve até agora aplicação por não ter sido publicada a portaria do Ministro das Finanças nela prevista.

Deve notar-se ainda que a lei portuguesa consagra o dever de sigilo fiscal (art.º 64.º da LGT), facto que não deixa de ser também uma garantia, tanto mais quanto a sua violação constitui um crime qualificado face ao crime de violação do sigilo profissional (cf. art.º 195.º do CP e 91.º do Regime Geral das Infracções Tributárias). Houve ainda o cuidado suplementar de prever a definição, pelo ministro das Finanças, de regras especiais de reserva da informação, de carácter interno, a observar pelos serviços da AT no âmbito dos processos de derrogação do dever de segredo bancário (art.º 64.º-A da LGT).

 

Conclusão

Numa perspectiva comparada, o novo regime legal coloca Portugal numa posição intermédia em matéria de derrogação administrativa do segredo bancário. Com efeito, afastámo-nos do modelo vigente em países como a Áustria, o Luxemburgo e a Suíça, de resto minoritário na Europa, mas também não adoptámos um modelo, como o espanhol, que permite um acesso generalizado da AT às informações bancárias. Afigura-se, assim, ter sido um passo cuidadoso que, evitando os inconvenientes de uma mudança demasiado brusca, vai ao encontro da tendência largamente dominante na UE e dos esforços que a OCDE adrede vem desenvolvendo, criando melhores condições para o tão necessário combate à fraude e à evasão fiscal.

 

Informação Complementar

A Lei espanhola

Em Espanha, o acesso da administração tributária às informações bancárias é regulado fundamentalmente pelo artigo 111.º da Ley General Tributaria (LGT) cujo conteúdo essencial é o seguinte: “1. Toda a pessoa natural ou jurídica, pública ou privada, está obrigada a proporcionar à Administração tributária todo o tipo de dados, informações ou antecedentes com relevância tributária, resultantes das suas relações económicas, profissionais ou financeiras com outras pessoas”.; (…); “3. O incumprimento das obrigações estabelecidas neste artigo não poderá fundar-se no segredo bancário.

Os requerimentos individualizados relativos a movimentos de contas correntes, depósitos de aforro e a prazo, contas de empréstimos e créditos e demais operações activas e passivas, incluindo as que se encontrem reflectidas em contas transitórias ou se materializem na emissão de cheques ou outras ordens de pagamento da entidade, dos Bancos, das Caixas de Aforro, Cooperativas de Crédito, e pessoas físicas ou jurídicas que se dediquem à actividade bancária ou creditícia, efectuar-se-ão mediante prévia autorização do Director do Departamento competente da Agencia Estatal de Administración Tributaria ou, se for o caso, do Delegado da Agência Estatal de Administración Tributaria competente. Os requerimentos individualizados deverão precisar os dados identificativos do cheque ou ordem de pagamento de que se trate, ou as operações objecto de investigação, os obrigados tributários afectados e o período de tempo a que se referem.

A investigação realizada no curso de actuações de comprovação ou de investigação inspectiva para regularizar a situação tributária de acordo com o procedimento estabelecido no parágrafo anterior, poderá abranger a origem e o destino dos movimentos ou dos cheques ou outras ordens de pagamento, se bem que nestes casos não se possa ir além da identificação das pessoas ou das contas que constituem os ditos origem e destino.”

Como se vê, a lei espanhola consagra um amplo acesso do fisco às informações bancárias. Todavia, a jurisprudência do país vizinho tem reconhecido que um exercício ilimitado dos poderes que a LGT confere à administração tributária podia vulnerabilizar o direito à intimidade das pessoas singulares. Nessa medida, tem vindo a definir alguns limites cujo cumprimento é indispensável para que o acto administrativo em que se traduz o requerimento da administração tributária seja considerado legal. Assim, tem-se exigido o cumprimento do princípio da proporcionalidade e a efectiva relevância tributária dos dados requeridos (cf. M. José Guillén Ferrer, “La investigación tributaria de las cuentas y operaciones activas y pasivas, el derecho a la intimidad y el secreto bancario según la jurisprudencia” in Estudios sobre jurisprudencia bancaria, Vicente Cuñat Edo e Rafael Ballarín Hernández, Aranzadi, 2ª ed., Navarra, 2002, pp. 687 a 720).

__________
1 No seu Acórdão nº. 278/95, de 31.05, o Tribunal Constitucional, embora reconheça que o segredo bancário não é um direito absoluto, podendo, portanto, sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, vai mesmo ao ponto de considerar o segredo bancário como uma dimensão do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar. No entanto, neste acórdão o Tribunal acabou por não apreciar nenhuma questão de inconstitucionalidade material pois ficou prejudicada pela existência de uma inconstitucionalidade orgânica.
2 O Protocolo em causa foi aprovado pelo Acto do Conselho de 16.10.2001 (cf. Jornal Oficial C 326, de 21.11. 2001).
3 Cf. Relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal, Ministério das Finanças, 1996, pp. 359 e segs.
4 O relatório designa-se “Progress since 2000 in Improving Access to Bank Information for Tax Purposes”.

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* Luís Máximo dos Santos

Docente no Instituto Europeu da Faculdade de  Direito da Universidade de Lisboa. Consultor   Jurídico do Banco de Portugal. Vogal do    Conselho Superior de Magistratura.

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